Orçamento é sempre uma mão que tira e outra que dá. A questão é sempre quanto tira e quanto dá a quem

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 08/02/2016)

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                           Daniel Oliveira

Orçamento de Costa sob fogo cerrado”, titulava o “Diário Económico”, que acrescentava: “Troika receia regresso ao passado. Fitch volta a ameaçar com corte de rating.” “Lá fora e cá dentro ninguém acredita no orçamento de Costa e Centeno”, explicava o jornal “i”. “Bruxelas ameaça com sanção inédita” explicava o “Negócios”. “Nova crise por um fio”, dizia a manchete do ”Sol”. “Alerta: Governo tem até amanhã para convencer Bruxelas”, dizia-se no “Diário de Notícias”. Álvaro Beleza duvidava: “não sei como Mário Centeno vai sobreviver a tudo isto”. Marco António Costa, do PSD, dizia que as negociações com a Europa eram “uma brincadeira de mau gosto”. Medina Carreira avisava que poderia vir aí um segundo resgate, coisa que, tem de se dar o desconto, diz desde que houve o primeiro, à espera de, nas próximas décadas, poder dizer que avisou. Enfim, o mundo ia desabar só porque o Governo fez uma coisa que se tinha dito que não podia ser feita: negociou mesmo com Bruxelas.

Mas, como se chegou a um acordo, aquilo que era um conjunto de medidas despesistas, “uma gestão de pré-eleições”, nas palavras do político-banqueiro-reformado Mira Amaral, passou a ser um orçamento de austeridade. Como veremos mais à frente, houve alterações depois da negociação com Bruxelas. Uma delas relevante, como muito bem assinalou Pedro Santos Guerreiro: a não descida da TSU para salários inferiores a 600 euros. Mas, como terá de dizer qualquer pessoa séria, o Orçamento não passou a ser o exato oposto do que era.

Vamos às medidas, mas concentrando-nos apenas nas que afetam as famílias de forma mais evidente. E tentem-me explicar, com base nisto, como é que temos um agravamento da austeridade. Deixando de lado o reforço da dotação orçamental de vários serviços públicos, que se refletem em rendimento indireto (as pessoas quando abandonam o SNS, porque ele se degrada, e vão para o privado, perdem rendimento), fiquemos por aumento de rendimento um pouco mais óbvio.

A quociente familiar ajudava tanto mais uma família com filhos quanto maiores fossem os seus rendimentos. Apesar de ter um efeito nulo na esmagadora maioria das famílias, era apoiada pela Associação das Famílias Numerosas, que representa um sector social e até cultural muito específico. Agora, passámos a ter deduções fixas de 550 euros por filho (e 525 por ascendente), um apoio que deixa de ser regressivo, para ser igual para todos. São os mesmos 250 milhões mas distribuídos de forma mais justa.

A redução do IVA da restauração para comida e cafetaria, que corresponde à atividade, na restauração, que tem mais mão de obra integrada, é uma meia promessa cumprida, e por isso uma meia mentira. Mas foi aceite e apoiada pela ARESP, representante dos interesses da restauração, um sector que passou brutais dificuldades nos últimos anos e que tem um enorme papel na criação de emprego.

A reposição integral dos rendimentos da Função Pública tem sido sublinhada pela direita, porque repor rendimentos tirados aos trabalhadores do Estado é, ao que parece, um pecado – e não um dever. E porque isso permite a retórica do dinheiro tirado aos contribuintes para pagar a funcionários públicos. Um argumento falso, se olharmos para a totalidade dos valores em causa. Ainda assim, é bom recordar que este dinheiro não vai para o espaço. Vai para a economia e para o consumo.

A reposição do Complemento Social para Idosos, o aumento do valor por filho do Rendimento Social de Inserção e o aumento do abono de família corresponde a um aumento geral dos apoios sociais. A isto, temos de juntar a descida das taxas moderadoras em 24% e o alargamento da tarifa social de eletricidade de 100 mil consumidores para cerca de meio milhão, permitindo que mais 400 mil famílias poupem de 7 a 10 euros por mês.

A redução da sobretaxa do IRS, que afetará 99% dos contribuintes, sendo que 98% terão uma redução igual ou superior a 50%. Mais a eliminação de parte da Contribuição Extraordinária de Solidariedade. Se é verdade que sobem vários impostos, os que incidem sobre o trabalho baixam 2,5% e os diretos 1,9%. As duas coisas são compensadas num aumento dos impostos indiretos em 6,6%, mas já lá vou.

A isto tudo temos de acrescentar o aumento do Salário Mínimo Nacional e a atualização das pensões. Só com isso temos o cenário completo.

Do lado contrário, mais uma vez concentrando-me nas famílias, temos o aumento dos impostos sobre os automóveis e o combustível. Não é um imposto progressivo e isso tornaria a medida injusta. Mas a opção do governo parece ter sido ir buscar dinheiro onde houve alívio. O preço da gasolina e do gasóleo desceu, no último ano e meio, 16% (o do petróleo desceu 75%). Com a subida do imposto sobre combustíveis em sete cêntimos por litro o Governo mantém os preços abaixo dos que eram praticados a 1 de janeiro deste ano, há pouco mais de um mês. Ou seja, esta perda de rendimento não se sentirá em relação ao que se tinha no ano passado. Pelo contrário: continua a haver ganho de rendimento. Curiosamente, ninguém se lembra de que no ano passado Pedro Passos Coelho aumentou seis cêntimos os impostos sobre os combustíveis. Só que não foi para redistribuir rendimento, e veio com outras medidas de austeridade. De tal forma que ninguém deu grande importância ao facto.

Não me parece que tenha sido absurdo ir buscar esse enorme ganho (e, com o imposto automóvel, às duas principais importações nacionais), que ficaria apenas nas mãos de quem usa carro, para distribuir uma pequena parcela por todos. Mas para isso é preciso que o Governo cumpra duas promessas: a de garantir que este aumento não se sente nos transportes públicos e de mercadorias (por via fiscal) e a de atualizar este imposto se a gasolina voltar a subir, como garantiu o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. E para isso tem de ter um plano B para ir buscar o dinheiro que perca.

Aos combustíveis e automóveis acrescentam-se o aumento do imposto sobre o tabaco e sobre o crédito ao consumo. O segundo, na minha opinião, é mais do que defensável. O excesso de crédito ao consumo é um problema gravíssimo para a nossa economia e não pode continuar a substituir rendimento.

Podemos pôr ou não pôr nestas contas alguns dos impostos sobre operações bancárias, mas não sabemos se elas serão ou não refletidas nos consumidores finais. O que não se pode fazer, como vejo por aí, é chamar austeridade a tudo o que seja imposto, como se um imposto sobre um banco ou o facto dos fundos imobiliários passarem a pagar IMI, como todos nós, fosse um ataque à classe média.

Feitas as contas, chegamos ao deve e haver da austeridade para as famílias. Estes números, que são estimativas arriscadas e depois de ver dados contraditórios (que eu próprio tive de ir corrigindo), são úteis apenas para ter alguma noção das proporções. A redução da sobretaxa do IRS corresponde a mais ou menos 430 milhões de euros. A reposição dos salários dos funcionários públicos serão 450  (e não, como por aí se diz, aquilo para onde todo o dinheiro é canalizado). No aumento dos apoios sociais como o RSI, CSI e abono de família, são mais 200 milhões. Dá um total próximo de 1080 milhões de euros de ganho para as famílias. Se somarmos a isto o aumento do salário mínimo nacional (228 milhões, que não vêm do orçamento) e a redução da Contribuição Extraordinária de Solidariedade (15 milhões), fica próximo dos 1300 milhões. Se ainda acrescentássemos a descida de parte do IVA da restauração (175 milhões), que pode não ter efeitos nos preços, ficaríamos próximo os 1500 milhões. E aqui não entram a redução das taxas moderadoras e o grande alargamento da tarifa social de eletricidade. Nos impostos sobre as famílias, onde entram automóvel (70 milhões), combustível (340 milhões), tabaco (45 milhões) e crédito, temos uma perda que andará próxima dos 450 milhões. Ou seja, é verdade que o governo dá com uma mão o que tira com a outra. Mas se nos ficarmos pelas famílias, dá muito mais do que tira. O problema é que há quem queira pôr no deve e haver das famílias perdas que são de outros.

É evidente que o governo teve, na negociação com Bruxelas, derrotas. Duas, essencialmente. Uma é que a regra de que só pode entrar um funcionário público por cada dois que saiam se mantém, isto apesar dos serviços púbicos já estarem no limite. A outra, e muito relevante (apesar de corresponder apenas a 135 milhões de euros), foi a não descida da Taxa Social Única para trabalhadores com salários inferiores a 600 euros. Esta medida era especialmente importante por ser, com a subida do salário mínimo, a que mais impacto tinha nos rendimentos dos trabalhadores mais pobres. Isso, para além de ser um importante contributo para o combate à desigualdade, permitia um aumento do consumo interno com menores efeitos nas importações, porque a componente importada do consumo das famílias com menos recursos é menor. Era um importante instrumento económico que a Comissão Europeia, na sua infinita estupidez, conseguiu destruir. Resta esperar que a maioria parlamentar tente compensar este revés no debate do Orçamente na especialidade, sem pôr em causa o acordo já firmado com Bruxelas.

Como é habitual quando se negoceia, têm-se derrotas e vitórias. A direita não o sabe porque nunca o tentou fazer em Bruxelas. O que é natural, já que nada a separava da perspetiva que a troika tinha sobre o que deveria ser feito. Se é verdade que Costa e Centeno cederam na TSU para salários abaixo de 600 euros, o que afeta parte da sua política salarial e económica, o orçamento não passou a ser o oposto do que era. Podem chamar a este orçamento “austeridade de esquerda” ou carpaccio salmão. Não é, com toda a certeza, a continuação do que tivemos nos últimos cincos anos.

Um pensamento sobre “Orçamento é sempre uma mão que tira e outra que dá. A questão é sempre quanto tira e quanto dá a quem

  1. Será cedo talvez para se retirarem conclusões.
    Contudo, a subida brusca dos juros da dívida pública portuguesa verificada nos últimos dias, estavam em 2,60% do PIB há cerca de quinze dias, subindo bruscamente de há três ou quatro dias atras para os 3,50% do PIB hoje, leva-nos a concluir tratar-se de um claro ataque ao governo português e à proposta de Orçamento para 2016, que como sabemos, é ideologicamente contrário aos do anterior governo de direita.
    Pelo decorrer das negociações do esboço do Orçamento que o governo teve com Bruxelas, constatou-se que este Orçamento não lhe agrada embora, com muitas reservas, o deixasse passar.
    Estamos ainda a mais de um mês da aprovação do Orçamento na Assembleia da Republica prevista para 24 de Março. Mas, a manter-se o rimo dos últimos dias da subida de juros da dívida pública chegar-se-á a meados de Março com juros altíssimos e insuportáveis.
    Será que o Eurogrupo, a CE, a Troika, estão de facto tão obstinados em suas políticas de austeridade, obrigando os países a seguirem cegamente e sem recusas as suas directrizes mesmo quando à revelia da vontade dos seus povos expressa democraticamente nas urnas, indo ao ponto de lançar o euro numa nova crise e provocando mais instabilidade financeira na Europa?
    Não estranho que seja essa a sua estratégia. Sempre se mostraram inflexíveis na sua ortodoxia.
    Ou dão tréguas e terminam com esta “guerra surda” contra o governo português, veiculada internamente pela gritaria da direita radical, ou muito em breve teremos uma crise política no país. E de pouco valerá à direita radical atirar então culpas ao PS, porque quem sofrerá será certamente, uma vez mais, o povo português. Aqui sim, será uma verdadeira vitória de Pirro da direita.

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