Trump, a caricatura deste tempo

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/02/2016)

Autor

                         Daniel Oliveira

 

 

Já se sabia que o debate desta madrugada iria ser dos mais vistos de sempre. Porque há um grande entusiasmo com os candidatos? Pelo contrário. São os mais impopulares de sempre. Como me dizia um americano há dois meses, como é que um país com quase 300 milhões de pessoas conseguiu escolher duas de que ninguém gosta? Ia ser o mais visto porque se esperava sangue e porque Donald Trump garante sempre um espetáculo que, não sendo propriamente de qualidade, é animado.

Mas nada como ver o debate para recordar o que é óbvio: ainda há uma diferença entre quem, representando o pior do sistema, sabe do que está a falar, e alguém que, fazendo o número de quem vem de fora, baseia toda uma campanha num discurso que já nem sequer é propriamente populista ou demagogo. A simplicidade com que as coisas são apresentadas roça mesmo infantilidade. Na economia, na segurança e, acima de tudo isto, na política externa, não seria muito diferente perguntar a Trump ou a um miúdo de 12 anos como governar o país. Preocupante é que, na maior potência do mundo, isso não seja óbvio.

No debate desta madrugada, Trum foi Trump. Mas nos disparates de Trump, porque ele é um populista, há coisas que retratam bem o espírito dos tempos que vivemos. E não apenas nos Estados Unidos. Não me refiro ao que já todos sabemos que ele pensa sobre questões raciais, política externa ou segurança. Até porque nesses pontos o homem até se está a tentar moderar, a ver se saca os votos que lhe faltam. Refiro-me à política fiscal, por exemplo.

Vende-se, graças à posição que tem em relação aos acordos comerciais internacionais, que Trump é antiliberal. Na realidade, a sua posição em relação aos acordos com a Ásia, ao que está a ser negociado com a Europa e ao que está em vigor com o México e Canadá, acompanha de tal forma o sentimento da maioria dos americanos que até Hillary se vê obrigada a acompanhá-lo. Quanto muito, pode dizer-se que Trump, um homem que nunca hesitou em mandar fazer o que vende na China, diz o que os eleitores querem ouvir. Mas basta ter acompanhado o debate de ontem para perceber que seguramente não estamos perante um antiliberal.

Foi com grande entusiasmo que o candidato republicano defendeu o seu plano fiscal, que passa pela brutal redução de impostos para as empresas – de 15% a 35%. A maior redução de impostos desde Ronald Reagan: “vai ser uma coisa bonita de se ver”. Tirando no confronto que tiveram sobre política externa e em coisas mais pessoais, este foi o momento de maior disputa com Clinton. E Trump fez o resumo apoteótico dos resultados deste corte fiscal: “As empresas virão. Construirão. Crescerão. Novas companhias nascerão.” Perante a acusação de que estaria a beneficiar os mais ricos, a lógica da resposta de Trump poderia ter sido retirada de um dos muitos artigos publicados esta semana em Portugal: “Os ricos vão criar imensos postos de trabalho. Vão expandir as empresas. (…) Vão pôr milhões e milhões de dólares nas empresas, trazer 2,5 biliões do estrangeiro, de onde não conseguem hoje trazer o dinheiro porque políticos como Clinton não deixam, com os seus impostos tão altos. Eles estão a deixar o nosso país e, acreditem ou não, estão a deixá-lo por que os impostos são muito altos.”

Se retirarmos o lado amalucado e megalómano do seu discurso, Donald Trump usou, contra o aumento de impostos para os mais ricos, defendido por Hillary no debate, os mesmíssimos argumentos que por cá se estão a usar. E apesar de neste contexto se perceber como são inaceitáveis, por aqui pareceram normais.

Mas não é apenas nos impostos que se revela o espírito do tempo que os populistas tão bem condensam. Todo o discurso de Trump se baseia numa ideia cada vez mais popular: a de que a competência dos empresários é transponível para a política. Mais: que eles têm, por “criarem empregos” e garantirem “investimentos”, uma qualquer superioridade sobre políticos. Pouco interessa aqui se Donald Trump é um bom empresário. Interessa em que caldo cultural faz ele este discurso. Ele explica com clareza: “Estou a ser subutilizado. Eu tenho uma grande empresa. Tenho uma enorme receita. Não estou a dizer isto de forma fanfarrona. É porque está na altura deste país ser liderado por quem sabe alguma coisa de dinheiro.” É verdade que nos EUA isto é dito com outra clareza. Porque nos EUA, nação do capitalismo, ser rico é motivo de grande orgulho. E porque lá tudo se diz com mais clareza. Mas, ainda assim, serve para retratar uma cultura política que também se está a impor na Europa. Foi assim que Berlusconi chegou ao poder.

E isto tem, não podia deixar de ter, conclusões perigosas. Quando Hillary acusou Trump de ter dito que esperava a crise levasse ao colapso de muitos, porque assim poderia comprar imobiliário barato e fazer dinheiro, a sua resposta, com a maior das naturalidades, foi esta: “a isso chama-se negócios, já agora”. Quando o acusou de não ter pago impostos federais, ele respondeu: “Isso faz de mim uma pessoa inteligente”. Quando o acusou de não pagar a fornecedores, ele defendeu-se com o pragmatismo: “Eu aproveitei-me das leis da Nação porque dirigia uma empresa. O meu dever era fazer o melhor para mim, para a minha família, para os meus funcionários e para a minha empresa. E foi o que fiz”.

Ao longo da primeira parte do debate, Trump conseguiu resumir, no seu discurso aparentemente incoerente, todo o problema da lógica empresarial aplicada à governação: ela não inclui, como ele deixou sempre bem claro, qualquer tipo de ética política. A busca do bem da comunidade resume-se a multiplicar dinheiro. De resto, é quase amoral. Se consegues escapar aos impostos és esperto, se aproveitas abusivamente as leis cumpres o teu dever para contigo e para com a empresa. Seja como for, fazes o que tens de fazer e por isso és bom.

O problema de transformarmos os homens do dinheiro em oráculos políticos das Nações, como fazemos nos dias que correm, é que a amoralidade do capitalismo deixa de ter os freios morais que o impedem de se autodestruir e, bem mais importante, de nos destruir. E não é preciso que o homem do dinheiro seja Donald Trump.

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