Carta a um amigo que me aconselhou a ir ao psicólogo ou ao psiquiatra

(Júlio Marques Mota, in A Viagem dos Argonautas, 23/06/2022)

Meu caro amigo

Fiquei espantado com o que me disse, esta manhã. Preciso de um psicólogo. Talvez, não digo nem que sim nem que não, mas se sim garantidamente não será pela razão apontada.

E vejamos com alguma atenção o porquê da minha afirmação anterior. Acusa-me de não estar bem quando o acusei de desonestidade intelectual. Pressuposto na sua afirmação é de que não o é nem o foi. Pressuposto da minha parte é que não o é, mas de que o foi, precisamente, naquela resposta que um dia me deu e a qual eu considerei de pura desonestidade intelectual.

Para já tiremos às palavras a carga emocional que elas podem ter fora do seu contexto. Desonestidade intelectual significa aqui que se coloca um raciocínio viciado contra a posição de alguém ou que se quer bloquear aquele de quem se discorda, respondendo com perguntas que nada têm a ver com a questão inicialmente levantada.

Veja-se: tinha-lhe enviado um texto de John Ganz que fala da degenerescência democrática nas sociedades ocidentais. Estava-se a poucos dias de diferença do trágico assassínio em massa em Uvalde. Honestamente sugeri, mesmo a quem o tema da degenerescência não interessasse, que lesse o último parágrafo. Um parágrafo aterrador em que nos fala da polícia que foi a Uvalde buscar os seus filhos e deixou lá os filhos dos outros. Não são cidadãos comuns, é gente fardada, com farda oficial, que fez isto!. Que significa então esta ação senão degenerescência na democracia? E para não falar também do que significa o assassínio em massa de Uvalde ou noutro qualquer lugar. Era este o texto em questão ao qual o meu amigo responde. E cito de memória a sua resposta:

Gostaria de o ver a criticar as sociedades socialistas que defende  como Cuba ou outras.

Ora isto não tem nada a ver com o texto que lhe mandei. Certo? Mas mais: fala-me de repúblicas socialistas que defendo, pretendendo que eu escreva sobre elas. Respondi-lhe; é desonestidade intelectual responder a alguém,  em que como resposta a um problema grave que lhe é apresentado, responde apenas com um pergunta ou afirmação que nada tem a ver com o que está em análise. Foi o que lhe disse e hoje manteria a mesma resposta. Em análise linguística isto tem um nome, os ingleses e americanos chamam-lhe whataboutism. Mas respondi-lhe mesmo assim dizendo que do meu ponto de vista, e é esse que interessa aqui, pois seria eu que escreveria, nunca houve nenhuma república socialista no mundo, houve sim tentativas falhadas de passagem de modos de produção não capitalistas a transições para o socialismo e sem qualquer modelo de suporte. Falharam e Marx tinha razão. O que se pretendia para essas sociedades em pressuposta transição para o socialismo não tinha nada a ver com o grau de preparação dessas sociedades, o chamado desenvolvimento das forças produtivas. O mesmo se passou com as Primaveras coloridas de Hillary Clinton, falharam todas. Podemos também tomar como exemplo a Rússia em 1917 e 1991. No primeiro caso passou de repente de uma sociedade feudal para um estado de caos e como reação a esse caos passou depois para um capitalismo de Estado rapidamente em degeneração (1917); no segundo caso, 1991, e de repente, outra vez, quiseram que se fizesse a transição rápida para um capitalismo selvagem e num país em que praticamente ninguém sabia o que era propriedade privada. Falhou e gerou-se assim um regime autocrático como resultado. De Gorbatchov e, logicamente, da Casa Comum Europeia, nem um ar, mataram a ideia antes de a semearem. Certo?

Esta foi a minha resposta ao seu pedido e acha agora que eu, face ao que escrevi, devo ir ao psicólogo ou mesmo ao psiquiatra! Primeiro tinha que me mostrar os erros profundos de análise e de descoordenação de pensamento para justificar essa sua afirmação e também não o fez. Donde, do ponto de vista lógico ou intelectual, é apenas isso que interessa aqui e no contexto em análise, isto  só tem um nome: é desonestidade intelectual a que também se pode chamar a isto provocação não intencional: Passemos por cima de tudo isto e é  o que estou a fazer.

Deixe-me acrescentar um detalhe: quando fala das sociedades socialistas que eu defendo, isto não é verdade, nunca me viu defender o que para mim não existe, as ditas sociedades socialistas. Há aqui uma confusão e esta confusão é sua. Sou marxista de formação de base, um defeito para muita gente, para mim uma qualidade, sobretudo porque me considero equipado com as armas críticas da heterodoxia. Não haverá muitos em Portugal. Basta ler o que se escreve. Aliás não haverá muitos universitários, se os houver, que tenham lido tanto de Marx como eu e, sobretudo, que o tenham lido criticamente. Não é por acaso, que me reclamo intelectualmente de ser filho de Ricardo, Marx, Hegel, Sraffa, Keynes, Arghiri Emmanuel, Marriner Eccles (o Keynes antes de Keynes) e de Michael Pettis. Não será assim por acaso que,  se abrir o livro de Pettis, Trade Wars Are Class Wars, verá aí o meu nome nos agradecimentos do autor, pelas diversas trocas de opiniões, algumas longas, antes da publicação daquele que no ano da sua edição foi considerado livro do ano.

Digo-lhe isto, meu amigo, e com toda a ternura de quem tristemente olha para o descalabro da sociedade hoje para que o meu amigo perceba que, com este tipo de formação, eu não poderia cair nunca na ratoeira que de forma não intencional me colocava pela frente, desejando que eu escrevesse sobre as sociedades socialistas que não existem. Dessas, a seu tempo, falará a História mas apenas ao longo dos próximos séculos, disso estarei certo. Olhe-se para Marx e que escreveu ele, o maior visionário da história do capitalismo ? Nada, ou então apenas pura ironia e isto sobretudo no Manifesto Comunista. E que queria o meu amigo que eu escrevesse? Ironia, ou antes, o seu pedido é que é pura ironia e, como há pedidos que não se fazem, o seu, há respostas que não se dão. É este o caso.

Mas também lhe digo que com a histeria que atravessa a sociedade atualmente a sua própria sugestão de eu ir ao psicólogo ou ao psiquiatra e excluindo a enorme carga de ternura com que foi dita, poderia ser vista como tendo um outro contorno[1]. Um exercício mental. para esta última hipótese. Imagine essa sugestão feita secamente, isto é fora do contexto amigável e até fraternal em que me apresentou essa sugestão, e feita a todos os que não alinham com o pensamento oficial dominante. Como exemplo de pensamento dominante, aplicado a uma situação concreta, veja-se a década perdida com a política austeritária imposta pela União Europeia em todos os países-membros e com o argumento de que a crise da dívida pública (não se fala da dívida privada) seria ultrapassada com uma política de crescimento assente na dinâmica das exportações de cada um dos países membros, mas para onde? Se a austeridade é para todos, aumentar as exportações só é possível se for para a Lua. Bom, quem não defendesse essa argumentação da União Europeia, sofria as consequências, a ostracização, por exemplo. Contam-se pelos dedos de uma mão os economistas que foram à televisão argumentar contra o pensamento dominante e levavam pela frente com o ruído, quer  dos adversários que mal os deixavam falar   quer  dos respetivos moderadores das televisão.

Depois,  com o aprofundar da crise, considere que esta sugestão de ir ao psicólogo ou ao psiquiatra passa a ser considerada um imperativo legal, como aconteceu em muitos casos com as vacinas COVID. Isto significa que quem não aceita a verdade oficial é considerado deficiente, mentalmente doente! Isso não nos faz lembrar nada, a Ocidente ou a Leste?

No quadro deste exercício mental, relembro aqui, de memória, o cineasta Luchino Visconti e Os Malditos, onde um oficial SS diz à sua prima Essenbeck, mais ou menos isto: aqui está o contributo do povo alemão para a edificação do Terceiro Reich e, citando Hegel, diz também que quando uma flor se atravessa no caminho do Estado este só tem de fazer uma coisa: esmagá-la. Para onde estaríamos a caminhar, neste exercício intelectual? Eu digo-lhe, estaríamos a caminhar para um Estado totalitário, de razão única em que este define o que é a verdade e o que é a mentira.

Dessa verdade, a oficial, nos fala o jornal conservador O Observador ontem, (20.06.2022) quando noticiava:

“Kaliningrado ameaça Lituânia com resposta dolorosa

Bloqueio russo de cereais ucranianos é “verdadeiro crime de guerra”, diz Borrell. Kremlin promete retaliar depois de a Lituânia bloquear parcialmente trânsito de mercadorias para enclave russo.” Fim de citação

Conclui-se, bloquear alimentos destinados aos russos é normal, bloquear alimentos destinados aos “defensores do Ocidente” é crime de guerra. E aqui está a verdade oficial. A isto e parafraseando  a obra de George Orwell diremos que se trata de pensamento duplo. Duas ideias contraditórias e ambas aceites na cabeça do Comissário Europeu.

Sobre isto diz-nos Chomsky:

“George Orwell tinha um nome para isso. Chamou-lhe duplo pensamento, a capacidade de ter duas ideias contraditórias na sua mente e acreditar em ambas. Orwell pensou erroneamente que isso era algo que só se podia ter no estado ultra-totalitário que ele satirizava em 1984. Ele estava errado. Pode tê-lo em sociedades democráticas livres. Estamos a ver um exemplo dramático disso neste momento. A propósito, esta não é a primeira vez que tal acontece.”

Inegavelmente em 1984 e em A Quinta dos Animais Orwell tinha razão  quanto aos estados totalitárias e à degenerescência das democracias ocidentais, com estas a aproximarem-se dos regimes que o Ocidente diz estar a combater. Possivelmente, esta é uma verdade que custa a engolir e que explica porque se vê tanta gente a meter a cabeça na areia ou explica ainda muitos dos comportamentos tidos contra aqueles que não aceitam a lógica do pensamento único que caracteriza as autoridades de agora.

A fuga à verdade, à profundidade das razões que estão por detrás desse disfuncionamento, fuga esta geradora de muitas das nossas angústias, é o caminho que a Ocidente tem escolhido. Um exemplo de chapa no caso português: veja-se a desgraça do SNS com médicos especialistas pagos a pouco mais do que as empregadas domésticas, considerando-se, por definição, o trabalho destas como um trabalho claramente indiferenciado!

Esta realidade do SNS não é de agora, vem desde a política económica imposta pela Troika, e esta foi a da depreciação de tudo o que é trabalho diferenciado, especializado, desde que não seja nos mercados financeiros. Não é uma realidade criada  por Marta Temido. Uma realidade que só agora o nosso Presidente da República assume como uma realidade estruturalmente complexa! Só agora!

Mas há mais. Imaginemos duas empresas de serviços de saúde, A e B , cada uma com dois médicos ou mais, em  que a empresa A está sediada em Aveiro e a empresa B está sediada em Leiria. Cada uma destas empresas prestadoras de cuidados de saúde faz dois contratos de prestação de serviços: A empresa A faz um contrato de trabalho a tempo parcial com o Hospital de Aveiro de 12 horas e com a remuneração de 10 euros a hora.. E faz depois um contrato de prestação  de serviços com o Hospital de Leiria de 24 horas semanais a 50 euros a hora. Por sua vez a empresa B faz o mesmo tipo de operações mas  em posições simétricas. Faz um contrato de horário reduzido de 12 horas  semanais  com o Hospital de Leiria a 10 euros por hora e um contrato semanal de 24 horas semanais com o Hospital de Aveiro a 50 euros por hora. Tudo  dito quanto à competência política da nossa Administração, tudo dito quanto à precariedade criada com técnicos especialistas a ganharem pouco mais do que a empregada doméstica  e outros médicos a ganharem volumosas quantias de euros. Tudo isto porque não há carreiras médicas condignas, há sim um política de degradação de quem trabalha e depois há por esta via quem possa encher o saco.  Por cada conjunto de dois médicos  temos a soma de 240 euros+(24.10) +2400 (48.50)= 2640, um custo horário médio por  médico de 36.70 euros! média horária. Se o Estado pagasse aos jovens médicos 20 euros hora e lhes garantisse carreira condigna, toda a gente  ficava a ganhar, doentes, Estado, jovens médicos, com exceção dos  vampiros da medicina que os há.

A “escassez” de médicos já gerou tragédias sem que haja responsabilidades de ninguém. É uma situação de mercado, é uma questão de oferta e procura, dir-me-ão. É mentira, esta posição. O mercado é o respeito de um conjunto de regras estabelecidas a nível das instâncias públicas responsáveis . São estes legisladores que são os responsáveis últimos das tragédias que se estão a viver, são eles e são igualmente os decisores políticos que preferem as politicas austeritárias e que são insensíveis aos dramas que estas suas políticas geram. Falar em demissão de Marta Temido é patético, goste-se ou não dela, é patético pois esta situação tem apenas a ver com o modelo  austeritário dos governos destes últimos 12 anos e antes dela ser ministra.

Mas quanto à política de degradação salarial destes profissionais, há algo mais que deve ser sublinhado. É que esta é uma forma de os empurrar para fora do país. Lembram-se da almofada de conforto do tempo de Passos Coelho? É isto, mas isto ninguém reverteu dele. Tocar nas relações de trabalho é uma linguagem  que os nossos governantes, nem Bruxelas querem aceitar, até porque como sabemos é mais  fácil destruir do que reconstruir. E reconstrução é coisa que não se vê nem no PSD nem no PS,  com exceção neste partido, eventualmente, de Pedro Nuno Santos, e digo, eventualmente, porque nunca entendi a posição deste ministro quanto à bitola não europeia dos caminhos de ferro portugueses.  Podemos ainda analisar este empurrar para fora do país como uma fraude que está a ser cometida contra o país.  Com efeito o curso de medicina é um dos cursos mais caros do país.  O país gasta dinheiro, gastou dinheiro na formação destes alunos no secundário, gasta em grande na sua formação no superior. Chamemos a isto investimento em capital humano. Ora, criar condições que significam objetivamente estar a mandar os nossos licenciados especializados  para fora do país, significa estarmos a dar como donativo ao estrangeiro todo o dinheiro gasto na formação destes licenciados a países que têm ainda o ensino mais degradado  que nós mas que nos acusam depois de países despesistas!

E se em vez de estar a forçar os nossos estudantes de medicina  a irem para os estrangeiros os obrigássemos a trabalhar os primeiros cinco anos em instituição públicas de saúde mas com carreiras profissionais condignas? Onde é que é esta o mal nisto?

Central nesta situação triste e já trágica está a necessidade de reestruturar as carreiras médicas, no mínimo revertê-las para a situação em que estávamos antes da Troika, mas reversão é um termo banido do vocabulário dos nossos políticos, Marcelo inclusive. Responsáveis existem, a Comissão Europeia, o Primeiro-Ministro António Costa, o ministro das Finanças, tenham sido eles, Mário Centeno ou João Leão e, no fim da cadeia, teremos a pessoa  que menos pode fazer, a Ministra da Saúde. Mas há ou haverá premiados por este facto: Centeno vai para governador do Banco de Portugal, João Leão é proposto para diretor de uma ferramenta criada para impor a austeridade aos Estados-membros, o MEE, e Costa irá possivelmente para um alto cargo europeu, para não falar do destino de ministros anteriores das Finanças, Vítor Gaspar (FMI) e Álvaro Santos Pereira (OCDE).

Meu querido amigo, esta reação já vai longa, mas pelo que acima explico, quem precisa de ir ao psicólogo ou ao psiquiatra serão todos aqueles que vivem num mundo de pensamento duplo como o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Joseph Borrell,   e eu sinto que neste mundo de pensamento  duplo eu não estou.

Um grande abraço de quem não se sentiu magoado com a sugestão assinalada no início deste texto.


P.S. Não falamos da Ucrânia. Quanto a esta questão remeto para o texto do Vaticano em anexo – um texto que passa quase que em silêncio absoluto na nossa imprensa mas  onde se diz alto e bom som que  vivemos em liberdade de imprensa –  onde com exceção do problema da guerra por procuração, se defende os mesmos pontos de vista que tenho defendido, eu e os meus colegas, em múltiplos textos publicados no blog A Viagem dos Argonautas. Não se irá certamente dizer que também se aconselharia o Papa a ir a um psicólogo ou psiquiatra, creio eu. Utilizo aqui o pronome SE porque não entraria numa provocação, mesmo que não intencional, e colocá-lo a si a apresentar a mesma sugestão ao PAPA que me apresentou a mim. Pelo respeito que lhe tenho, e mantenho, nunca faria esta pergunta noutros termos que não estes.

Original aqui


[1] A este propósito tomo a liberdade de lhe sugerir a leitura do livro The Psychology of Totalitarianism de Mattias Desmet, da Universidade de Gante (Bélgica), publicado em junho de 2022 ou uma boa recensão sobre o mesmo. São muitas e diversas. Podemos discordar de muitos dos pontos de vista do autor, é o meu caso, mas sugere-se a sua leitura, porque  esta nos  obriga  a refletir sobre o clima de histeria em que se vive. 


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Por que é que devíamos estar todos a ler o 1984?

(Pacheco Pereira, in Público, 22/09/2018)

JPP

Pacheco Pereira

É hoje muito mais importante para ler nas democracias do que nas ditaduras, porque o que ele diz para as democracias, para a defesa das democracias das investidas autocráticas dos dias de hoje, cada vez o sabemos menos.


Poucos livros são tão importantes para os nossos dias do que o 1984, de George Orwell. É hoje muito mais importante para ler nas democracias do que nas ditaduras, porque o que ele diz sobre as ditaduras totalitárias já todos o sabemos (e o sabem os que lutam contra elas), mas o que diz para as democracias, para a defesa das democracias das investidas autocráticas dos dias de hoje, cada vez o sabemos menos. O reducionismo do 1984 a um panfleto antiestalinista, ou mais genericamente anticomunista, e o seu esquecimento como uma distopia datada de há já quase 25 anos são um erro e reduzem o património escasso de grandes obras literárias e políticas, de que precisamos, mais do que nunca, nos dias de hoje.

Orwell percebeu o caminho para o mundo actual de fake news, de relativização da verdade e dos factos, da “verdade alternativa”, do tribalismo, do combate ao saber a favor da ignorância atrevida das redes sociais, da crise das mediações a favor de uma valorização da pressa, do tempo instantâneo, do fim do tempo lento, do silêncio, e da pseudopresença num mundo de comunicações vazias, ideal para o controlo afectivo, social e político. Orwell sabia que o Big Brother estaria feliz nos dias de hoje com o permanente ataque a toda a espécie de delegação de poder pelos procedimentos das democracias, ou pelas hierarquias da competência e do saber, a favor de um falso empowerment igualitário, que enfraquece os mais débeis, os mais incultos, e os mais pobres, mas dá mais poder aos poderosos, aos ricos, aos que estão colocados em lugares decisivos por nascimento, herança, ou amoralidade. Descreveu, pela primeira vez no 1984, o mundo da manipulação e geral degenerescência da linguagem, das palavras e das ideias. Um mundo onde quem manda reduz as palavras em circulação a uma linguagem gutural, a preto e branco, sem capacidade expressiva e criadora, mas também desprovida da capacidade de transportar raciocínios e argumentos lógicos, mas apenas banhar-nos em pathos. Ele escreveu uma distopia, nós vivemos nessa distopia. Uma das fontes do 1984 foi o conhecimento que tinha do totalitarismo comunista e em particular a sua experiência na Guerra Civil espanhola, que lhe serviu também para escrever Animal Farm. Mas a outra fonte importante do livro foi a sua experiência na BBC, na comunicação social em tempo de guerra e no papel que esta tinha na própria guerra como arma. Arma de propaganda, mas também arma de manipulação, através da chamada “propaganda negra” ou daquilo a que mais tarde os serviços soviéticos deram o nome de “desinformação”. Orwell conjugou estas duas fontes, de origem muito diversa, numa interpretação do valor da verdade, e da ideia de que quem controla as palavras controla as cabeças e o poder. A isto Orwell acrescentava algo que sabia estar ausente do mundo da ideologia, uma genuína compaixão pelos “danados da terra”, pelos que nada tinham, e é a eles que dá a capacidade de revolta: “If there is hope, it lies in the proles.”

Dois exemplos mostram a manipulação das palavras, que é hoje uma actividade especializada e lucrativa de agências de comunicação e publicidade, de assessores de imprensa e de outros amadores de feiticeiros na Internet, já para não falar dos serviços secretos: um, de há uma semana na América de Trump, o grande laboratório do Big Brother; e outro dos nossos anos do lixo, entre a troika e o Governo PSD-CDS. No primeiro caso, trata-se do interrogatório do candidato a juiz do Supremo Tribunal Ben Kavanaugh, em que as mesmas armas, espingardas de tiro automático ou semiautomático, são descritas como “armas de assalto” (“assault weapon”), pelos que defendem o seu controlo, ou como “espingardas de desporto modernas” (“modern sporting rifles”), como entendem os defensores da interpretação literal da Segunda Emenda, para quem o direito de ter, transportar e exibir armas é intangível.

O exemplo português é um entre muitos dos anos do Governo da troika-PSD-CDS, que começam a ser perigosamente esquecidos. Quando começaram os cortes em salários, pensões, reformas, despesas sociais, durante dois ou três dias, mesmo os membros do Governo usavam a expressão verdadeira de “cortes”. Depois, de um dia para o outro, e de forma concertada, deixaram de falar de “cortes” para falar em “poupanças”. O mais grave é que, como no mundo do Big Brother, a expressão começou a impregnar a linguagem comum, a começar pela da comunicação social, que nesses dias e nalguns casos até hoje mostrou uma especial capacidade de ser manipulada pelo “economês”. Leia-se pois o 1984, ou “releia-se”, que é a forma politicamente correcta de se dizer que se leu sem se ter lido, até porque é um livro que não engana ninguém logo à primeira frase: “Era um dia de Abril, frio e cheio de sol, e os relógios batiam as treze horas.”

Procuram-se horizontes, urgente

(Por Boaventura Sousa Santos, in Blog OutrasPalavras, 15/05/2017)

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A barbárie pós-moderna alastra-se. Como alternativa, proporemos apenas a diversidade? Talvez as epistemologias do Sul — outras maneiras de pensar, sentir e conhecer — nos sugiram uma saída.


As oito pessoas mais ricas do mundo têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre da população mundial (3,5 bilhões de pessoas). Destroem-se países (do Iraque ao Afeganistão, da Líbia à Síria, e as próximas vítimas tanto podem ser o Irã como a Coreia do Norte) em nome dos valores que deviam preservá-los e fazê-los prosperar, sejam eles os direitos humanos, a democracia ou o primado do direito internacional. Nunca se falou tanto da possibilidade de uma guerra nuclear. Os contribuintes norte-americanos pagaram milhões de dólares pela bomba não nuclear mais potente desde sempre, lançada contra túneis no Afeganistão construídos nos anos de 1980 com o próprio dinheiro deles, gerido pela CIA, para promover os radicais islâmicos em sua luta contra os ocupantes soviéticos do país, os mesmos radicais que agora são combatidos como terroristas. Enquanto isso, os norte-americanos perdem o acesso a cuidados de saúde e são levados a pensar que os seus males são causados por imigrantes latinos mais pobres que eles. Tal como os europeus são levados a pensar que o seu bem-estar está ameaçado por refugiados e não pelos interesses imperialistas que estão a forçar ao exílio tanta gente. Tal como os sul-africanos negros, empobrecidos por um mal negociado fim do apartheid, assumem atitudes xenófobas e racistas contra imigrantes negros do Zimbábue, Nigéria ou Moçambique, tão pobres quanto eles, por considerá-los causadores dos seus males. Entretanto, correm mundo as imagens ternurentas de Silvio Berlusconi a dar mamadeira a cordeirinhos para defendê-los do sacrifício da Páscoa, sem que a ninguém ocorra que naqueles minutos televisivos milhares de crianças morreram por falta de leite. Tal como não são notícia as fossas clandestinas de corpos esquartejados que não cessam de ser descobertas no México enquanto as fronteiras entre o Estado e o narcotráfico se desvanecem. Tal como temos medo de pensar que a democracia brasileira morrerá no dia em que um Congresso de políticos desvairados, na maioria corruptos, conseguir destruir os direitos dos trabalhadores conquistados ao longo de cinquenta anos, um propósito que, por agora, parecem lograr com inaudita facilidade. Há de haver um momento em que as sociedades (e não apenas alguns “iluminados”) concluam que isto não pode continuar assim.

Para isso, a negatividade do presente nunca será suficiente. A negatividade só existe na medida em que for visível ou imaginável aquilo que nega. Um beco sem saída converte-se facilmente numa saída se a parede em que termina tiver a transparência falsa do infinito ou do inelutável. Essa transparência, por ser falsa, é tão compacta quanto a opacidade da selva escura com que antes a natureza e os deuses vedavam os caminhos da humanidade. Donde vem essa opacidade se a natureza é hoje um livro aberto e os deuses, um livro de aeroporto? Donde vem a transparência se a natureza quanto mais se revela mais se expõe à destruição, se os deuses tanto servem para banalizar a crença inconsequente como para banalizar o horror do ódio e da guerra?

Há algo de terminal na condição do nosso tempo que se revela como uma terminalidade sem fim. É como se a anormalidade tivesse uma energia inusitada para se transformar em nova normalidade e nos sentíssemos terminalmente sãos em vez de terminalmente doentes. Esta condição deriva do paroxismo a que chegou o instrumentalismo radical da modernidade ocidental, tanto em termos sociais como culturais e políticos. A instrumentalidade moderna consiste no predomínio total dos fins sobre os meios e na ocultação dos interesses que subjazem à seleção dos fins sob a forma de imperativos falsamente universais ou de inevitabilidades falsamente naturais. No plano ético, esta instrumentalidade permite a quem tem poder econômico, político ou cultural apresentar-se socialmente como defensor de causas quando, de fato, é defensor de coisas.

Esta instrumentalidade assumiu duas formas distintas, ainda que gêmeas, de extremismo: o extremismo racionalista e o extremismo dogmatista. São duas formas de pensar que não permitem contra-argumentação, duas formas de agir que não admitem resistência. São ambas extremamente seletivas e compartimentadas, de tal modo que as contradições nem sequer aparecem como ambiguidades. As caricaturas revelam bem o que está para além delas. Heinrich Himmler, um dos máximos chefes nazistas , que transformou a tortura e o extermínio de judeus, ciganos e homossexuais numa ciência, quando regressava à noite a casa entrava pela porta traseira para não despertar o seu canário favorito. É possível culpar o canário pelo fato de o carinho que Himmler tinha por ele não ser partilhado pelos judeus? Por sua vez, é conhecida a anedota daquele comunista argentino tão ortodoxo que mesmo nos dias de sol em Buenos Aires usava chapéu de chuva só porque estava a chover em Moscou. É possível negar que por detrás de tão acéfalo comportamento não estaria um sentimento nobre de lealdade e de solidariedade?

As perversidades do extremismo racionalista e dogmatista vêm sendo combatidas por modos de pensar e agir que se apresentam como alternativas mas que, no fundo, são becos sem saída porque os caminhos que apontam são ilusórios, quer por excesso de pessimismo, quer por excesso de otimismo. A versão pessimista é o projeto reacionário que tem hoje uma vitalidade renovada. Trata-se de detestar em bloco o presente como expressão de uma traição ou degradação de um tempo passado, dourado, um tempo em que a humanidade era menos ampla e mais consistente. O projeto reacionário partilha com o extremismo racionalista e dogmatista a ideia de que a modernidade ocidental criou demasiados seres humanos e que é necessário distinguir entre humanos e sub-humanos, mas não pensa que tal deva decorrer de engenharias de intervenção técnica, sejam elas de morte ou de melhoria de raça. Basta que os inferiores sejam tratados como inferiores, sejam eles mulheres, negros, indígenas, muçulmanos.

O projeto reacionário nunca põe em causa quem tem o privilégio e o dever de decidir quem é superior e quem é inferior. Os humanos têm direito a ter direitos; os sub-humanos devem ser objeto de filantropia que os impeça de serem perigosos e os defenda de si mesmos. Se tiverem alguns direitos, têm sempre de ter mais deveres que direitos.

A versão otimista da luta contra o extremismo racionalista e dogmatista consiste em pensar que as lutas do passado lograram vencer de modo irreversível os excessos e perversidades do extremismo e que somos hoje demasiado humanos para admitir a existência de sub-humanos. Trata-se de um pensamento anacrônico inverso que consiste em imaginar o presente como tendo superado definitivamente o passado. Enquanto o pensamento reacionário pretende fazer o presente regressar ao passado, o pensamento anacrônico inverso opera como se o passado não fosse ainda presente. Devido ao pensamento anacrônico inverso, vivemos em tempo colonial com imaginários pós-coloniais; vivemos em tempo de ditadura informal com imaginários de democracia formal; vivemos em tempo de corpos racializados, sexualizados, assassinados, esquartejados com imaginários de direitos humanos; vivemos em tempo de muros, fronteiras como trincheiras, exílios forçados, deslocamentos internos com imaginários de globalização; vivemos em tempo de silenciamentos e de sociologias das ausências com imaginários de orgia comunicacional digital; vivemos em tempo de grandes maiorias só terem liberdade para serem miseráveis com imaginários de autonomia e empreendedorismo; vivemos em tempo de vítimas a virarem-se contra vítimas e de oprimidos a elegerem os seus opressores com imaginários de libertação e de justiça social.

O totalitarismo do nosso tempo apresenta-se como o fim do totalitarismo e é, por isso, mais insidioso que os totalitarismos anteriores. Somos demasiados e demasiado humanos para cabermos num caminho só; mas, por outro lado, se os caminhos forem muitos e em todas as direções facilmente se transformam num labirinto ou num novelo, em todo o caso, num campo dinâmico de paralisia. É esta a condição do nosso tempo. Para sair dela é preciso combinar a pluralidade de caminhos com a coerência de um horizonte que ordene as circunstâncias e lhes dê sentido. Para pensar tal combinação e, aliás, até para pensar que ela é necessária, são necessárias outras maneiras de pensar, sentir e conhecer. Ou seja, é necessária uma ruptura epistemológica a que venho chamando as epistemologias do sul.