(Valdemar Cruz, in Expresso Curto, 11/04/2017)
Os primeiros-ministros dos sete países do sul da Europa (França, Itália, Espanha, Portugal, Chipre, Grécia e Malta), ontem reunidos, como seria de esperar não esboçaram qualquer ato de condenação do ataque lançado pelos Estados Unidos contra a Síria na madrugada da passada sexta-feira. Revelaram até compreensão. E aqui entra a contradição suprema, porque ao mesmo tempo que entendem ser necessário sublinhar que “não pode haver uma solução militar do conflito”, acrescentam que apenas no âmbito das resoluções da ONU e das conversações de Genebra será possível encontrar uma solução política crível, capaz de assegurar a paz, a estabilidade da Síria e a derrota do autodenominado Estado Islâmico. Ou seja, tudo o contrário do que fizeram os EUA e pelo qual estes países mostraram compreensão. Ou então sou eu que estou desfocado, deslocado, e “às vezes sinto-me como um órfão, muito longe de casa”. Este é um lamento com dezenas de anos, que Jimmy Scott canta de uma forma comovente, como o fizeram, entre muitos outros, Louis Armstrong, Odetta, Pete Segger, Charlie Haden ou Prince. São palavras de um espiritual negro, cujo registo mais antigo data de 1870, concebido para denunciar a prática comum de vender os filhos dos escravos. Aqui subverto-lhe o sentido original e converto-o no lamento por um outro tipo de tráfico, o das ideias, a que assistimos no tempo que passa.
Bashar al-Assad é apresentado como o maior dos facínoras, autor de crimes odiosos, inomináveis. Seja ou não, e já se viu como há opiniões para todos os gostos e conveniências, não podem existir dúvidas sobre uma posição de princípio: existindo, esses crimes devem ser firmemente condenados e combatidos, ocorram eles na Síria, na Líbia, Arábia Saudita, em Israel, no Paquistão, no Egito, na Palestina, no Afeganistão, no Irão, no Sudão, ou onde quer que aconteçam e independentemente de quem sejam os seus responsáveis. A questão é, porém, outra. Com o mesmo empenho com que se repudiam as alegadas ações de Assad, tem de ser repudiado qualquer ato unilateral de guerra, executado à margem das decisões das Nações Unidas, e sem uma investigação rigorosa sobre o que realmente possa ter acontecido no terreno. Não permite ações imediatas? É fazer o jogo do agressor? Há hipótese de vetos (não há sempre?). Não é bom para um presidente acossado internamente poder ganhar novo fôlego com uma vistosa ação externa? Talvez não seja, mas o que a comunidade internacional tem de decidir – e Portugal em particular – é se, depois de tanto ter sido festejada por cá a eleição de António Guterres como Secretário Geral da ONU, afinal o que se celebrava era a eleição de um figura decorativa para um organismo que faz de conta que coordena, vigia e assegura o concerto das nações porque, no limite, a última palavra será sempre a que corresponda aos interesses de alguém tão fiável, tão seguro, tão tranquilo, tão previsível como Donald Trump, agora transformado no herói do combate aos russos e seus aliados.
O problema é ser este o mesmo Presidente dos EUA que não há muitos dias era detestado pelo “centrão” que domina a política interna e externa do país, classificado como mentalmente instável, refém dos interesses de Vladimir Putin e desprezado pelos media. Bastaram uns mísseis e tudo mudou. O normal, portanto.
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O título dado a este Expresso curto não é meu. Aponta para um caminho ao qual teria preferido dar continuidade logo na abertura, para, por uma vez, chamar a destaque algo verdadeiramente importante. Falta poesia ao mundo em que vivemos. Foi o que me ocorreu ao socorrer-me daquele verso de Manuel Alegre. Faz parte do poema “Metralhadoras Cantam”, e integra um dos livros maiores de um tempo que, sendo de guerra, ousava o que parecia ser a utopia de reivindicar a paz e a “liberdade”, “palavra clandestina em Portugal/que se escreve com todas as harpas do vento”. Tem já meio século este “dilacerado canto a um país impossível, a um destino coletivamente frustrado e idealmente exemplar”, como dele dizia Eduardo Lourenço. A edição comemorativa dos 50 anos de “O Canto e as Armas” decorrerá a partir das 18h30 de hoje na Biblioteca Nacional de Portugal, ao Campo Grande, em Lisboa.