Os deuses da hospitalidade

(José Soeiro, in Expresso, 16/08/2021)

A história foi revelada no passado dia 11 pelo Jornal de Notícias. Um gato sem dono, que há três anos residia num condomínio do bairro de Tiradentes, no estado brasileiro de Mato Grosso, “recebeu da Justiça o direito de permanecer naquele local como animal comunitário”. O felino, de seu nome Frajola, conquistara já o coração de muitos moradores, mas outros, indignados, queriam expulsá-lo à força da seleta propriedade. Houve mesmo quem, em violenta inimizade, tivesse disparado fogo-de-artifício contra o animal.

O juiz, contudo, deu razão ao bicho. “Os moradores e o condomínio não têm o direito de abandonar o animal, que já pertence ao local, muito menos matá-lo ou maltratá-lo. Todas essas condutas constituem crimes”, sentenciou. Por mais que não tivesse título de propriedade, o gato ganhou assim oficialmente o direito ao lugar.

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A mesma sorte não têm tido, em São Paulo, os moradores de rua. São mais de 24 mil, segundo um estudo da prefeitura, quase 13 mil a viver ao relento. Em plena pandemia, tornou-se viral a imagem do padre Júlio Lancelotti, 72 anos, com uma marreta na mão a derrubar as pedras que os serviços da prefeitura plantaram debaixo dos viadutos para impedir que os sem-abrigo dormissem naqueles lugares. Questionado sobre o significado do seu gesto, o pároco explicou que era bem mais que um conjunto de marretadas. “É uma forma de combater todo tipo de autoritarismo e imposição (…) é um combate a quem desrespeita os direitos humanos e a dignidade das pessoas.”

Infelizmente não é só em São Paulo que os poderes públicos têm utilizado estes esquemas desumanos para afugentar quem não tem onde se abrigar à noite. Mais do que pregar a justiça ou esperar por ela, Júlio Lancelotti decidiu exercê-la, enfrentando “a tragédia dos esquecidos”, como lhe chamou, e contrariando com uma ação concreta os procedimentos de arquitetura hostil para impedir a permanência das pessoas. Tem razão o padre, ao lembrar assim a importância da hospitalidade, como a tem o juiz de Mato Grosso a propósito do gato. Serão verdadeiras cidades as que não acolhem amigavelmente quem nelas vive, sem exclusões? E o que dizer de quem desconhece o que Manuel António Pina disse melhor do que ninguém a propósito dos gatos? Ao contrário do que terão achado alguns condóminos, não somos nós quem os acolhe. Nos gatos, lembrava o poeta portuense, habita “um deus único e secreto/ governando um mundo efémero/ onde estamos de passagem”. E diz Pina, ainda, “Um deus que nos hospeda/ nos seus vastos aposentos/ de nervos, ausências, pressentimentos,/ e de longe nos observa”.


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