O anti-Zorro

Faz hoje 40 anos que se materializou uma iniciativa política dos setores conservadores da sociedade portuguesa, civil e militar,  que ficou conhecida por manifestação da Maioria silenciosa e cujo objetivo visava o reforço da posição política e militar do então Presidente da República, General António Spínola. A manifestação foi interditada pelo Movimento das Forças Armadas, foram levantadas barricadas populares nos acessos a Lisboa e a outras localidades, foram detidas algumas figuras ligadas ao regime que tinha sido deposto a 25 de Abril de 1974, e Spínola acaba por resignar sendo substituído na Presidência da República pelo General Costa Gomes.

De facto, o 25 de Abril foi uma Revolução sem sangue, mas não foi seguramente uma Revolução sem contestação. Apesar de existir, à época, um largo consenso relativamente a dois dos seus objetivos, a saber descolonizar e democratizar, no que tocava à definição do modelo económico a seguir, as tensões e contradições eram mais que evidentes e eram transversais às próprias forças militares no poder. Tais tensões vieram a enfrentar-se, de novo, no golpe militar de 25 de Novembro de 1975, tendo prevalecido a linha moderada, pró economia de mercado e europeísta. Somente após a entrada em vigor da atual Constituição da República em 25 de Abril de 1976 se verifica algum esmorecimento das tensões e uma clarificação institucional do modelo político-económico a prosseguir.

Anos, décadas, passaram.

Fizemos eleições, tivemos Governos vários, aderimos à Comunidade Europeia, entrámos no Euro. Alfabetizámos o país, criámos o Serviço Nacional de Saúde, eliminámos praticamente a mortalidade infantil. Criámos infraestruturas básicas, estradas, hospitais, escolas, e subimos em todos os rankings que medem o desenvolvimento humano.

Mas parece que, por secreto desígnio, o mês de Abril é sempre para este país o mês das boas e das más notícias. Em Abril de 2011 tivemos que recorrer ao financiamento de instituições internacionais, pelo que BCE, FMI e Comissão Europeia, a troika de má memória,  passaram a ter uma influência decisiva na condução dos destinos do país.

De passagem, e em consequência da intervenção externa, tomou posse, em 26/06/2011,  o XIX Governo Constitucional, dirigido por Pedro Passos Coelho.

Desde essa data até hoje passaram 3 anos, 3 meses e 2 dias. Tempos de chumbo, tempos de devastação, tempos de lágrimas para muitos, tempos de saque e festim para poucos.

Se as ações dos Governos raramente tem um apoio unânime, porque governar é fazer escolhas que não podem beneficiar todos, o melhor Governo será aquele cujas escolhas beneficiem o maior número de cidadãos. Ora, se usarmos essa métrica, pelos efeitos que já produziu até ao momento, o atual Governo é o pior Governo que em 40 anos de democracia se perfilou perante o país. Passemos a elencar.

  1. Amputou os rendimentos de quem? Da maioria dos cidadãos, porque a maioria são os que vivem de rendimentos do trabalho e de pensões;
  2. Aumentou os impostos a quem? A quem vive de salários e pensões;
  3. Baixou os impostos a quem? Às empresas, via redução do IRC;
  4. Alterou a legislação laboral, a lei do arrendamento, e todo o quadro legislativo de forma a precarizar, despedir, a empobrecer e a vergar quem?  Quem vive de salários e pensões;
  5. Quando fechou escolas, amputou hospitais, reduziu serviços públicos, prejudicou em maior grau quem? Quem vive de salários e pensões.

E tudo isto em nome da suposta necessidade de expiarmos a culpa de termos escola pública, serviços de saúde universais e todos os outros benefícios do Estado Social,  ou seja promovendo a destruição daquilo que melhor o 25 de Abril permitiu ao país construir e almejar. Ou seja, mais uma vez prejudicando muitos, de forma a ampliar os privilégios de poucos. Uma ressurreição, um ajuste de contas com a História, dessa maioria silenciosa de 1974, de novo pronta a cavalgar o país e os seus recursos.

E tudo, supostamente, para pagarmos a famigerada dívida, e para melhor nos ajoelharmos e podermos debitar ave-marias aos santíssimos mercados. ( Já não falo no Santíssimo Espírito Santo porque parece que caiu em desgraça.)

Mas o saque aos salários e pensões ainda não chegava, porque, a dívida era grande mas a nossa era galáctica até por ser a herança de duas ou três gerações que tinham, segundo o almanaque da propaganda governamental, vivido à tripa-forra.

Ele, Passos, ele era o justiceiro, o anti Zorro, o Robin dos Bosques virado ao contrário que vinha tirar aos pobres para dar aos ricos, repondo a ordem ancestral das desigualdades, que décadas de Estado Social tinham utopicamente reduzido.

Era preciso vender as coisas, a república. E vender rápido e barato, se possível com boas comissões. E lá se foi a luz, as águas, os lixos, os bancos, os hospitais, as estradas, etc. Ao desbarato, aos amigos,  o Estado e o seu acervo em leilão. Empobrecer o país para o desvalorizar e poder vender ao mais baixo preço foi esta a ação e o programa deste Governo.

Mas pior: venderam as almas, venderam a cerviz, venderam os jovens, venderam o futuro de Portugal.

Comissionistas vergados aos interesses mais ou menos obscuros da finança internacional.

Alquimistas às avessas entretidos a transformar ouro em latão, para mais depressa o transformarem na pechincha apetecida por interesses aquém e além Pátria.

Conformistas nos seus pequenos ódios, nos seus egoísmos medíocres, prisioneiros da sua pequenez intelectual, e da sua sobranceria relativamente ao acervo histórico de um país antigo, sofredor, lutador, mas sonhador também.

Quando se mata o sonho mata-se o futuro.

E se mais dislates não tivessem feito, bastava esse, enorme, para que serem julgados e condenados pela História, e varridos para o sótão das nossas más recordações.

Na ausência de justiça, o que é a soberania que não o roubo organizado?
(Santo Agostinho).

28-09-2014

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