Um novo paradigma, dizem

(José Sócrates, in Público, 05/02/2018)

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(Não sei se José Sócrates é culpado ou inocente. Mas pelo que já aconteceu desde a sua prisão até hoje, não terá nunca um julgamento limpo e justo. Apesar das  quebras do segredo de Justiça e devassa da vida privada que estão a repetir-se na actualidade no caso  do juiz Rangel, Sócrates continua a manter o record de fugas para a comunicação social de dados do processo judicial de que é alvo. 

E por isso merece que a palavra lhe seja dada, pronunciando-se sobre o tema.

Comentário da Estátua, 06/02/2018)


Os entusiastas e divulgadores celebram nas televisões a chegada do que chamam um novo paradigma da ação penal, fazendo o impossível por ocultar que este começa sempre com um crime cuja importância e significado não me parece terem sido devidamente compreendidos – a violação do segredo de justiça. Na verdade, este crime não é um delito aleatório ou isolado, constituindo, pelo contrário, o primeiro andamento de um plano, de um modus operandi que se tornou rotina nos últimos tempos e que tem como objetivo construir a imagem pública de culpa formada do indivíduo perseguido pelo Estado. Longe de representar uma ligeira infração ou uma questão de nada, ele é instrumental para substituir o princípio da presunção da inocência pela presunção pública de culpabilidade. Para quem está atento a este novo tempo, os métodos adotados revelam toda uma cultura jurídica: verdadeiramente, as nossas autoridades não acreditam no princípio da  presunção de inocência. Sem provas, mas cheios de convicções e certezas, pouco lhes interessa se estão a agredir e a acusar inocentes que reclamam os seus direitos. O chamado novo paradigma não passa do regresso do velho autoritarismo estatal, agora com novos protagonistas, novas razões, novos métodos e novas roupagens, mas o mesmo desprezo pelos direitos individuais e pela cultura de liberdade.

Depois, a exibição do abuso. As buscas televisionadas e as informações processuais obtidas ilegalmente e manipuladas contra os perseguidos são hoje crimes ostensivamente praticados por agentes públicos e exibidos provocatoriamente em campanhas de difamação. De facto, elas  transformaram-se numa peça central da estratégia e do processo acusatório, tendo como objetivo chegar a julgamento já com o cidadão completamente difamado e desonrado e com o juiz perfeitamente condicionado por uma narrativa dominante. Não, o crime não é contra a investigação, como cinicamente se afirma. Este crime é cometido pelos responsáveis da justiça contra os alvos que decidem perseguir, de modo a consagrar publicamente o seu ponto de vista sem que a outra parte tenha tido sequer o direito a defender-se.

Bem vistas as coisas, o propósito das chamadas “fugas de informação” nada tem a ver com o interesse público: transmitir informação, acrescentar pontos de vista ou novos argumentos. O objetivo da violação é aumentar audiências e ganhar dinheiro seja lá à custa do que for, do cidadão visado ou do respeito devido à lei. O que se passa realmente é uma troca, um comércio: dou-te informação, dizes bem de mim; espetadores, em troca de elogios – eis a situação win-win.

O que sobra, então, são agentes públicos que se julgam e afirmam acima da lei. O que sobra é a deslegitimação estatal por quem acha que os fins justificam os meios. De resto, em tempos de exceção, a necessidade não tem lei. Ou, melhor dito, a necessidade faz a sua própria lei.

Debalde encontraremos numa qualquer teoria da justiça explicação para este novo paradigma : de facto,  ele não tem a ver com o direito, mas com o poder. O nível de violência exposto no desenvolvimento inicial da Operação Lex, como antes na Face Oculta, no processo Marquês e, mais recentemente, no inolvidável episódio da busca ao gabinete do ministro das Finanças, marca o novo padrão – buscas espetaculares, detenções antes de qualquer interrogatório, prisões para investigar, campanhas de difamação nos jornais. O novo paradigma da justiça é, afinal, uma ideologia: menos direitos e garantias individuais em troca de investigações supostamente mais eficazes. O novo poder dos dirigentes do Ministério Público já não precisa da política para fazer leis nem dos juízes para a aplicar – eles investigam, eles acusam e eles condenam… nas televisões.

No entanto, o problema deste novo paradigma não é resolúvel: ele começa num crime, num abuso, autorizando a legítima suspeita de já não estarmos no domínio da investigação ao crime, mas sim no domínio da perseguição a alvos seletivos, tendo como corolário a substituição do princípio da legalidade pelo princípio da oportunidade, mediática e corporativa.

No fundo e em síntese, a continuada violação do segredo de justiça transforma-se, assim, em símbolo do direito de exceção – um procedimento não aprovado nem escrito, mas imposto aos cidadãos pelo abuso, pela impunidade e pela conivência entre media e agentes judiciários.

P.S. – Durante vários dias, cinco pessoas estiveram presas sem que ninguém se sentisse obrigado a explicar por que razão o Estado considerou existirem “fundadas razões para considerar que os visados se não apresentariam espontaneamente“. Na verdade, as detenções apenas serviram a dramaturgia e o festim mediáticos. A dignidade das pessoas parece não vir  ao caso- elas sempre foram instrumentais, usadas como meio, não como fim.

15 pensamentos sobre “Um novo paradigma, dizem

  1. “Durante vários dias, cinco pessoas estiveram presas sem que ninguém se sentisse obrigado a explicar por que razão o Estado considerou existirem “fundadas razões para considerar que os visados se não apresentariam espontaneamente“.”

    Descobriu agora, depois de 7 anos no poder em que nada fez pelos que não têm direito a defesa. Ao menos ele e os amiguinhos ainda têm tecto e o que comer até ao fim da vida, os desconhecidos passam simplesmente a subhumanos a pedir migalhas. Ainda não percebeu que a única maneira de alguém se importar com ele e com os problemas da justiça é estando calado e a deixar de se fazer de vítima.

  2. Mais uma vez certeiro a meter a flecha no olho do polvo.
    O Presidente da República dedica-se à magistratura de influência, o Primeiro Ministro dedica-se à magistratura da governação política, a Assembleia da República à magistratura legislativa e estar de vela à acção do governo e a magistratura do Ministério Público dedica-se a montar e dar circo no espaço público.
    Um espectáculo circense onde o palhaço com poder absoluto faz de palhaço pobre e faminto para engolir na prisão o palhaço rico que se meta na frente do dito palhaço poderoso. E, como a aplicação das Leis e regras do circo necessitam de trabalho moroso, argúcia e inteligência para actuar, o palhaço malandro poderoso bem abrigado mas fingido de sem-abrigo subverte todas as regras legais do circo com truques na bancada dos espectadores embasbacados com os aparatos que tira da cartola e aponta como ladrão deles o palhaço que acusa de rico porque é ladrão.
    O público apanhado e embasbacado pelos truques, como os paulo marques, aplaudem e regozijam-se até um dia que descubram por si próprios que já se vive no século do poder judicial.

  3. Resumindo o texto são os N.D.T. desmontando novos donos disto tudo .
    e ninguém lhes vai a mão ai de quem ouse tocar-lhe nos privilégios ,como aconteceu com José Sócrates,assim
    que saiu do governo,fizeram-lhe a folha uma vergonha para p Pais e para os Portugueses,uma perseguição intolerável a todos os governos de Sócrates como essa questão dos cartões de credito dos governantes ,por denuncia do sindicato de um órgão de soberania,quanto custou essa investigação aos cofres do estado ?

  4. É irónico verificar que a estratégia do MP resulta mesmo com os seus opositores, a necessidade deste paragrafo introdutório diz bem do condicionamento.

    • Não houve qualquer necessidade de justificar fosse o que fosse. Apenas situar o texto na sua oportunidade, escrito por alguém que tem a maior legitimidade para abordar o tema, em função do facto de ser a pessoa, até ver, mais lesada neste país pelas quebras ao segredo de Justiça.

  5. Sócrates diz, e bem, que o princípio da legalidade processual (ou seja, que no processo judicial, a ação das partes deve obedecer à Lei) se encontra ferido (de morte, digo eu) com as sucessivas violações do segredo de Justiça. Isto além de ficar de rastos a reputação dos arguidos e acusados, todos presumíveis inocentes, claro.

    Mais, o circo mediático, ao criar a dita presunção de culpabilidade, está igualmente a coarctar a liberdade do coletivo de juízes que irá julgar cada um destes processos (alguém imagina que depois de todo este espetáculo, será fácil a um juiz declarar Sócrates inocente por falta de provas, por exemplo?). A defesa parte pois em clara desvantagem, isto sem falarmos da forma como em geral juízes de instrução se limitam simplesmente a confirmar a acusação do MP…

    Assim sendo, não sendo eu jurista, mas tendo em conta que tais julgamentos nunca poderão ser justos, não sei por que não avançam os advogados destes arguidos ou acusados com um pedido de anulação do processo. A jurisdição é outra, mas quando foram descobertas as manobras ilegais da Casa Branca de Nixon para procurar informação com potencial de atacar a reputação de Daniel Elsberg no caso dos ‘Pentagon Papers’, o juiz responsável pelo processo contra ele e Russo considerou as acusações improcedentes…

    Não quero obviamente comparar Sócrates com Ellsberg, que é um herói (acho que Sócrates, mesmo que esteja inocente, não tem moralmente uma perna para se sustentar), mas o que está em causa é a defesa de um princípio central do Direito, não o caso de um arguido ou acusado em particular…

  6. Sócrates foi o primeiro ministro português que mais obra realizou! Criminosamente, pararam obras já iniciadas que agora,6 anos depois, são imprescindíveis,a saber: túnel do Marão,
    tardiamente inaugurado,novo aeroporto de Lisboa, Ligação às linhas TGV, total acabamento das auto-estradas já começadas.
    Passos Coelho não fez nada,não construiu nada,não há nada para inaugurar que fosse começado durante o seu governo. Porém vendeu tudo a que conseguiu deitar a mão,energia,transportes aéreos,comunicações,correios,etc.,etc..
    Ver escrito que Sócrates,moralmente, não tem uma perna para se sustentar, esquecendo o que vale a canalha que se lhe opôs e opõe, só por bravata de estagiário de Direito,má fé cínica ou obtusidade córnea…

  7. «(acho que Sócrates, mesmo que esteja inocente, não tem moralmente uma perna para se sustentar)»

    Mais um moralista de atitude beata que utiliza a fórmula de culpar alguém, não culpado de qualquer facto real, baseado nos seus próprios preconceitos morais e comportamentais fundados no pressuposto do falso juízo de valor do “ele pôs-se a jeito”.
    O tal juízo que nada ajuíza ou vale e que nada prova mas é utilizado por todo o mundo português da sacanice bem pensante.

  8. Sócrates mentiu à imprensa sobre a proveniência dos seus rendimentos, para começar (entrevista a Clara Ferreira Alves no Expresso, lembram-se?).

    Depois, sabendo que era uma pessoa politicamente exposta, tomou de empréstimo (a acreditar na versão dele, a de agora) de um amigo uma enorme quantidade de dinheiro (centenas de milhares de Euros) e note-se, fê-lo sem qualquer espécie de registo. Se eu quero pedir emprestado de alguém, assino letras. Quem faz isto, vai acabar, mais tarde ou mais cedo, a ser investigado, gostem ou não. Aqui, as autoridades não fizeram mais do que o seu dever (o problema foi depois).

    Dir-me-ão que isto é um problema dele. Não, não é, porque não foi só Sócrates que foi posto em causa, mas todos aqueles e aquelas que com ele trabalharam e/ou o defenderam (incluindo o atual PM e o Ministro Vieira da Silva, por exemplo). E ele, na sua arrogância e desleixo, não pensou neles. Além de mentiroso, foi néscio e egoísta.

    Depois, posso ser só eu a pensar assim, mas um político não vai viver para Paris à grande e à francesa (à custa de dinheiro alheio, ainda por cima) enquanto os Portugueses andaram a penar com um programa de austeridade que ele assinou (a responsabilidade foi partilhada com os aprendizes de feiticeiro Portas e Passos, mas que a tem, tem)… Chamem-lhe moralismo da minha parte, mas isto foi falta de bom-senso e falta de respeito.

    Portanto, relativamente ao julgamento moral, penso que tenho argumentos que cheguem e dos bons para condenar Sócrates (e nada acima depende de ele ter ou não cometido crimes), e francamente estou-me nas tintas para as opiniões alheias, em particular as anónimas.

    É, aliás, absolutamente risível e falacioso que se venha invocar a suposta competência de Sócrates a governar para justificar o comportamento pessoal dele. Não passa de uma versão mais sofisticada do ‘roubo, mas faço’. Tenho a certeza que Sócrates repudiaria tal argumento, que em nada o ajudaria.

    Infelizmente, as opiniões neste caso dividem-se entre os que diabolizam Sócrates e o condenaram moral e judicialmente à partida e aqueles que lhe perdoam todos os disparates que fez e que não percebem o ridículo em que caem.

    É preciso separar as coisas. O julgamento político foi feito, o moral pode ser feito (vide acima) e resta o judicial, que irá verificar se Sócrates cometeu ou não crimes. Mantenho-me absolutamente agnóstico nesta matéria, aliás gostaria que ele fosse declarado inocente, porque é mau demais que um PM que esteve 6 anos no poder seja metido na prisão por corrupção.

    A opinião acima versa, exclusivamente, a questão da violação sucessiva da legalidade processual e deveria, na minha modesta opinião (não sou licenciado em Direito, quanto mais estagiário 🙂 ), levar ao anulamento do processo (deste e de outros) e para ela é absolutamente irrelevante a culpa ou inocência dos arguidos ou acusados… Mais, se tal porventura acontecesse, nunca mais se violaria o segredo de Justiça em Portugal…

  9. O Snr. Jaime Santos não consegue pensar fora do quadro traçado pelo “cm” e repetido até à exaustão pelos bem pensantes Pachecos, Claras, Daniel Oliveiras, fedorentos e C.ia. E do mesmo modo também se farta de considerar o homem inocente até prova em julgamento ou gostaria que fosse inocente e tal mas pelo meio de tais bons sentimentos vai afirmando que é uma versão do de Oeiras que é eleito sob o slogan de que “rouba mas faz”.
    Veja-se a sua frase réplica do “cm” de que “Sócrates foi viver à grande e à francesa para Paris”. Pense, se o “cm” tivesse investigado Miguel Relvas e desse em publicitar em parangonas garrafais diariamente que Relvas chegou à política e ao governo com uma mão atrás e outra à frente e mal saiu do mesmo governo logo se pavoneou pelo mundo do meio dos pouco recomendáveis empresários de Angola e Brasil como banqueiro e nesses negócios de sombras continua, e o MP fosse no encalce de tal constatação a deitar insinuações cá para fora, que diria o pagode e a “elite” bem pensante que determina o politicamente correcto? Que estaria agora dizendo desse eventual caso que tem uma realidade factual e visível muito superior ao caso de Sócrates, o Jaime Santos acerca de Relvas ?
    Pois é, mas o ex-PM foi estudar não saiu do governo para ser banqueiro o que, creio, precisa de capital e livros de contas e cheques não de livros e leituras politico-filosóficas, percebe?
    Viver à grande com dinheiro emprestado. Outra figura de retórica imposta pelo “cm” engolida pelo MP por conveniência e papada e repetida pelos papagaios acima citados e pelo Snr. J. Santos. O “cm” enquando conviu às suas narrativas iniciais chamou rica à família Sócrates especialmente à Mãe apontando-lhe ser dona de 13 apartamentos para além de outros bens. Mais tarde, ao mudar a narrativa tal como o MP fez várias vezes até o DDT Salgado ser apanhado caído morto e colocado na rede à última da hora como bóia de salvação para dar um ar de lógica ao processo desconexo, o dito “cm” inverteu o bico e iniciou a narrativa de que os valores das casas da mãe de Socrates não valiam patavina.
    Mas veja que mesmo valendo pouco valiam pelo menos cerca de um milhão de euros fora o apartamento da Brancamp que valeu mais de seiscentos mil euros. Havia dinheiro de sobra para pagar o empréstimo ao amigo de infância. Este talvez tenha emprestado ao amigo, e sem papeis que é como se empresta dinheiro aos amigos e não com letras ou cheques pré datados como quer o Snr. Santos, menos de um e meio por cento da sua fortuna. Posso dizer-lhe que eu próprio recentemente emprestei mais de seis por cento das minhas economias a um amigo camarada da guerra colonial que estava aflito.
    Só o empolamento propositado dos casos para os valorizar ou diminuir conforme convém e que pessoas como o Snr. Santos enganados pela vingança tabloidizada papam acriticamente ou levados pelo seu próprio calculismo moral que os levam a pensar que naquela situação fariam e por tal acham que o outro, qualquer que seja, nunca deixaria de fazer ou ter feito.
    ” O julgamento político foi feito, o moral pode ser feito (vide acima) e resta o judicial,”. Outra conversa que, historicamente, deve ser observada ao contrário. O juízo moral é que foi feito, inclusive pelo Senhor, quanto ao político sobre a sua obra de governante é a história que vai determinar e sobre o juízo que o poder judicional apurar também será para os historiadores analizarem e reverem certamente. Paulo de Tarso é visto historicamente como o que andou a organizar lapidações dos primeiros cristãos ou como o grande criador da igreja católica? D. Henrique é visto como o homem que enterrou o irmão Fernando em Alcácer Quibir ou como o visionários dos descobrimentos? D. João II é visto como o rei que limpou os Álvares Pereira ou como o grande obreiro das navegações? Marquês de Pombal é visto como o grande reformador do país e de Lisboa ou como o homem que limpou os Távoras? A história é, quase toda, feita de homens condenados no seu tempo e colocados em pedestais mais tarde.
    Todo o pensamento acusatório expresso aqui pelo Snr. Santos é do mesmo estilo moralista piedoso e calculista e pode ser refutado caso a caso como os assinalados e agora comentados.
    Os homens medíocres e calculistas medem os outros por sí próprios e jamais o seu entendimento vai além do ser e pensar comum. A sua perplexidade perante o diferente e a inovação fê-los acusar o visionário de herege, blasfemo, bruxo, louco, etc. e actualmente, democraticamente, queimam-no na fogueira da “corrupção”.

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