O 1º de Maio, seguido de homenagem.

1º DE MAIO

Há quem diga que já não há trabalhadores. Os trabalhadores teriam sucumbido sob os escombros de uma qualquer praga de robots, admirável mundo novo de carcaças inteligentes, e são agora ditos colaboradores.

Há quem diga que também já não há patrões. Os patrões teriam comungado o espírito da solidariedade e acordado numa manhã solar, imprevista e inédita, e são agora empresários, empreendedores, iniciados do saber-fazer.

Há quem diga que também já não há propriedade. Pelo menos com cara, a efígie do sinete, a lacre. A propriedade agora é uma profusão de incógnitas e atómicas vontades, a disseminação abstracta e sem rosto das cotações em bolsa.

Há quem diga também que já não há capital, enquanto relação social de domínio, e que tudo não passou de um delírio de um judeu barbudo, errante figura a deambular entre a crítica da economia política e a visão de um mundo novo, plasmada em guias de marcha para consumo das massas proletárias.

Há ainda quem diga que já não há política. Pelo menos a política das causas. As causas foram enterradas, com pazadas fortes e sincopadas, desferidas por tecnocratas de fato azul, que servem os modelos da inevitabilidade do mundo plausível que sai das equações. E que só resta o balançar entre saldos da economia do deve e do haver, deficit e superavit das contas bancárias dos conglomerados e das contas públicas dos Estados falidos.

Há quem diga, por isso, que se quer menos Estado, de boas contas, inefável ausência, espectador passivo, polícia dos feirantes e mercadores de almas, não mais que uma confrangedora criatura demitida da cidade e dos cidadãos. A cada um segundo a sua capacidade, de cada um segundo o seu preço: os mercados são omniscientes, os mercados tratam de tudo. Do berço à campa vai uma sala de leilões e somos licitados sempre pela melhor oferta.

Há quem diga ainda, e por corolário, que a Democracia não é já senão um atavismo de românticos gregos, que teima em ressuscitar de quatro em quatro anos, para perturbar a harmonia celeste do asséptico mundo dos contabilistas.

Há quem diga ainda, e finalmente, que já não deveria haver 1º de Maio, Dia do Trabalhador, porque já não há trabalhadores. Ou porque somos todos trabalhadores, e nunca se celebra a regra mas a excepção, nunca se celebra o normal mas sim o inusitado.

Mas há sempre os duvidam. Herdeiros da heresia. As memórias das multidões unidas em marchas e cânticos pela Liberdade e pelo orgulho do seu suor feito obra, feito pão.

O 1º de Maio nasceu das lutas e das manifestações dos trabalhadores pelos seus direitos e pela dignificação do trabalho. Foi assim que se propalou ao mundo e se instituiu, como data marcante. Dignificação cada vez mais espezinhada, direitos cada vez mais amarrotados.

Os direitos não se reclamam, conquistam-se. E as conquistas são como as marés: vão e vem ao sabor do ritmo dos dias, e das cadências lunares. E muitas das conquistas dos trabalhadores de décadas passadas estão hoje, aqui como em muitos lugares e latitudes, a ser revogadas quotidianamente.

Por tudo isso, o 1º de Maio, devia ser hoje mais combate que festa. Mais cerrar fileiras que engalanar varandas ao som de estribilhos de outras eras. Mais cavar trincheiras que plantar cravos nos punhos erguidos em uníssono.

Porque há trabalhadores cada vez mais despojados de direitos, cada vez mais sujeitos ao livre-arbítrio e à opressão. Cada vez mais baratos. A cada um segundo a sua capacidade, de cada um segundo o seu preço. E de preços sabem os mercados. Vendem-se as raivas, vende-se o suor, vendem-se as almas. Já não se fala em salário digno. Fala-se em preço certo. Preço de equilíbrio de mercado. É a oferta e a procura de sangue, como se de uma banal mercadoria se tratasse. A miséria em nome da competitividade. Ser competitivo é ser miserável, é esta a norma dos novos alquimistas da economia de casino.

Porque há também trabalhadores despojados de trabalho, alimentando as filas da indigência e essa praga da economia dos mercados sem rédea que é o desemprego. Mais uma vez é a ditadura dos mercados a funcionar, dizem eles, a clarividência da oferta e da procura. Se estão desempregados é porque querem salários muito altos. Os mercados são sábios, e não ajustam o que não podem ajustar. Que venham, pois, os políticos fazer o trabalho sujo do ajustamento. Alterem as leis, cerceiem os direitos, dividam para reinar, propaguem a insídia e o medo. O medo, esse elixir primitivo que castra a mente e cala as consciências, mesmo aos mais temerários.

Como se os mercados não fossem uma criação humana mas divina. Como os seus mecanismos e resultados últimos não resultassem de uma conflitualidade de interesses e de vontades de humana criação. Os Deuses, de facto, não se discutem. Veneram-se, denegam-se ou ignoram-se. As criações humanas, pelo contrário. Nascem, vivem, reformam-se ou revolvem-se, e muitas morrem mesmo. Não há perenidade na coisa humana. Há contingência e finitude.

É por isso que a política das causas não está morta. A História não está parada nem o seu fim se decreta por filosóficos ou económicos axiomas. As desigualdades têm progredido nas últimas décadas e trepado a patamares quase feudais, transpostas as diferenças nas capacidades de produção actuais e os níveis tecnológicos dos dias de hoje. E isso só pode gerar fome e sede de Justiça, e as condições de empenho e garra para lutar por um mundo mais justo e equitativo.

O 1º de Maio, mais que a festa, que seja a reflexão sobre as nuvens que pairam sobre o mundo do trabalho e sobre o futuro daqueles que mais nada tem do que a sua força de trabalho, braços e mente ao serviço da sua sobrevivência.

O 1º de Maio pode ser de muitas cores. Policromático como o arco-íris de um fim de tarde em que o estio sucedeu à borrasca. Policromático como um caleidoscópio mirífico, encantamento para divertir os revoltados e os manter passivos e servis.

Mas, ainda assim, o 1º de Maio será sempre vermelho, como vermelho é o sangue que pulsa no coração dos homens e das mulheres que clamam por Justiça e pelo direito a uma vida digna. Sempre foi assim. E sempre assim será até ao fim dos tempos.


CRAVO

Em homenagem e em memória:

Hoje, alguém que muito me é querido, terminou a sua viagem entre os vivos.

A morte é uma assombração que nos esbofeteia as entranhas.

Qualquer coisa que sufoca e nos espalha a impotência por entre os dedos.

Para ti, Pai, porque foste um trabalhador raramente compensado de acordo com os teus saberes e empenho, e raramente tratado com a Justiça que merecias, aqui deixo este texto.

Neste 1º de Maio, para o trabalhador que sempre foste, para o amigo que sempre esteve, pelo que fizeste e pelo que lutaste, uma flor vermelha, e uma lágrima rebelde.

Estátua de Sal

01/05/2015

O Legado de Abril

ABRIL


   A história repete-se, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.

(MARX, K., in “Dezoito Brumário de Louis Bonaparte”, 1852.)


Passaram 41 anos desde 25 de Abril de 1974.

O País mudou, entre lágrimas, risos, promessas e esperanças.

Éramos menos, muito menos. Éramos pobres, e ainda somos, mas mais pobres. Não havia estradas, quanto menos auto, e os comboios ronceavam por montes e vales. Água, que não dos poços e das fontes, e saneamento para lá da latrina, ainda era um luxo para muitos. Uma côdea de pão e uma sardinha enganava a fome de inúmeros. Partíamos com uma mala de cartão e demandávamos franças e brasis. O campo lavrava-se de suor e o bafo do gado dormia com as almas e aquecia as casas. Os novos saiam da idade das fisgas para a idade da jorna, ou para o óleo das fábricas, os mais hábeis de mãos.

A polícia política tomava conta das heresias.  A Igreja abençoava-nos o desencanto e aplacava-nos o caminho para as bem-aventuranças. O ditador não saía do sítio, nem saía à rua para tomar café, só andava de comboio e nunca passou da fronteira espanhola para lá de Hendaia. Consta que tinha medo de se afastar, indo para longe, receando que o País mudasse, no entretanto.

Os mancebos iam para a tropa, aprender a ser homens. E depois da recruta embarcavam no paquete Vera Cruz a caminho das Áfricas, de onde mandavam aerogramas às namoradas e às madrinhas de guerra. Pelo Natal, até tinham direito a aparecer na televisão, prometendo regressar intactos e escorreitos. Muitos iriam regar com sangue o verde da savana mas naquela altura ainda não sabiam. Nunca se deve saber da morte, porque saber da morte é antecipá-la, e as guerras não se fazem com zombies.

E havia os ricos, que eram poucos. E havia os pobres que eram muitos. Os filhos dos ricos iam para o liceu para serem doutores. Os filhos dos pobres que mais se distinguiam iam para as escolas técnicas para serem serralheiros, electricistas ou guarda-livros. Os liceus eram só nas cidades grandes: a Lisboa do Terreiro do Paço onde estavam as excelências, o Porto do vinho e do comércio ensinado pelos ingleses, e as capitais de distrito. As universidades eram uma espécie de Santíssima Trindade, Lisboa, Porto e Coimbra, com esta à cabeça da vetustez e da tradição. Direito era uma espécie de alfobre de ungidos que segregava ministros, autoridades e reverências.

E havia os analfabetos, que eram muitos. E havia a quarta classe que era quase uma licenciatura, e havia o sétimo ano do liceu que era mais que um mestrado. Letras a mais só traziam desgraça e só tornavam as pessoas infelizes. Orgulhosamente sós, disse ele, o ditador, orgulhosamente incultos, pensou ele, o ditador.

Os jornais escreviam por metáforas e havia leitores especializados em palavras cruzadas que usavam a técnica para descodificar as mensagens censuradas. De vez em quando havia eleições, mas o resultado era conhecido à partida. Era como um jogo de bola sem adversários, onze contra zero, ganhava o guarda-redes.

Alguns resistiam em segredo, mas o segredo era perigoso, mesmo o segredo. A denúncia era um desporto nacional e tomava café com os subversivos. Quando davam por ela estavam em Caxias depois de terem ido tomar chá à António Maria Cardoso, a sede da Polícia dos Bons Costumes, mais conhecida por PIDE. Ainda eram julgados e tudo, porque o ditador não gostava que dissessem que ele não tinha apego às leis e ao Direito, já que Coimbra é uma lição mesmo para os ditadores. Mas de nada lhes valiam as togas e os códigos. Eram sempre condenados, qualquer que fosse a acusação, quaisquer que fossem os advogados. Acresce que, advogado amigo de subversivo, subversivo era,  pelo que os riscos que corria de passar do banco da defesa para o banco dos réus eram certezas.

E a África lá tão longe. Mas a guerra aqui tão perto. Havia os que vinham, sonâmbulos entre dois tiros de espingarda. Outros mutilados, a medalha da Pátria a luzir, a revolta no peito no lugar do coração. E também os que fugiam. A desertar. A desafiar a noite pelos trilhos antigos dos contrabandistas. É Paris. É a Suécia. É a Europa já no horizonte mítico da juventude que não quer morrer. A fugir da asfixia. Da censura. Do ditador. Do Portugal pequeno. Das quatro paredes caiadas no jardim plantado à beira-mar. Da guerra.

Mas eram muito poucos a fugir, muitos mais que eram a morrer. E maior a recusa. E morriam os pobres. E já morriam os ricos e os cultos. Os que tinham lido. E há livros perigosos que são o software das revoluções. E assim se abriu Abril e se gizou a Revolução dos capitães. E assim se terminou a ditadura.

E já foi há quarenta e um anos. As liberdades cívicas conquistadas sobre o som dos cravos na ponta das espingardas. As utopias a sussurrar na pele dos desesperados de décadas de mudez. A esperança misturada em malgas de canções servidas pelas madrugadas. O povo unido jamais será vencido. Uma crença e uma fé no coração das flores, as mãos dadas entre abraços. “Acordai, acordai homens que dormis a embalar a dor dos silêncios vis”.

Depois o novo organizar. A política. Os políticos. Os partidos. As eleições. A Constituinte. A Constituição. Os militares com um País nas mãos e os sonhos de tantos pendurados nas promessas de Abril. As trincheiras entre a utopia ao longe e o presente ao lado da realidade de um País dividido. A revolução a meio do caminho entre Abril e Novembro. Em Abril, águas mil. Em Novembro põe tudo a secar, pode o Sol não tornar. A prudência da sabedoria ancestral, agrícola e campesina. E ganhou a prudência.

Depois a Europa foi-nos entrando pela porta adentro. Eram mais ricos e confiámos na cartilha que nos deram. Mandaram-nos dinheiro. Plantámos betão pelas lezírias fora. Estradas e estradinhas. Casas, hospitais, escolas e alguma decência mínima para quem nunca tinha visto o mar. Não há mal que sempre dure nem fome que não dê em fartura. Uma ilusão. Desaprendemos a pesca, traímos o mar e esquecemos o cheiro das laranjas e da terra húmida. A política. Os partidos. Os dinheiros da Europa. Quem dá e reparte fica com a melhor parte. As clientelas. A democracia refém da governabilidade. Da governação em arco, arco sem flecha.

O Euro. Governo sem moeda, não é governo é capataz. Manda quem paga, obedece quem deve. E nós devemos, devemos muito e mais e mais. A dívida. É como as doenças larvares, silenciosas e sem remissão.

Porque é preciso pagar, dizem eles, os capatazes. Vendem-se os anéis, e dizem que não custa nada porque ficam os dedos. Vendem-se os novos, e dizem que não custa nada porque ficam os velhos. Vendem-se as praias e dizem que não custa nada porque ficam as marés. Mas não chega. Teremos que vender as almas, e dirão que não custa nada, porque ficarão as algemas em torno das memórias dos obstinados, os subversivos do novo milénio.

E de novo os subversivos. Os tais que a ditadura, antes de Abril de 1974, amordaçava, prendia e matava mesmo. Eles também existem hoje, os subversivos, outros rostos, outra batalha, outros combates, a mesma guerra.  São os que recusam o País no cimo da falésia a deslizar para o vácuo das profundezas abissais. Recusam que não haja alternativas ao discurso da austeridade, do empobrecimento e do retorno ao passado do miserabilismo, da caridadezinha e da fome envergonhada.

A história repete-se. Durante 48 anos de ditadura também se disse e se bradou que não havia alternativas. Até 25 de Abril de 1974.

Os homens fazem sua própria história, e não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias da sua escolha mas sim sob aquelas com que se defrontam directamente, legadas e transmitidas pelo passado.

O passado não se reescreve, lega-se.

E a fazer fé no legado de Abril, há sempre alternativas. Assim estejamos dispostos a lutar por elas.

Estátua de Sal, 25-04-2015.

O investimento estrangeiro

investimento

Estou farto de ouvir o Governo falar no investimento estrangeiro como o grande mantra para a solução dos problemas do País. Eu julgava que vivia num sistema económico capitalista, não havendo, obviamente,  capitalismo sem capitalistas.

Ora, os capitalistas nacionais que tínhamos, ou faliram, ou andam metidos em casos de polícia, ou venderam as empresas e emigraram para as Seychelles atrás dos dinheiros que colocaram numa qualquer offshore.

E muitos deles faliram empurrados pela política de esmagamento da procura interna que a troika impôs ao País e que este Governo executou com brios de capataz zeloso e subserviente.

Agora, depois de meio País destruído, o Governo quer trocar os capitalistas portugueses por capitalistas estrangeiros. Infelizmente, o investimento estrangeiro que cá tem chegado, só se tem dirigido para a compra das empresas mais valiosas e rentáveis que já existiam, não criando, portanto, nem emprego, nem know-how.

Quando o processo acabar, haverá economia, mas não será portuguesa. Haverá capitalismo, mas não será português. Haverá Estado, mas não será português. Haverá Governo para governar os portugueses, não em nome de Portugal, mas sim em nome dos novos donos de Portugal.

Eles abraçam o capitalismo e defendem as suas formas de expressão mais selvagem como sua bandeira. Agora, eu não sabia é que eram tão criativos ou tão néscios: querem um Estado-Nação capitalista sem capitalistas nacionais.

Todos temos o dever patriótico de os parar de vez. Antes que sejamos também todos obrigados a falar mandarim, depois deles terem vendido também a Língua Portuguesa.

Que por este andar será a última coisa que nos restará depois de tudo estar já vendido ou penhorado.

Estátua de Sal, 17/04/2015