Marcelo e o efeito boomerang do populismo

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 13/07/2016)

Autor

                      Daniel Oliveira

O mal-estar com a democracia é da natureza da própria democracia. Porque a democracia é o único sistema que garante as condições necessárias para a sua própria fiscalização e crítica. Claro que este mal-estar tende a acentuar-se em momentos de crise económica e social e quando as pessoas sentem que os eleitos decidem hoje muito pouco. A posição de muitos cidadãos em relação aos seus eleitos é, hoje e em geral, marcada pela má vontade e pela má-fé. Como não têm tempo ou instrumentos para avaliar a verdadeira corrupção, o verdadeiro desperdício de recursos e os verdadeiros problemas políticos do país, entretêm-se com pequenos factos. Sabendo isso, os tabloides, que não gostam de tratar de problemas sérios que incomodem poderes a sério, oferecem aos cidadãos pequenos “escândalos” que vendam jornais e mantenham as pessoas entretidas.

Um dos temas habituais são os custos das viagens dos detentores de cargos políticos. Em todo o lado, presidentes e primeiros-ministros têm formas próprias de deslocação rápida. Carros e aviões (ou helicópteros) que permitem fazer mais depressa viagens entre pontos que não têm ligações comerciais. Qualquer pessoa informada que não tenha um preconceito com o exercício do poder político acha absolutamente normal que a um chefe de Estado sejam dadas algumas condições de trabalho que o aproximam, mesmo que pouco, de um administrador de uma empresa de alguma dimensão. Esperando-se a sobriedade que o poder democrático exige, é aceitável que um Presidente da República use, nas viagens oficiais que faz, um avião da Força Aérea. Desta vez foi a viagem de Falcon a Lyon, quando Marcelo Rebelo de Sousa vinha de Trás-os-Montes, que deu direito a mais uma notícia do “Correio da Manhã”.

Na verdade, o Presidente está a colher o que semeou. Foi o próprio que fez uma campanha em que, para além de ter decidido não usar cartazes (o que é uma escolha legítima e no seu caso compreensível), decidiu atacar os outros candidatos por não o acompanharem. Com anos de exposição em horário nobre de um canal generalista e com a comunicação social a fazer a campanha por ele, Marcelo não precisava dos cartazes para nada. Ao fazer populismo com isto, criticando os outros candidatos por se darem a conhecer através de meios próprios, Marcelo explicou uma coisa: que para ser eleito para um cargo tem de se ser escolhido primeiro pela comunicação social. Mas, mais grave do que isto, alimentou o discurso populista sobre os custos da democracia. Agora, já Presidente, é vítima desse mesmo discurso.

O “Correio da Manhã” não faz jornalismo e a generalidade dos visados não reage a não ser que seja alvo de notícias realmente atentatórias da sua dignidade. Mas Marcelo reagiu. Reage sempre e a tudo. E neste caso reagiu da pior forma. Informou que tinha pago a viagem do seu bolso. Explicou que é “mais papista do que o Papa” e que já aconteceu pagar do seu bolso almoços de trabalho em Belém. Se a moda pega, os detentores de cargos políticos passarão a pagar para trabalhar. Depois de ter explicado aos seus adversários que não deve haver propaganda na campanha e que devem ser os jornalistas a escolherem os candidatos, Marcelo explica que para ocupar um cargo político tem de se ter dinheiro na conta para pagar as despesas.

O frenesim mediático de Marcelo Rebelo de Sousa leva-o, com alguma frequência, a ceder a um populismo que nem me parece que lhe seja natural. Como quer que a sua popularidade se baseie mais nos afetos (considerações sobre a sua personalidade) do que em opções políticas, está condenado a este tipo de gestos simbólicos que rapidamente se tornarão insustentáveis e se virarão contra ele.

Mas o mais grave é que este tipo de cedência ao populismo ajuda a construir uma perigosa ilusão: a de que a democracia não tem custos para os contribuintes. Tem. Será, apesar de tudo, sempre mais barata do que a ditadura.

Mas há uma diferença entre a seriedade de quem exige rigor no uso de recursos públicos e a mesquinhez de quem usa cada despesa na representação do Estado para diminuir a democracia. Um Presidente que seja cúmplice desta demagogia está, ele próprio, a enfraquecer a democracia, retirando-lhes as condições materiais para ser exercida.

4 pensamentos sobre “Marcelo e o efeito boomerang do populismo

  1. “Explicou que é “mais papista do que o Papa” e que já aconteceu pagar do seu bolso almoços de trabalho em Belém. Se a moda pega, os detentores de cargos políticos passarão a pagar para trabalhar. […] Marcelo explica que para ocupar um cargo político tem de se ter dinheiro na conta para pagar as despesas.”
    Já nos aconteceu a todos no nosso trabalho…

  2. E o que há para dizer do barbeiro/cabeleireiro de François Hollande, que é pago 9800 € por mês por exercer a sua função junto do Presidente , 24h por dia, 7dias / 7, tendo, disse ele, vendido o seu salão para preencher esta função presidencial ??? Não é abuso ?
    Agora concordo com o espírito do seu artigo. Um presidente deve poder fazer rapidamente o que tem de fazer, e temos de discernir o que é benéfico para o país, daquilo que é completamente accessório.

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