Por que estamos a andar para trás

(José Pacheco Pereira, 10/12/2016)

Autor

                    Pacheco Pereira

Várias coisas que sempre defendi, prezei e considerei importantes na vida política das democracias europeias estão em profunda crise e não penso que sejam capazes de sair dessa crise tão cedo. É o caso da emancipação da vida política democrática do dilema esquerda-direita, do centrismo e da moderação “central” que partidos do centro-direita e do centro-esquerda traziam às democracias, isolando os extremismos, é a aceitação de que as políticas em democracia são pela sua própria natureza plurais e resultam de uma escolha livre e não da imposição do “não há alternativa”, e que, num certo sentido, os eleitores podem, por tentativa e erro, “experimentar”, sempre com recuo e alternativa. A tudo isto somava-se a luta pela prevalência de uma cultura política civilizacional que distinguia a demagogia da democracia. Tudo isto está em profunda crise e não adianta esperar melhorias, porque o tempo não volta para trás em função dos nossos desejos, embora, num certo plano universal, esteja mesmo a voltar para trás. Para o lado errado do de trás.Advertisement

Explico-me, mesmo com o risco de algumas simplificações: a dualidade direita-esquerda sempre me pareceu uma maneira empobrecedora de ver a política europeia desde a Segunda Guerra Mundial, e em particular depois dos anos 60. Saíra-se em 1945 dessa “guerra civil europeia” que opunha fascismo e comunismo e, mesmo que um dos pólos dessa “guerra”, o comunismo, continuasse, o confronto com ele era feito pelas democracias e por governos moderados, com partidos reconstruídos nesse pós-guerra como a Democracia Cristã italiana, os gaulistas e os socialistas franceses, os conservadores e os trabalhistas ingleses e a social-democracia alemã. Não foi um caminho linear, até porque subsistia uma questão relevante para várias potências europeias, a questão colonial, que levou ao ascenso dos movimentos do Terceiro Mundo, cuja importância foi acentuada pela revolução argelina e cubana e pelos movimentos de libertação africanos, a que se somou a crise mortífera da unidade do movimento comunista com a dissidência chinesa. Os soviéticos continuaram a fazer todos os esforços para manter no Terceiro Mundo a bipolarização da Guerra Fria, mas já não o conseguiram na Guerra do Vietname e, com a emergência de novos pólos revolucionários, perderam a hegemonia.

A URSS mudou também com Khrutchov, que foi o primeiro dirigente comunista a compreender plenamente que uma guerra termonuclear não tinha vencedores, só vencidos, e por isso abandonou a ideia, que existia desde a criação dos primeiros países socialistas e depois do “campo socialista”, de que poderia haver uma “luta de classes mundial” que se materializasse numa guerra entre os países socialistas e capitalistas. Uma parte da crise da dualidade esquerda-direita começa também aqui. Khrutchov é uma das mais importantes personagens do século XX, mesmo que raramente figure nas listas dos “dez mais”.

Os anos 60 trouxeram um novo alento para as democracias, mesmo escrevendo direito com linhas tortas. Uma geração que chegou à política nesses anos ajudou a uma renovação cultural significativa das democracias envelhecidas e trouxe novos temas e novas “libertações”, em particular nas questões de género e de raça, que iam muito para além da agenda social tradicional dos movimentos sindicais, comunistas e socialistas radicais que existiam na Europa.

O radicalismo inicial da geração de 60 ajudou a criar um ponto sem retorno e  a entrada desses homens e mulheres no mainstream político fortaleceu as democracias e definiu-lhes novos objectivos. Essa geração não tinha os complexos reverenciais que a esquerda, mesmo a não-comunista, tinha em relação à URSS, integrou na luta pela liberdade os judeus perseguidos e os dissidentes soviéticos e fez parte de alianças sem precedentes como aquela que deu origem ao Solidarnósc, onde o Papa e padres católicos e militantes e intelectuais trotskistas ajudaram a acabar com a Guerra Fria e a derrubar o Muro.

Foi também nesta altura que a dicotomia esquerda-direita começou a perder sentido. Na verdade, foi uma perda de sentido mais instrumental do que afectiva. As “tradições” e o sentido da história pessoal e familiar continuavam muito presos a cem anos de arregimentação, e permanecia igualmente a questão filosófico-política do optimismo e do pessimismo antropológico, que definia uma divisão, mas não era nem é suficiente para lhe definir as fronteiras no quotidiano. Mas a verdade é que, a partir dos anos 60, as fronteiras nítidas do passado começavam a esbater-se e a frase taxativa de Alain sobre quem dizia que não havia direita nem esquerda era de direita, começava a perder sentido.


NB: Há um amigo que segue este blog, e que costuma comentar todos os textos do JPP que se vai deitar ao ar com este. A Estátua fica a aguardar o comentário. De certeza que o Pacheco vai precisar de Hirudoid…. :).

5 pensamentos sobre “Por que estamos a andar para trás

  1. Concordo com a análise mas não há pistas para uma posição ! Eu opto por uma que deu que falar nos EU – não tenho posição.
    E. Ferreira

  2. Por mim, a diferença esquerda / direita continua a fazer todo o sentido e cada vez mais. Na condição de encontrar nos elencos políticos da “nação europeia” entidades capazes de quebrar o famigerado “TINA”.
    2017 pode ser um ano de viragem porque vamos ter muitas mudanças eleitorais e pode ser que alguém com bastante coragem e muito carisma consiga levar outros congéneres a forçar a barra deste nefasto “TINA”! Me parece que será a condição sine qua non para a permanência duma União Europeia que queira avançar.

  3. O texto está incompleto. Aliás, no artigo do Público, Pacheco limita-se a situar-nos na evolução das conquistas de direitos, sociais e outros, e só no final intui que a condição para essa evolução é a melhoria das condições materiais de vida, melhoria essa que estagnou. Ele diz que continuará a discussão em futuro artigo…

  4. Caro estatuadesal, se me estava a convidar a comentar aceito o repto e aí vai o que penso acerca de mais esta ppesegada.
    O homenzinho político deu lugar ao mesmo tamanho como historiador e tinha obrigação, nesta sua condição de historiador, de perceber ou interpretar melhor a História.
    Dá, pp, a entender que a dicotomia, ou dilema como lhe chama, esquerda-direita já não tem sentido e está em vias de extinção. E isto quando, precisamente, a clique que tomou a UE e é mandatária da plutocracia dos “mercados” contra os povos e, sobretudo, contra o povo pobre dos povos aos quais tenta “democraticamente” fazer deles os novos escravos sociais.
    O conceito direita-esquerda nasceu com a Revolução Francesa e é relativamente recente. Contudo, o facto de ter surgido com tal nomenclatura nesse momento histórico não quer dizer que não tenha existido desde sempre. Ou quase. Apenas na sociedade primitiva da GENS comunitária total de terras e mulheres (matriacal) e ligada pela consanguanidade (todos familiares) existiu igualdade consentida entre todos os elementos da GENS. Quando a GENS cresceu e lhe faltou “espaço vital” para sustentar toda a população teve de ir guerrear com as GENS próximas e também por questões de falta de mulheres (pequenos raptos de Sabinas), teve de organizar homens armados para as conquistas até que um dia o chefe (provavelmente o feiticeiro) e os seus homens decidiram apoderar-se do poder violentamente, auto-designaran-se reis descendentes do seu deus e escravisaram em proveito próprio o resto da GENS, TRIBO ou outra forma já mais alargada de comunidade.
    Não se conhecem, na antiguidade, muitas revoltas de escravos mas a Reforma de Sólon, que deu origem à democracia esclavagista de Atenas, insere-se nessa luta de grandes aristocratas proprietários contra pequenos proprietários que, face à prepotência dos impostos criados pela aristocracia agrária eram continuamente arruinados e escravizados.
    Depois tivemos a grande revolta dos escravos romanos e por fim a queda do faustoso império romano perante os bárbaros pobres e ignorantes da Europa. E desde sempre houve a luta contínua, directa e reivindicativa dos escravos contra os poderosos que tem sido o dialéctico motor da civilização.
    Por fim veio Marx, o rato das bibliotecas, que tendo esmiuçado esse passado de lutas entre senhores e escravos definiu tal imparável processo como “luta de classes”.
    E este, tal como pp pensa que actualmente tal luta esquerda-direita, ou poderosos-escravos já não faz sentido, também pensava que tinha descoberto, ainda por cima cientificamente, o sistema para terminar de vez com tal luta e desse modo acabar com a História.
    A tonteria deste era bem mais grandiosa do que a de pp.

    • Amigo Neves. O repto era mesmo para si. Eu já sabia que o Pacheco ia apanhar “porrada”. Se não fosse você, eu próprio lha daria. A luta de classes está cada vez mais aguda. O Pacheco confunde a luta de classes com a existência da “consciência de classe”. De facto, os interesses são cada vez mais antagónicos, veja-se até pela cada vez maior desigualdade na distribuição do rendimento. Contudo, existe também cada vez mais opacidade em relação aos mecanismos que subjazem e determinam tal desigualdade. Quando as economias nacionais se desmembraram, em termos de autarcia e fronteiras, e o capital se globalizou, enquanto o trabalho permaneceu estático e ancorado na lógica sindical local de cada país, os antigos mecanismos de luta perderam a sua eficácia, dando tal origem ao neoliberalismo sem freios, com a conivência cobarde – ou sem soluções à vista -, dos partidos sociais-democratas, vulgo socialistas. Os mecanismos que determinam a acumulação deslocaram-se em larga escala da esfera da produção para o labirinto da movimentação financeira, para lá da geografia do estado-nação e para lá da materialidade corpórea do capitalista-sujeito detentor da riqueza, Perante este novo cenário, os explorados, que o são cada vez mais, conseguem percebê-lo cada vez menos, sendo por isso cada vez mais dificil construir plataformas de luta consequente, e politicamente eficazes. Mas, dizer que, em fuunção deste cenário, a dicotomia esquerda/direita, deixou de existir e que a luta de classes morreu, paz à sua alma, concordo consigo que só pode ser uma “pachecada”… 🙂 Um abraço da Estátua.

Leave a Reply to Jaime SantosCancel reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.