Perderam a vergonha

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 19/05/2023)

Miguel Sousa Tavares

Contas feitas, percebe-se que os ganhos resultantes do notável desempenho do PIB não foram parar às mãos dos pensionistas, nem dos trabalhadores do sector privado, nem dos funcionários públicos, todos com aumentos em 2022 aquém da inflação: foram parar às mãos do Estado e da banca. Os banqueiros nacionais cavalgam a onda de euforia com taxas de juro nos empréstimos que são um garrote para famílias e empresas e remuneram a poupança dos clien­tes com taxas a rondar o zero. E com isso festejam o “sucesso” da sua gestão, anunciando lucros extravagantes aos accionistas e atribuindo-se os correspondentes prémios pornográficos de gestão. “É o mercado a funcionar”, diz o presidente da Associação de Bancos, Vítor Bento. Não, não é: é exactamente o contrário, é um pequeno mercado, funcionando em concertação, a deturpar as regras do jogo. E, por isso, quando o banco público anuncia um comportamento mais decente, logo aparece um banqueiro (António Esteves, no último Expresso) a defender que não faz sentido haver um banco público e que a CGD deveria ser privatizada. Parece que já não se lembra que isso foi feito no passado e que, após várias peripécias pouco edificantes, os banqueiros nacionais que não correram a vender os bancos a estrangeiros acabaram a ser resgatados pelo Estado depois de indecorosas falências. Custou-nos para cima de 20 mil milhões de euros, que poderiam ter sido gastos em tantas coisas mais de que o país precisa e cuja gratidão a classe demonstra agora e assim uma vez mais.

ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Mas, no lugar deles, eu usaria de cautela. Este tom de arrogância com que hoje se nos dirigem é certamente ainda herdeiro da crença em tempos anuncia­da por Fernando Ulrich sobre a paciên­cia dos portugueses: “Ai, aguentam, aguentam!” Pois eu não estaria tão certo. A história por vezes dá cambalhotas imprevistas e nada lhes garante que da próxima vez em que estiverem por baixo e em pânico alguém tenha pena deles.

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2 Há dias, a TVI passou uma notável reportagem acerca de um tema sobre o qual também já aqui escrevi: a revolução ferroviária em Espanha, comparada com o que se passa em Portugal. Para tudo resumir rapidamente, a Espanha agarrou na oportunidade dos dinheiros europeus, que nós destinámos não se consegue perceber bem a quê, para levar a cabo uma verdadeira revolução do transporte ferroviário. Enquanto nós ainda insistíamos na pré-histórica “bitola ibérica”, convencidos de termos a companhia deles, eles investiam tudo na bitola europeia e na alta velocidade, deixando-nos a ruminar sozinhos com a “bitola lusa” e a lamentar que eles se tenham desinteressado de reactivar o Lusitânia Expresso. Enquanto eles compravam comboios ultramodernos e confortáveis, Pedro Nuno Santos (P.N.S.) gabava-se de ter comprado barato a sucata da Renfe para a mandar restaurar em Gaia. Enquanto eles, no espaço de três anos, encheram o mapa de Espanha de linhas de alta velocidade, e continuam, nós apostámos em melhorar linhas caducas, sempre ultrapassando os prazos e preços das empreitadas e nunca garantindo com isso comboios mais rápidos. Enquanto eles abriam a exploração das linhas a operadores estrangeiros, atraindo franceses e italianos em concorrência com a estatal Renfe, o sempre visionário P.N.S. declarava que “a ferrovia é importante de mais para não ser exclusivo português” e o TGV, se um dia chegasse, seria um negócio tão bom para a CP que estava fora de questão abri-lo à iniciativa privada. Conclusão: enquanto nós continuamos basicamente com um serviço ferroviá­rio igual ao que havia em meados do século passado, em Espanha a linha de alta velocidade abrange já milhares de quilómetros ligando o país todo e os seus comboios são três vezes mais rápidos do que os nossos e cinco vezes mais baratos — o que teve como consequência imediata multiplicar por quatro o número de passageiros, serem todos rentáveis e fazer mais pela redução da poluição atmosférica do que dezenas de vácuos discursos. É a diferença entre fazer política para as juventudes partidárias e os congressos do partido ou fazer política de serviço público.

Ao contrário do que P.N.S. defendia, qualquer tentativa para dar finalmente aos portugueses um verdadeiro serviço ferroviário tem de começar obrigatoriamente pelo encerramento desse cancro chamado CP, que já demonstrou bastas vezes não ser regenerável. E é óbvio que não será também com João Galamba, o discípulo ideológico e metodológico de P.N.S., que isso se fará. Enquanto todos os comentadores e os ditos “opositores” andam salivando de entusiasmo com os episódios, menos que menores, de Galamba, o seu adjunto, o computador, o SIS e outras coisas que não têm que ver com nenhuma política ou ausência dela, aquilo que interessa passa-lhes ao lado. Por exemplo, a forma como Galamba, o fura-greves de serviço ao Governo, pôs fim às intermináveis greves dos maquinistas da CP na semana passada. Confrontado com um caderno reivindicativo que, entre outras exigências impossíveis de satisfazer numa empresa eternamente deficitária, contemplava a extraordinária reivindicação de “horários compatíveis com a vida familiar” (imagine-se o mesmo exigido para aviação, aeroportos, serviços de saúde, forças de segurança, etc.), o que fez Galamba? Suprimiu o revisor nos comboios onde a afluência o não justificava, e o dinheiro que a CP pagava aos revisores passará a pagar, em acréscimo, aos maquinistas — pois que, como se compreende, é mais difícil conduzir um comboio que não tem um revisor lá atrás, nas carruagens. Resultado: acabou a greve dos maquinistas e vão começar greves dos outros trabalhadores da CP, que se dizem discriminados. Melhor ainda: como isto foi negociado directamente pelo ministro, passando por cima da administração da empresa, e estes não se demitiram depois de terem sido assim desautorizados e humilhados, imagine-se o regabofe que será agora a gestão daquilo. E a isto — atirar dinheiro para cima das greves, sem uma ideia de futuro, e assistir tranquilamente à degradação contínua de um serviço essencial para o país — chamam pomposamente “a ferrovia”!

3 Num momento em que o SNS atravessa uma crise que faz duvidar da sua própria sobrevivência, a promoção da saúde pública — titulada por uma Secretaria de Estado com o mesmo nome — não teria mãos a medir, se não com as drásticas medidas de fundo necessárias, ao menos com uma infinidade de outras, que, não sendo drásticas, poderiam, com imaginação, facilitar a vida de quem espera em vão pela ajuda pública em matéria de saúde. Mas, não alcançando tais altos voos e à míngua de fazer prova de vida, a senhora que tutela a tal Secretaria de Estado lançou mão do mais habitual dos expedientes: novo pacote de sanções contra a Rússia, perdão, contra os fumadores. A sua proposta de lei, caninamente aprovada em Conselho de Ministros, não contém uma só medida que promova ou defenda a saúde pública ou proteja os direitos dos não fumadores: é apenas um (mais um) castigo infligido gratuitamente aos fumadores, e porque sim. Proibir, como ela diz, impante, os fumadores de practicamente fumar em todos os lugares ao ar livre seria eficaz se ao mesmo tempo proibisse todos os veículos de circular na via pública ou os paquetes de Lisboa, a maior fonte de poluição atmosférica da cidade, de se manterem com as caldeiras a funcionar enquanto estão atracados. Restringir a venda de tabaco apenas às tabacarias vai obrigar os fumadores a gastar mais tempo e gasolina à procura de postos de venda e vai reduzir o negócio a muitas pequenas lojas, mas não vai impedir um único fumador de deixar de o ser. Convidar os concessionários das praias a proibir os fumadores de fumar nos seus espaços é atribuir-lhes um direito, inconstitucional, de estabelecerem a lei num espaço do domínio público marítimo e convidá-los à parceria fascisto-higiénica da sua mentora. Quanto à nobre intenção, que resta, de proteger a saúde dos fumadores de si mesmos, é coisa que não cabe nas funções governativas da senhora — da minha saúde ocupo-me eu, estalinismos dispenso. A sua propostazinha é apenas o conhecido e ancestral reflexo irresistível da tentação ditatorial do pequeno funcionário: gozar os seus 15 minutos de fama e de poder absoluto, remédio efémero para as suas frustrações ou vaidades pessoais.

Mas a democracia, minha cara secretária de Estado, distingue-se dos demais regimes não apenas por ser o governo legítimo de uma maioria sobre uma minoria mas, sobretudo, por ser aquele em que uma maioria respeita os direitos de uma minoria. Espero bem que a Assembleia da República, que, por iniciativa do PAN, já concedeu aos animais muito mais direitos do que hoje os fumadores têm, lhe explique isto quando for votar a sua vergonhosa proposta de lei.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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