O direito: a única salvaguarda contra a ignorância e o populismo

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 22/04/2017)

AUTOR

                                  Miguel Sousa Tavares

1 Anda por aí uma onda daquilo a que Paulo Baldaia, director do “DN”, chamou acertadamente o “jornalismo justiceiro”. O jornalismo justiceiro cavalga a onda dos populismos gerados levianamente pelo jornalismo tablóide e a justiça instantânea das redes sociais. Com medo de perder a onda ou parecer que não entende “o fenómeno Trump” e outras colectivas imbecilidades, julga sem pensar, conclui sem reflectir e compete entre si pelo privilégio de ocupar os lugares de maior proximidade junto do “povo” — a variante contemporânea da proximidade ao poder. Mas povo e justiça não vão bem juntos — e por isso é que nós, as sociedades civilizadas, de há muito abandonámos os autos-de-fé, pelourinhos e julgamentos populares, e os substituímos por um corpo preparado e profissionalizado de executantes da justiça a que chamamos juízes.

Chama-se a isso, a esse absurdo obstáculo entre o povo e a justiça, “Estado de direito”

Por muito que estrague a causa ao jornalismo justiceiro, os criminosos, verdadeiros ou presumidos, não são, nas sociedades civilizadas, julgados pelo “Correio da Manhã”, por sondagens ao povo ou pelo Ministério Público: são julgados por juízes — e não de acordo com o que o povo pensa, mas de acordo com a lei e a sua consciência.

Só por leviana ignorância é que o jornalismo justiceiro pode achar que é possível afastar as garantias e direitos individuais constitucionalmente garantidos e conseguir, a prazo, continuar a viver em democracia. Para quem já decidiu da culpabilidade de suspeitos ainda não julgados e que não se puderam defender, é uma contrariedade que não haja provas contra Dias Loureiro, que as suspeitas lançadas contra José Sócrates ainda tenham de ser confirmadas por um tribunal onde ele vai poder defender-se e tentar contrariar acusações já consensualmente tidas por verdadeiras, ou de que quem tem dinheiro possa valer-se do princípio do ónus da prova de quem acusa, sem ter de demonstrar que não roubou o dinheiro. Sim, tudo isso é uma contrariedade, um embaraço na “luta contra a corrupção” e mais uma série de coisas que contrariam a vontade popular, facilmente estabelecida no Facebook e outros instrumentos de alienação popular. Chama-se a isso, a esse absurdo obstáculo entre o povo e a justiça, “Estado de direito”. E a chatice maior é que, onde ele não existe ou é dispensado, ninguém fica a salvo dos abusos do poder (quem se lembra do Estado Novo sabe-o bem). Por isso mesmo, porque o Estado de direito é uma contrariedade contra a ditadura populista disfarçada de democracia, é que a moda agora são os golpes de Estado por via referendária — Venezuela, Hungria, Turquia —, onde o povo é chamado a dar a sua aquiescência à supressão das garantias que a lei lhe dava. E o povo vota sim, porque lhe disseram que tais garantias são apenas a favor dos “outros”, dos poderosos, dos corruptos, dos bandidos. Até ao dia em que a polícia lhes bata à porta e, culpados ou inocentes, descubram por si que lhes fazem falta leis que os protejam…

2 Aproveitando “um buraco na agenda” (mais difícil do que encontrar um buraco de petróleo no Rossio), Marcelo reuniu-se com um think tank de 20 ‘intelectuais’ de diversas proveniências e ciências, para reflectir sobre “as crises e a transformação da democracia”. Mas, pelo relato da imprensa, parece que, como seria de temer, só ele é que reflectiu e durante uma hora. E, reflectindo sobre os perigos da conjuntura, Marcelo deu o seu próprio exemplo de solução contra o populismo: a sobreexposição dos políticos. Se estiver em todo o lado e a todo o tempo, reflectiu Marcelo, ajuda a preencher o “vazio” e não deixa a nenhum populista espaço para preencher esse vazio. E concretizou com a sua última janela de oportunidade: a queda da avioneta em Tires, quando Marcelo conseguiu chegar lá antes de qualquer televisão, já de gravata preta vestida e, na ausência de familiares das vítimas, passeou-se confortando de afectos uma jornalista da SIC. “O poder político — explicou ele aos outros intelectuais presentes — tem de estar pronto a responder a situações como esta.” Meu Deus, ao que chega a capitulação da inteligência perante a urgência da popularidade!

3 A consideração politica ou intelectual que tenho pelo deputado André Silva, do PAN, é igual à que tenho por uma perdiz sem penas ou um coelho sem pêlo. Decerto que admito a comunhão e solidariedade entre as avezinhas do céu e quem só se alimenta de sementes de sésamo, talos de couve e injecções de politicamente correcto, mas não tenho igual certeza de que a nação e o povo (seja lá isso o que for) fiquem mais bem servidos por um deputado com défice de proteínas e de conhecimento de causa sobre aquilo de que fala.

As várias propostas do deputado do PAN sobre a limitação da caça (um ensaio prévio sobre a sua proibição, pura e simples), é um leviano exercício legislativo apenas assente na ignorância, no preconceito e na má-fé. O seu ponto de partida é que é preciso defender a caça, os animaizinhos, do instinto matador dos caçadores, que tudo querem exterminar. Presume, pois, que os principais interessados na preservação da caça (e os únicos que contribuem para essa preservação) são os mais interessados na sua extinção, chegando ao ponto de insinuar que os caçadores envenenam a caça. Supõe que a pouca caça selvagem que ainda resta não se deve aos caçadores, às suas associações e aos donos dos terrenos, que fazem as sementeiras, os bebedouros e controlam os predadores, mas sim aos deputados politicamente correctos do Bairro Alto, que fazem as leis pelas quais os animais devem reger-se uns aos outros. Imagina, ignorantemente, que proibindo todo o abate de predadores e restringindo os dias de caça, esta se multiplicará e que até os predadores se absterão de caçar nos dias proibidos — ou seja, que, desequilibrando o frágil equilíbrio entre as espécies, nascerá uma nova Arca de Noé, imaginada pelo PAN e com o apoio ignaro do BE. Propõe, grandiloquentemente, uma moratória de três anos na caça à rola brava e ao coelho, que declara em vias de extinção por “excesso de caça”, ignorando que a rola brava está desaparecida porque foi introduzida a espécie exógena da rola turca, a caminho de se tornar uma praga igual ao pombo de cidade, mas que o politicamente correcto de Bruxelas proíbe abater, e que come as sementeiras e afasta as verdadeiras rolas de arribação; e que o coelho bravo está desaparecido há três anos por via de uma epidemia nascida em Itália e passada a França, Espanha e Portugal, e para cuja investigação não há fundos públicos — ao contrário dos fundos disponíveis para comprar a Espanha coelhos produzidos em cativeiro para alimentar os linces, também produzidos em cativeiro. Propõe a proibição das matilhas de cães utilizadas na caça ao javali, desse modo extinguindo a prazo os cães dessas raças e contribuindo para aumentar ainda mais a sobrepopulação de javalis, já uma praga para os agricultores. Lá está: a natureza tem regras elementares que os seus autodeclarados defensores desconhecem. Todas as propostas do PAN sobre a caça reflectem uma profunda ignorância sobre aquilo que se propõe legislar e uma arrogância preconceituosa, que é filha de uma descarada desonestidade intelectual. Há dez anos, havia cerca de 400.000 caçadores licenciados; hoje, com o definhamento da caça — fruto do abandono da agricultura natural e das alterações climáticas — e devido à perseguição do politicamente correcto, são 130.000 e, mesmo assim, nas escolas ensinam às criancinhas que ser caçador é o mesmo que ser criminoso. É o interior que perde uma das suas últimas raízes de sobrevivência. É o que resta do Portugal rural que morre, tentando reconverter-se em asilo da terceira idade rica da Europa. São séculos de costumes, de cultura, de culinária, que se apagam às mãos de um pensamento urbano ditatorial. Mandem então as criancinhas embebedarem-se em Torremolinos, que é muito mais interessante e gera muito mais teses de doutoramento sobre sociologia e muito mais aberturas de telejornais!


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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