Jornalismo pepperoni

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/09/2015)

         Daniel Oliveira

                        Daniel Oliveira

Os jornalistas estão acampados à porta de José Sócrates, à espera de nada para noticiar nada. Entretêm os telespectadores com o oposto do que é jornalismo: não selecionam, não dão prioridade a nada, não nos dizem nada que nós não saibamos. Um homem avança e traz com ele….traz… uma piza. Saberemos depois, graças às perguntas dos jornalistas, que é de extra-queijo e pepperoni. Uma piza para uma pessoa, responde o rapaz assustado. Percebendo que o recibo não tem o andar o jovem pergunta, num momento que começa a fazer parecer tudo aquilo uma rábula de humor, “é para vocês?” Afinal de contas, o único que ali parece ser dotado de capacidades intelectuais parte do princípio de que tanto interesse numa piza só pode resultar de fome.

Enquanto lhe fazem perguntas, nunca informam o estafeta da razão de tanto alarido, ignorando o seu direito de saber porque é que está a ser entrevistado e transformando-o numa espécie de divertimento para o telespectador. Até que a jornalista da CMTV, esquecendo-se (se alguma vez soube) que o papel do jornalista é relatar os acontecimentos, não é provocá-los, diz: “então toque lá à porta”. Outros, num sussurro, incentivam: “a sério, vai lá”. Uns pândegos estes jornalistas. No comportamento de matilha, em que nenhum profissional ali presente parece aperceber-se do ridículo da situação, todos continuam o cerco a um rapaz que mais nada tem para dizer a não ser que tem ali uma piza, é de extra-queijo e pepperoni e talvez seja para uma pessoa: “É pá, para lá de filmar, a sério, estão a brincar com isto ou quê?” A pergunta é certeira e feita pela única pessoa presente com algum sentido do ridículo. A ela, uma jornalista responde com uma afirmativa: “agora respondemos ‘isto é para os apanhados’”. Espanta que a vergonha alheia não fosse, naquele momento, vergonha dos próprios.

Por mais que o homem pergunte para quem é a piza, os jornalistas não lhe respondem. Mas a jornalista da CMTV não se fica por aí. Sendo a CMTV não poderia ficar. Quando o estafeta vai entrar diz: “podemos acompanhá-lo a entregar a piza”. Nesse momento os outros acordam da loucura coletiva e dizem-lhe que não pode ser. O que é uma pena. Porque usar aquela pessoa, sem lhe dizer nada, como forma de se aproximarem um pouco mais da casa de Sócrates, tudo à nossa frente e em direto, teria sido mais um momento alto da deontologia jornalística. Não fosse a polícia, que impede comportamentos delinquentes, talvez muitos não hesitassem em fazê-lo. Frustrada, do lado de fora da casa, a jornalista começa o relato, para não perdermos pitada do extra-queijo: “E agora vai entrar um estafeta de uma cadeia de piza para entregar uma piza. Uma piza no número 33. Este é o segundo estafeta para entregar jantar, esta que será a primeira refeição de José Sócrates desde que saiu do estabelecimento prisional de Évora…”

São seis minutos de direto (uma eternidade em televisão), com este espetáculo patético. Não é a imbecilidade que leva os editores a querer isto. Se fosse, não era um hábito, que o direto com o estafeta da Telepiza apenas tornou mais evidentemente grotesco. Estes diretos não têm, nunca tiveram, a função de informar. Podia estar ali um jornalista, qualquer outra pessoa ou uma câmara fixa. Aquilo não pretende cumprir uma função diferente às transmissões do quotidiano banal de pessoas banais, em programas como o “Big Brother” ou a “Casa dos Segredos”. Entretém o voyeurismo do público, ocupa antena com poucos custos e dá audiências.

Só há um problema: não sendo isto jornalismo, não devia ser feito por jornalistas. E por isso eles deveriam recusar-se a fazê-lo. Dirão que sou demasiado severo. Que a pressão dos editores é enorme, a concorrência e a precariedade obrigam a coisas destas. Talvez seja verdade. Mas no dia em que um jornalista passa a dizer que apenas cumpre ordens, pode ter uma justificação para o seu comportamento, mas deixou de ser jornalista. A culpa até pode não ser dele. Mas um jornalista sem autonomia é o mesmo que um estafeta sem piza. Não serve para nada. E grande parte da informação que as nossas televisões nos oferecem servem para muito pouco. As pessoas percebem isso e as televisões estão a perder os públicos mais qualificados que, em média, dizem os estudos, são quem lhes garante as receitas em publicidade.

Ignorando por minutos as questões éticas e deontológicas, que são as que devem interessar aos jornalistas, na sua fuga para frente as televisões de informação estão a cavar a sua própria sepultura. Se é para nos dar bola e pepperoni, o telejornal das 20 horas é capaz de chegar.

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