(Daniel Oliveira, Expresso Diário, 01/02/2016)

Daniel Oliveira
Já aqui me espantei com aqueles que acreditavam num crescimento de 2% sem qualquer medida que animasse o mercado interno e consideram delirante um crescimento de 2,1% com uma grande reposição de rendimentos. Já aqui expliquei como as dúvidas da agência Fitch são absurdas, por compararem as previsões feitas sem estas medidas com previsões que não as incluíam, pretendendo assim afirmar que as políticas orçamentais têm um efeito nulo na economia, o que desafia todas as teorias económicas conhecidas.
Há, isso parece evidente, uma excitação incontida perante a possibilidade de algo correr mal com a Europa. Recordo que no ano de 2014, quando se debatia o Orçamento de Estado de 2015, várias notícias davam conta de avisos semelhantes aos que agora ouvimos. Os jornais davam conta de que a UTAO (Unidade de Trabalho de Apoio ao Orçamento, da Assembleia da República) alertava para a “elevada incerteza” das previsões de crescimento então anunciadas. Bruxelas fazia saber que não acreditava no défice anunciado, falava de 3,3% em vez dos 2,7% prometidos pelo governo de Passos Coelho. E nem por isso se anunciavam a queda do Governo e uma nova intervenção da troika. Ou assistimos a um processo de dramatização ou achamos que a Comissão Europeia tem comportamentos diferenciados conforme quem está no governo.
Pode ser que haja diferença de tratamento. Tiraremos a prova dos nove se, depois de ter fechado os olhos ao que a Espanha fez – desobedeceu às regras europeias quanto ao défice estrutural e nada lhe aconteceu –, a Comissão Europeia for severa com Portugal. Saberemos se participa em jogos políticos internos aos Estados membros. O que não nos espantaria. Veremos se a pressão de Rajoy para que Portugal seja punido como ele próprio não foi será mais forte que a pressão italiana, em defesa de leituras menos restritivas, no momento em que grandes economias vão obviamente violar as metas orçamentais. Como sabemos, a Europa não trata de regras. Trata de influência política. O Syriza não tinha nenhuma. António Costa acha que tem, por via dos socialistas. Veremos.
O exercício feito por António Costa é arriscado. Não em relação ao crescimento ou outros dados económicos, onde as previsões, olhando para o cenário geral, me parecem pelo menos aceitáveis. Mas em relação ao défice estrutural. Costa e Centeno dizem uma coisa lógica: que medidas temporárias não podem, por definição, entrar do défice estrutural. Este exercício faz subir o défice estrutural do passado (que contou com receitas e cortes extraordinários) e descer o do presente (que provoca novas perdas de receita e repõe custos). Apesar da lógica, é contabilidade criativa. Nada que a própria Comissão Europeia não faça com frequência. Mas com os amigos. Numa Europa onde reina a arbitrariedade das regras, Costa acha que também pode participar neste jogo de fingimento. Veremos se pode.
Seja como for, é evidente que Costa está a chocar com um facto que tentou sempre iludir: que as políticas anti-austeritárias são incompatíveis com as metas burocráticas e totalmente artificiais definidas pela Europa. Para fugir a esse facto, tentou meter o Rossio na Rua da Betesga, fazendo, com criatividade, o Rossio mais pequeno e a Rua da Betesga maior.
Este exercício baseia-se no facto de Costa saber que as regras europeias são elásticas, conforme o peso político de cada um. Saberá agora qual é o grau de empenhamento dos seus aliados socialistas na Europa. Porque a Europa não se faz, ao contrário do que se diz, de um conjunto de regras claras. A Europa é este jogo viciado. Veremos quantas cartas marcadas tem Costa. Como português, e ao contrário dos que nos últimos quatro anos representaram Bruxelas em Lisboa em vez de representar Portugal na União, desejo-lhe muita sorte.
Um pensamento sobre “O Rossio, a Rua da Betesga e a fé nos amigos”