Notas sobre a ofensiva da direita radical (1)

(José Pacheco Pereira, in Público, 03/07/2021)

Pacheco Pereira

1. Só não vê quem não quer ver: há uma ofensiva da direita radical no espaço público, que associa os temas “lubrificantes” da vitimização, da pseudociência académica para efeitos de autoridade, do sectarismo político, a uma enorme agressividade verbal e ataques pessoais. A utilização extensiva de fake news faz parte do padrão dos ataques ad hominem. O objectivo é criar uma ecologia favorável ao que chamam “resistência ao socialismo” — porque para eles é tudo “socialismo” — para varrer o centro político e a moderação, e instituir uma arregimentação tribal, ajudando a corroer a democracia parlamentar. Quem se preocupa com a democracia passou agora à categoria de “situacionista”, e eu preocupo-me porque sei de onde isto vem e aonde isto vai dar.

2. Como lhes correu mal a tentativa de reabilitar a ditadura através de uma “neutra” manipulação “académica”, e como a sensação evidente de perda lhes é insuportável, voltam-se para outros lados, mas com o mesmo objectivo. A natureza de uma ofensiva é sempre empurrar para a frente.

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3. Esta ofensiva é conduzida em todos os azimutes, do populismo da rua à ultradireita académica, nas redes sociais e em artigos de opinião, e, embora nos distraíamos com o Chega, vai muito mais longe do que o partido de Ventura. Os seus efeitos perigosos começam a verificar-se quando aparecem apelos ao saneamento dos professores “esquerdistas” e à limpeza ideológica dos órgãos de comunicação. 4. O seu objectivo estratégico a curto prazo ​é capturar o PSD, e não é líquido que não o consigam. O Chega serve para umas coisas, mas não chega para ganhar eleições nem para estar na base de uma frente de direita que possa ter sucesso eleitoral e formar governo. Sem o PSD não saem das franjas, com o PSD têm uma chance de impor o seu programa. O PS ajuda. Sempre que o PS abandona o terreno do centro-esquerda, está a dar força a esta tribalização, a ajudar à crise do centro e a preparar o terreno para o outro objectivo estratégico desta direita radical que é a constituição de uma frente de direita, na base das suas posições, liderada pelo PSD.

4. O seu objectivo estratégico a curto prazo ​é capturar o PSD, e não é líquido que não o consigam. O Chega serve para umas coisas, mas não chega para ganhar eleições nem para estar na base de uma frente de direita que possa ter sucesso eleitoral e formar governo. Sem o PSD não saem das franjas, com o PSD têm uma chance de impor o seu programa. O PS ajuda. Sempre que o PS abandona o terreno do centro-esquerda, está a dar força a esta tribalização, a ajudar à crise do centro e a preparar o terreno para o outro objectivo estratégico desta direita radical que é a constituição de uma frente de direita, na base das suas posições, liderada pelo PSD.

5. O que é que estes homens defendem? O Argumentum ad Hitlerum não é nem rigoroso nem eficaz, porque oculta os aspectos novos da actual direita radical, embora haja fenómenos e processos idênticos, principalmente na erosão da democracia. Mas esta nova direita radical ganha mais em ser comparada com a actual alt-right e o “trumpismo”.

6. Os seus temas são os de Trump e do Partido Republicano americano, a que se acrescenta a tradição da direita radical europeia e portuguesa. Esses temas são a “cancel culture”, o ataque ao Estado social, a limitação drástica da acção do Estado na economia em nome da “liberdade económica”, uma cultura hostil aos direitos laborais e sociais, a limitação da liberdade sindical, a contestação à igualdade e aos direitos das mulheres, a revisão da história colonial e da ditadura, o ataque à Constituição, ao 25 de Abril, assente na defesa de um regime autoritário e oligárquico. Na Europa, é para a Hungria e a Polónia que devemos olhar. Segundo esta direita radical, vivemos hoje, em Portugal, com o governo socialista de António Costa, numa “ditadura”, que “abafa” as liberdades e usa o Estado para dominar tudo. Ainda falta a acusação da pedofilia, que já foi tentada antes, e voltará a ser tentada.

7. Um dos problemas em defrontar esta ofensiva vem de que a sua crítica mais eficaz não parte das ideias “fracturantes” dos últimos anos, nem da política identitária centrada no abandono das questões sociais a favor de lutas de género, de raça, de orientação sexual, que, pelos seus exageros, tem sido um maná para esta direita radical. Há hoje mais mobilização para uma Marcha LGBT do que para uma manifestação contra os despedimentos. Este abandono das questões sociais, da preocupação com a pobreza e a desigualdade, com o mundo do trabalho, fragilizou todo o centro e a esquerda.

8. Segundo esta direita radical, vivemos hoje, em Portugal, com o Governo socialista de António Costa, numa “ditadura”, que “abafa” as liberdades, usa o Estado para dominar tudo, em particular o aparelho judicial, persegue os seus adversários e é corrupto até à medula. Ainda falta a acusação da pedofilia, que já foi tentada antes, e voltará a ser tentada. Esta análise do país pareceria absurda pelo seu exagero se as pessoas parassem para pensar para além do ruído tribal.

9. É certo que muitas perversões existem na situação actual e o clientelismo socialista e a corrupção são pechas de hoje, como no passado foram de outros governos. É igualmente verdade que a natureza das clientelas dos grandes partidos gera fenómenos idênticos, agravados no PS pelo seu jacobinismo. Mas o exagero muda o carácter destas acusações e torna-as uma coisa diferente, torna-as um ataque contra a democracia. Não há ditadura nenhuma hoje em Portugal, há abusos do poder, e dar este salto torna ineficaz o combate político ao PS, e essa ineficácia torna-se uma impotência que tende a justificar-se como resultado de uma perseguição e da falta de liberdade. É um círculo vicioso.

10. Estas notas vão continuar para a semana com a análise de intervenções recentes de dois dos mentores desta nova direita radical, Diogo Pacheco de Amorim na chamada “Academia Política do Chega”, e Carlos Blanco de Morais no PÚBLICO. Vejo com uma certa ironia a interpretação psicanalítica contra mim de que uma vez maoista sempre maoista, coisa, aliás, que nunca escondi, como muitos fazem. O mesmo, aliás, nunca se aplica aos “fascistas”, lembrando que os antepassados desta direita não são os reformistas do tempo de Marcelo Caetano, da SEDES, da Ala Liberal. São os sectores “ultras” contra Marcello Caetano, para quem este era demasiado mole face à oposição, e eles seriam duros, o que, como o instrumento da dureza era a PIDE, sabemos muito bem o que significava. Aliás, exigiram na Assembleia Nacional a pena de morte contra os “terroristas” internos e seus “cúmplices”, e consideravam “traidores” Sá Carneiro, Balsemão, Miller Guerra, Magalhães Mota, etc.

“Que sofram na sua própria carne…”, intervenção de Francisco Casal Ribeiro na Assembleia Nacional, 13 de Março de 1973 DR

11. Esta ala mais à direita não se limitava a publicar uns panfletos, ou a fazer umas provocações quando estavam em grupo e com protecção policial, treinavam com a Legião Portuguesa, por exemplo em Coimbra. E, nos círculos do Futuro Presente, mesmo depois do 25 de Abril, não escondiam a sua admiração por Pinochet, e andavam a fazer caminhadas pela serra da Estrela para endurecer o corpo “vanguardista”, e alguns dos seus próceres aparecem em fotografias de braço ao alto. Só há uma coisa em que eles não têm biografia, é na defesa da democracia.

12. Pronto. Agora podem começar a insultar. (Continua)


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A direita na sua bolha

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 25/05/2018)

Daniel Oliveira

A direita está cada vez mais tribal. Metida numa bolha onde se ouvem uns aos outros numa espiral de indignação, quase todos os seus protagonistas falam em modo histriónico. Vemos todos os sinais: a grupusculização que foi apanágio da esquerda, substituição do programa pelo panfleto ideológico, hiperbolização do discurso, que banaliza palavas como “ditadura” ou “censura”. Isto não é a direita a reerguer-se, é um beco sem saída, que a afasta, no discurso e nos resultados, do país. O problema não é o PSD ter 22% (Intercampus), é toda a direita ter 37%. A radicalização está a fazer crescer o extremo, mas a encurtar o conjunto da direita.


Começa esta terça-feira mais uma sessão da “Aula Magna das Direitas”, como lhe chama a comunicação social. O encontro do Movimento Europa e Liberdade, que não conta com a “direita fofinha” mas terá a “esquerda corajosa” – linguagem de grande parte dos promotores, que só apreciam a heterodoxia do lado de lá da barricada – tem apenas um significado: consequente com o seu discurso e várias decisões recentes, Rui Rio coloca-se no mesmo campo político de André Ventura. “Aula Magna das Direitas” é uma imagem que os jornalistas foram buscar às sessões que, à esquerda, se realizaram da Reitoria da Universidade de Lisboa, nos anos duros da crise económica. O paralelo não é fácil, porque a esquerda estava em crescendo na sua capacidade de fazer oposição e o Governo vivia uma grande impopularidade. Agora, a oposição de direita está em crise e António Costa é um primeiro-ministro popular.

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De tanto ver subidas e descidas de cada partido de direita pouca gente presta atenção a um facto: com uma pandemia e uma crise económica, a direita parlamentar totaliza, segundo a última sondagem da Intercampus, 37,1% dos votos. Se é relevante que o PSD, com 21,7%, perca votos para a extrema-direita (com 8,3%), é bem mais relevante que não consiga sequer beliscar o centro. A crítica que se faz a Rui Rio é a de que é pouco firme e por isso não segura o voto da direita que está irritada com António Costa. O que devemos perguntar é porque é que não consegue que o centro se irrite com a esquerda.

Já escrevi várias vezes sobre o disparate estratégico e tático de Rui Rio ir abrindo cada vez mais as portas a entendimentos com o Chega. Esse discurso garante-lhe perdas para os dois lados. Os que querem uma direita mais dura, mas capaz de governar, percebem que o voto no Chega não é perdido e rumam para ele. Os que, querendo uma alternativa ao PS, não querem um governo que dependa de Ventura, percebem que o PSD não lhes dá essa garantia. Rui Rio perde a direita para o Chega e o centro para o PS.

Mas há uma coisa um pouco mais profunda do que isso. A direita está cada vez mais tribal no seu discurso. Parece exuberante e forte nas redes sociais, onde o exagero se dá bem. Mas o país é outra coisa. Metida numa bolha onde se ouvem uns aos outros numa espiral de indignação que não é acompanhada pela maioria dos portugueses, quase todos os seus protagonistas falam em modo histriónico.

Só nas últimas semanas, Rui Rio elogiou um discurso de Alberto João Jardim em que o ex-presidente do governo regional da Madeira comparou António Costa a Nicolas Maduro (na verdade, gostou no discurso porque batia nos seus opositores internos, únicos que realmente lhe interessam). João Cotrim Figueiredo deu a entender que achava que o Papa Francisco é socialista, no que foi acompanhado por Ventura. Carlos Moedas falou de “medo” em Lisboa e disse que a esquerda o odiava. Até Duarte Pacheco, candidato a Torres Vedras, disse que ali se vivia uma ditadura socialista para depois da morte do “ditador” lhe tecer rasgados elogios, mostrando que a palavra “ditadura”, que em tempos era utilizada com gravidade, não tem grande significado nos discursos de campanha. E já nem falo da candidata para a Amadora, que há quatro anos seria considerada inaceitável por todos os partidos parlamentares, a começar pelo CDS (que retirou o apoio a André Ventura, em Loures).

A direita vive o seu PREC e, como Vasco Gonçalves em Almada, parece acreditar que este é o tempo em que o processo revolucionário depende de uma minoria e deve radicalizar-se. Vemos todos os sinais: a grupusculização que outrora foi apanágio da esquerda, a divisão entre a direita a sério e a direita “fofinha”, a substituição do programa pelo panfleto ideológico (de que a Iniciativa Liberal é um bom exemplo), a hiperbolização do discurso, de que a banalização de termos como “ditadura” ou “censura” são exemplos. Mas a esmagadora maioria dos portugueses não vive no Twitter e não se sente a caminho da Venezuela.

Ao contrário do que os mais excitados pensam, isto não é a direita a reerguer-se, é um beco sem saída, que a afasta, no discurso e nos resultados, da maioria do país. Quando Rui Rio faz ironia com as suas quedas nas sondagens, apesar do Novo Banco e de Odemira, apenas demonstra não perceber os efeitos do caminho que está a percorrer. O problema não é o PSD ter 22%, é toda a direita ter 37%. A radicalização está a fazer crescer o extremo, mas a encurtar o conjunto da direita. E ao ouvir os vários candidatos autárquicos do PSD parece ser uma corrida para o abismo.


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