Quim Barreiros: “Em agosto, até há dias em que damos duas, uma à tarde e outra à noite”

(Catarina Pires, in Diário de Notícias, 05/08/2019)

(Ó Quim, explica lá isso: e é com Viagra ou sem Viagra? 🙂 Pergunta da Estátua ao rei dos arraiais de Verão.

Estátua de Sal, 05/08/2019)


Quim Barreiros não é homem de perder a oportunidade de um trocadilho brejeiro e isto de, em 31 dias, ter 33 ou 34 atuações marcadas não é para todos. Não revela a agenda, mas é certo que percorrerá o país de norte a sul. Doze mil quilómetros em média num mês, ao volante do Mercedes, que não para quieto na garagem. Em nenhuma garagem.


Quim, ó Quim, chama uma senhora que estica o telemóvel e traz a família. Quim Barreiros, sério concorrente ao presidente da República no que a selfies (e a “hiperatividade”) diz respeito, posiciona-se para a fotografia. Faltam cinco minutos para a hora marcada de entrar em palco, mas o artista, entre a descontração e a pose profissional, passa de abraço em abraço, tirando fotografias em série. As selfies com os fãs fazem parte do seu show.

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Mulheres, crianças, jovens, velhos, famílias inteiras, não há quem não queira registar o momento com o homem que há de fazê-los dançar, pular e repetir, à gargalhada, refrães de ambígua brejeirice, ao som do acordeão, cerca de dez quilos de instrumento, que aos 72 anos o cantor aguenta ao peito, hora e meia, enquanto canta e dança.

Às oito da noite, o recinto das Festas de Nossa Senhora de Porto Salvo, em Oeiras, estava pouco mais que às moscas. Era dia de semana, quinta-feira, 25 de julho. Ninguém diria que duas horas depois estaria à pinha. Ninguém, exceto Quim Barreiros, que instado a divulgar a agenda do mês de agosto, responde: “Eu nunca dou isso a ninguém, nem sequer ponho na internet, porque se puser a minha mulher sabe onde é que eu estou”, diz, a rir. Vá lá, insistimos. “Sabes, minha querida, não tenho necessidade de divulgar a agenda porque onde eu vou é uma enchente, seja onde for. Publicidade para quê se chego lá e não têm sítio para pôr as pessoas?”

Quim Barreiros anda nisto há cinquenta anos. Já não há surpresas. Nunca houve manias. Quando as condições de som não são as melhores, improvisa; se não há camarim, não há camarim. O espetáculo tem de continuar. “Nunca deixei uma atuação por fazer, não posso deixar uma comissão de festas pendurada, que trabalha durante o ano todo para aquilo e muitas vezes, coitados, são eles os enganados. Faço das tripas coração, mas faço. Quero lá saber do camarim, a minha vida sempre foi colaborar com as comissões de festas e está aí um dos meus grandes trunfos. Deixo sempre uma porta aberta. Em cinquenta anos, deixo sempre a porta aberta.”

Porta aberta que não só enche concertos como enche a agenda, sobretudo no verão, com ponto alto no mês de agosto, que, no caso de Quim Barreiros, é sobretudo passado em aldeias, de norte a sul do país. “Percorro o país todo, mas diria que mais a norte do Tejo. Os nortenhos são mais festeiros, em qualquer aldeia há uma festa”, diz.

Aos 72 anos, a idade já pesa e é a única razão que o leva hoje a dizer que não, mas agosto é sagrado. É o mês daqueles que fizeram dele quem é hoje. Os emigrantes.

“Como é a vida de um cantor popular em agosto? Ó minha querida, vou falar-te da minha vida. Em agosto é isto: o mês tem 31 dias e eu normalmente faço 33 ou 34 festas. Já estás a ver que é todos os dias. E há dias em que damos duas, uma à tarde, outra à noite.”

Aos 72 anos, a idade já pesa e é a única razão que o leva hoje a dizer que não, mas agosto é sagrado. É o mês daqueles que fizeram dele quem é hoje. Os emigrantes. “No início da minha carreira, andei muito pelas comunidades lá fora. Naquela época do 25 de Abril aqui as portas estavam todas fechadas e a gente teve de se pirar para a emigração. Sempre fui muito bem recebido por eles, e continuo a ser. Afinal, quem são os nossos emigrantes? De onde é que eles vêm? Das aldeias. Toco a música deles, a música de que eles gostam.”

Tocou lá e agora toca cá. Talvez desse um refrão. É assim que Quim Barreiros cria as suas cantigas, com frases que ouve aqui e ali. “Vou armazenando dicas que vou ouvindo, frases que anoto e quando tenho tempo vou buscar e dali faço uma cantiguinha.”

Mas voltando ao assunto, foi lá fora, entre as comunidades portuguesas emigrantes, que ganhou o dinheiro e a independência, diz, e isso não esquece, por isso não há festa nem festim de aldeia onde falte o Quim. “Quando larguei a emigração, já cheguei a Portugal com estofo e isso é muito importante para um profissional. Quando um profissional não depende de ninguém é uma coisa, quando depende de alguém é outra, está sujeito a isto ou aquilo ou aqueloutro e eu nunca tive de me sujeitar, sempre fui um homem muito independente.”

E continua a ser. Se ligarmos para o número de telefone que vem no seu site é ele que atende. Um “tooou” despachado e de pronúncia minhota, que arruma num minuto o interlocutor. É ele que gere a agenda e a carreira e, se reconhece que é cansativo correr o país de uma ponta a outra, não esquece que o inverno pode ser muito duro.

A par das festas de aldeia, as queimas das fitas são o que mais enche o coração do artista: “A malta nova, os universitários, são um espetáculo dentro do meu espetáculo, eles é que cantam, eles é que dançam, eles é que fazem a festa, eu sou só o maestro, dirijo, é uma maravilha.”

“A maioria dos artistas ou trabalha no verão ou está tramado, porque para a maioria não há trabalho. Eu felizmente ao longo dos anos tenho sido um homem feliz, porque só paro quando quero. Tenho trabalho durante o ano todo, se quiser. Em janeiro, fevereiro e março, não há trabalho em Portugal, mas há as comunidades portuguesas espalhadas por todo o mundo. Depois, vêm as semanas académicas e as queima das fitas, em abril e maio; depois, são as festas juninas; depois no verão é sempre a abrir, em julho, agosto e setembro, em outubro e novembro, são as receções aos caloiros nas universidades e depois em dezembro há as festas de Natal que as firmas fazem para os empregados. Portanto, normalmente tenho trabalho sempre.”

Tem trabalho sempre, mas não como em agosto, em que os dias não chegam para a quantidade de atuações programadas. Em julho, fez 25 ou 26 espetáculos, terá tido cinco dias de descanso, que a ele, que tem dificuldade em parar, mesmo quando está parado, terão servido de pouco. “Nunca estou parado, sou um homem hiperativo. Até na minha casa, desde que me levanto até que me deito, se não há música, há uma fechadura para desenferrujar, uma cadeira a que falta um parafuso, muita coisa para fazer, e entretenho-me assim.”

Talvez isso, essa necessidade de se entreter, mantenha vivo o desejo de se fazer à estrada. Em agosto, estima, fará uma média de 12 mil quilómetros. É ele que guia e leva tudo o que precisa, que não é muito, mudas de roupa e os remédios “Já sei o que é andar na estrada há muitos anos e por isso estou preparado para todas as eventualidades.” Anda sempre sozinho e dorme onde calha, mas hoje, muito mais do que antigamente, se o espetáculo não for longe, vai a casa. “Vou a casa quando tenho oportunidade, se as festas são mais perto. Hoje é mais fácil, porque se for 100 ou 200 quilómetros em autoestrada, a gente acaba uma festa à meia-noite e meia e às duas e meia já está em casa. Antigamente, ficava muito mais vezes fora.”

“Já viste algum artista português rico? O dinheiro que levo aqui, faz de conta que são dez mil euros, recebo quatro mil e tal e o resto é para as finanças. Esses é que estão ricos, não sou eu.

E não tem medo de adormecer ao volante? “Não, porque o meu relógio biológico está todo avariado. Um músico, que tanto vai para a cama à uma da manhã como às cinco ou às sete, acaba por ficar todo avariado e eu para dormir tenho de tomar comprimidos. Posso sentir-me cansado, mas nunca tenho sono. E também te digo uma coisa, hoje em dia é muito fácil conduzir em Portugal, por causa das autoestradas. A gente para na área de serviço, toma um café, lê o jornal, distrai-se e arranca outra vez. Antigamente, é que era difícil, ir da minha terra para Bragança ou da minha terra para Beja, eram oito ou dez horas de viagem, de noite, e não havia nada, às vezes queríamos gasóleo ou gasolina e não havia uma única estação de serviço perto.”

A equipa de músicos e técnicos de som vão numa carrinha à frente, para montarem o equipamento e ele depois junta-se a eles. Se têm pedalada para acompanhar o seu ritmo frenético? Diz que não e ainda bem: “O contraste entre um hiperativo e os outros cria um meio-termo e um equilíbrio que é importante.”

E com tanto trabalho, está rico? “Já viste algum artista português rico? O dinheiro que levo aqui, faz de conta que são dez mil euros, recebo quatro mil e tal e o resto é para as finanças. Esses é que estão ricos, não sou eu. Eu, que tenho de pagar transportes, músicos, etc., recebo 47%, o fisco fica com 53%, portanto estás a ver. Quem anda aqui há muitos anos e trabalha muito vive bem, mas não é rico. Ricos são o Iglesias ou o Roberto Carlos, que falam em milhões e têm iates e tal. Eu não tenho nada disso, tenho um mercedinhos, a minha casa, e vivo bem, agora rico…”

A reforma virá quando sentir que já não está capaz. Nessa altura, vai fazer como os outros, jogar à sueca e ao dominó e engordar.

Enquanto isso não acontece: “Ora, isto é para começar daqui a três quartos de hora, mais ou menos, temos tempo. Vamos lá.”

Novo Ano

(Agustina Bessa-Luís, in ‘Caderno de Significados’, Guimarães Editora, 2013)

2017

Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse no ventre morte, peste e guerra. Morte à senilidade idealista e à retórica embalsamada; peste para um certo código cultural que age sobre os grupos e os transforma em colectividades emocionais; guerra à recuperação da personalidade duma cultura extinta que nada tem a ver com a cultura em si mesma.

Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse nos braços a vida, a energia e a paz. Vida o suficientemente despersonalizada no caudal urbano para que os desvios individuais não sejam convite ao eterno controlo e expressão das pessoas; energia para desmascarar o sectarismo da sociedade secularizada em que o estado afectivo é mais forte do que a acção; paz para os homens de boa e de má vontade.


Para todos os que me lêem e seguem aqui ficam também os meus votos de Bom Ano novo. Se não for pedir muito às divindades, melhor um pouco do que 2016. Pelo menos, tenhamos essa luz e essa esperança.

(Estátua de Sal, 30/12/2016)