Ir para o passado de Uber

(Daniel Oliveira, in Expresso, 15/10/2016)

Autor

                     Daniel Oliveira

Confortavelmente sentados no banco traseiro de um carro da Uber fazemos uma viagem ao passado. Diz que o ambiente é agradável, o motorista tem pinta e a música não podia ser melhor. Tudo parece ser moderno e, no entanto, nada podia ser mais antigo. Como esta semana sublinhou Ricardo Costa, em menos de 10 anos, 40% dos norte-americanos trabalharão para este tipo de plataformas. Sem contrato, sem qualquer direito, correndo todos os riscos e pagando todos os custos. Dizemos que estes empreendedores da sua própria pobreza são trabalhadores independentes. Mas, há mais de um século, as palavras eram mais cruas: trabalho à jorna. E não está reservado aos menos qualificados. Já começa a ser a norma no jornalismo ou na academia: pagar para ter direito a trabalhar.

O problema não é apenas a ‘uberização’ do trabalho. No comércio, as grandes superfícies, que por cá se multiplicaram sem freio público, esmagaram os produtores, sugando-lhes toda a margem de lucro. Nos media, a Google ou o Facebook já ficam com grande parte das receitas publicitárias que acompanham os conteúdos produzidos por jornais ou televisões. Ao contrário do que se sonhou, a internet favorece a concentração e não a dispersão. O poder sem limites do distribuidor é, a par com a financeirização da economia, a marca deste tempo. Grandes multinacionais controlam o acesso ao mercado e a relação entre produtor e consumidor. Impõem as regras e sacam os ganhos de quem investe, corre riscos e produz. A concentração de poder nos distribuidores globais impede qualquer tipo de regulação, escapa à tributação e destrói as economias locais, desviando grande parte dos recursos gerados. Depois de assistirmos à deslocalização da produção industrial, este tipo de plataformas digitais permite deslocalizar o lucro e a gestão de atividades económicas de proximidade. No caso que andamos a discutir, uma parte significativa do dinheiro que ia para pequenas empresas de táxis passa a ir para uma multinacional que, à medida que for destruindo os seus concorrentes locais, imporá condições cada vez mais draconianas aos seus fornecedores.

Quando vemos como os gigantes da economia 2.0 se vão comprando uns aos outros e como uma empresa como a Amazon já faz distribuição de produtos para a casa, percebemos que a concentração de toda a distribuição ainda está no começo. Não há, na economia local, quem vá conseguir competir com este tsunami. Mas é possível impedir que as nossas cidades se transformem num deserto económico, onde toda a gente vai de Uber para o centro de emprego. E neste caso nem seria preciso muito. Bastaria modernizar a regulação do transporte individual de passageiros e aplicá-la, por igual, a todos. Em vez disso, temos associações de empresários de táxi que se dedicam a degradar um pouco mais a imagem do sector e um Governo que faz leis à medida de uma empresa. Só que isto é demasiado importante para ser deixado nas mãos do senhor Florêncio da ANTRAL e de um obscuro ministro do Ambiente.

Os direitos do trabalho, a preservação do ambiente, a regulação da economia e as políticas fiscais dependem de como reagirmos à ‘uberização’ da sociedade. O deslumbramento com o novo é tão tonto como o saudosismo pelo velho. O problema não é a tecnologia. É a fé parola no futuro que nos leva a não nos prepararmos, com novas regras, para ela.

2 pensamentos sobre “Ir para o passado de Uber

  1. Creio que Daniel toca bem fundo na ferida. O que impressiona é a incapacidade do governo em tomar decisões patrióticas, ou seja, defesa da PESSOA e não das empresas. As empresas antes davam trabalho para suprir de forma escassa os bens necessários à comunidade. Hoje as empresas trabalham não para dar emprego e satisfazer lenta e calmamente as necessidades da comunidade, mas trabalha para sugar toda e qualquer forma de riqueza que possam acumular er distribuir entre si como residencias, barcos, aviões… ou seja tudo inutilidades que ninguém levará consigo. Se isto não é estupidez o que será então estupidez?

  2. Ninguém é obrigado a trabalhar para a Uber. É um completo exagero quando se diz que 40% dos norte americanos … A reflexão acaba por parecer mais um texto de cumprimento de contrato do que algo com alma.

    No dia 15 de outubro de 2016 às 03:47, A Estátua de Sal escreveu:

    > estatuadesal posted: “(Daniel Oliveira, in Expresso, 15/10/2016) > Confortavelmente sentados no banco traseiro de um carro da Uber fazemos uma > viagem ao passado. Diz que o ambiente é agradável, o motorista tem pinta e > a música não podia ser melhor. Tudo parece ser moderno e,” >

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