Quão grande é a queda?

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 06/08/2020)

Alexandre Abreu

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O INE publicou há dias a sua estimativa rápida da evolução do PIB português no segundo trimestre de 2020. Ficámos a saber que neste período em que os impactos da epidemia e do confinamento mais se fizeram sentir a economia portuguesa recuou -14,1% em cadeia (comparando com o trimestre anterior) e -16,5% em termos homólogos (comparando com o segundo trimestre de 2019). Para além de ter colocado Portugal tecnicamente em recessão, já que é o segundo trimestre consecutivo de contração, este recuo é o maior de que há registo histórico. Foi consequentemente apelidado de “queda brutal” e “trambolhão monumental” na comunicação social, o que não deixa de ter fundamento. Mas como podemos avaliar a real dimensão deste recuo?

Tanto em cadeia como em termos homólogos, a queda do PIB português neste segundo trimestre excede largamente os piores trimestres da Grande Recessão e da crise do euro. Entre 2008 e 2013, a contração trimestral do PIB nunca ultrapassou os -3% e o recuo trimestral homólogo foi no máximo de -5%. Para além disso, a contração da economia portuguesa foi maior do que a média da União Europeia e da zona euro, segundo a estimativa rápida do Eurostat (-15% e -14,4% em termos homólogos, respetivamente), tendo sido a quarta maior entre os países da União Europeia que disponibilizaram já estimativas rápidas. O impacto negativo sobre a economia portuguesa compara ainda desfavoravelmente, por exemplo, com o recuo trimestral da economia norte-americana, que foi de -9,5% em cadeia.

Em contrapartida, a contração homóloga do PIB em Portugal foi a sexta menor entre as economias europeias com estimativas publicadas: afinal de contas, foram apenas dez os países com estimativas rápidas incluídos na nota informativa do Eurostat. A diferença face à média europeia pode ser considerada pouco significativa, a comparação com o recuo da economia norte-americana faz pouco sentido (até porque esta crise sanitária e as medidas de resposta chegaram com várias semanas de atraso aos Estados Unidos) e há motivos para pensarmos que, mais do que no contexto da Grande Recessão e da crise do euro, a crise atual tem um impacto brutal mas mais circunscrito no tempo.

Sobretudo, a dimensão da contração do PIB português agora estimada pelo INE parece-me surpreendentemente limitada à luz do que já sabiamos sobre a situação do emprego em Portugal. As estimativas do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social que têm vindo a ser publicadas todas as semanas mostram que mais de um milhão de trabalhadores terá estado em lay-off entre 16 de abril (data em que se terá ultrapassado a marca de um milhão) e o final de julho (altura em que seriam cerca de 1 milhão e 400 mil os trabalhadores em lay-off). Isto representa qualquer coisa como 1/4 da população empregada em lay-off durante este trimestre, em princípio sem produzir, aos quais acrescem ainda algumas centenas de milhar de novos desempregados, a maioria dos quais surge nas estatísticas como novos inativos. Considerando tudo isto, que o recuo trimestral do PIB tenha sido de -16,5% e não de -20% a -30% pode até ser considerado surpreendente pela positiva.

Outra forma de aferirmos a dimensão do recuo da economia passa por tentarmos antecipar a sua dimensão anual. É um exercício dificil e discutível, pois implica antecipar a trajetória de recuperação (ou não) nos próximos trimestres. Nos Estados Unidos, por exemplo, o recuo em cadeia de -9,5% foi apresentado em muitos órgãos de comunicação social como um recuo anualizado de -32,9%, mas este último número faz pouco sentido, já que equivale a assumir que o comportamento da economia durante o conjunto do ano será praticamente tão mau como neste trimestre, o que na ausência de um agravamento significativo da pandemia parece pouco realista. Também no caso português, tudo depende da trajetória dos próximos meses: se, depois do embate da primeira metade do ano, a economia portuguesa recuperasse para valores do PIB no 3º e 4º trimestres de 2020 idênticos aos de 2019, a contração anual seria relativamente limitada, talvez de -4% ou -5%. Mas é muito mais provável que o impacto sobre vários setores, como por exemplo o turismo, se prolongue pelo resto do ano, implicando quedas trimestrais homólogas menos intensas do que no segundo trimestre mas ainda assim muito expressivas. Se esses recuos trimestrais forem próximos de -10%, estaremos perto de uma contração anual igualmente com dois dígitos.

Em todo o caso, o mais determinante de tudo vão ser os efeitos de segunda ronda: isto é, a dimensão ‘secundária’ da recessão causada pelas falências, desemprego e contração da despesa originados pela paragem ‘primária’ da economia no contexto da epidemia e do confinamento. Estes efeitos de segunda ronda – no fundo, a espiral recessiva associada a estes efeitos multiplicadores negativos – são também os mais difíceis de prever, pois dependem de fatores relativamente complexos: o padrão setorial da contração da despesa e as ligações a montante a jusante entre os vários setores, a robustez ou vulnerabilidade financeira das empresas afetadas, o impacto sobre a confiança de consumidores e investidores e a adequação (em termos de dimensão e rapidez) da resposta contracíclica pública, entre outros. E é aqui, mais do que na dimensão do recuo no último trimestre, que me parecem estar as principais razões para preocupação: apesar da melhoria nos últimos anos em indicadores como o crédito malparado, os setores privado e público da economia portuguesa permanecem altamente endividados e, por esse motivo, bastante vulneráveis. Mais do que a dimensão do embate inicial, são as perspetivas de recuperação que preocupam.


Os devassos puritanos

(António Guerreiro, in Público, 13/1/2019)

António Guerreiro

Foi esta semana divulgado, com larga difusão, como é habitual sempre que se trata destes assuntos, um inquérito do Centro de Estudos da Federação Académica de Lisboa que apresenta os números (em percentagens) da violência sexual a que os universitários dizem ter sido submetidos. Num item do inquérito é dito (e cito a notícia do PÚBLICO) que “poucos (17,8%) encaram como uma violência continuar a ter sexo quando o/a parceiro/parceira adormece durante o acto”.

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A violência sexual existe e não devemos tolerar que ela seja tratada de maneira displicente ou com eufemismos, e as mulheres de todo o mundo, sobretudo elas, têm razão de sobra para se manifestarem nas ruas e entoar um grito colectivo, como fizeram recentemente as mulheres chilenas: “O violador és tu!”. Mas quando os critérios de classificação da violência são tão alargados que incluem até levar o parceiro a dormir de indiferença ou de tédio e continuar, desperto e solitário, cheio de entusiasmo (prova de que o ser humano, racional e portanto dotado de linguagem, “faz amor” – bela e pertinente expressão! – com os seus fantasmas e o seu imaginário, coisa que estes inquéritos nem por sombras querem admitir), devemos suspeitar que os inquéritos destinados a medir os índices de violência e assédio sexual se destinam a fazer-nos concluir que quase não há sexo sem violência. O que eles não dizem é que, provavelmente, é no seio da conjugalidade que a violência é maior e mais persistente. A mais comum forma de violência sexual no espaço conjugal é a sua forma negativa, isto é, a total ausência de sexo e os interditos discursivos que essa situação cria, para que não se quebre uma união fundada na inércia, outras vezes em razões pragmáticas, e mais raramente noutros afectos respeitáveis que a família cristã exalta porque tem uma sabedoria antiga que lhe diz que ou as coisas tendem para essa pretensa neutralidade (raramente feliz)ou então o desfecho é o divórcio e a delapidação de patrimónios (às vezes, até do património parental). Se estes inquéritos, determinados por um neo-puritanismo, acabam por assimilar boa parte das atitudes e rituais sexuais a formas de violência, mais não seja porque deixam aos inquiridos a liberdade de estabelecerem como violência o que sentem como tal, então eles acabam, sem o saber, por entrarn a lógica da transgressão, do gozo que advém de quebrar as normas; ou então mostram uma embaraçosa cumplicidade com o pensamento de Sade (Sade, mon prochain, que título revelador!) e a sua maneira de enunciar, classificar, racionalizar e articular através de um discurso as práticas sexuais. É o triunfo do plaisir de tête. E assim o neo-puritanismo do nosso tempo revela-se muito mais apto a alimentar as coisas as formas mais extremas de violência sexual do que a permissividade promovida pelos discursos e as práticas da revolução sexual.

Mas os dados deste inquérito mostram bem onde reside a verdadeira obscenidade do nosso tempo: nos números, nas percentagens, nas estatísticas, na mensurabilidade elevada ao estado de apoteose, que permite dizer que 71,1%  dos estudantes entendem como violência “enviar uma SMS sexual fora de contexto”. É a cultura quantitativa da avaliação a funcionar, a “evaluative society” a mostrar os seus requintes. São todos estes dados que servem à “governance” para gerir todos os aspectos da vida social e política. A estatística é o instrumento quase único da governação.

Lendo o que revela o inquérito, uma questão legítima deve o leitor colocar: não é verdade que nas coisas do sexo ninguém diz a verdade? Seja porque queremos estrategicamente ocultar aos outros o que pertence à nossa intimidade, seja porque quase sempre, nesta matéria, mentimos a nós próprios, instalamo-nos na mentira e é preciso um longo trabalho analítico para sair dela. Por isso é que estes domínios são muito mais complexos do que nos querem fazer crer. E andamos nisto desde sempre: ora a ver a Santa Teresa de Bernini em êxtase místico; ora a vê-la a ter um orgasmo. ora temos a santa, ora temos a figura suprema da orgia barroca. A grande questão é que ambas coincidem e o espectador passa de uma a outra mesmo sem mudar de posição e deslocar o olhar.


Livro de recitações

“Pode enfiar as suas questões pelo cu acima”
Peter Handke, em resposta  a um jornalista, citado em Peter Handke; the scandal is not where they say it is, revista online Diacritik

Parece que esta frase (ou melhor, aquela de que esta é uma tradução) citada em vários jornais para dar provas da má educação e do pouco respeito que Peter Handke tem pelas práticas da “racionalidade comunicativa” e pelas instituições democráticas (o que faz dele, em muitos sectores e latitudes, uma figura de misantropo que carrega consigo o “peso do mundo”, uma espécie de escritor-pária a quem a Academia sueca, de maneira ingénua ou imprudente, resolveu outorgar o Prémio Nobel) não foi afinal pronunciada numa das disputas que teve recentemente com jornalistas. Parece que a frase foi pronunciada em Viena, em 1996 e nada tem que ver com o contexto do Nobel. Mas ela dá provas de uma hostilidade antiga, de uma irredutibilidade deste escritor ao sistema mediático. Isso, em si, não faz dele um bom nem um mau escritor, mas tem o mérito de mostrar que a história da literatura, e da arte em geral, está cheia de pessoas impacientes, intolerantes e que nem se importam de ser considerados energúmenos. O terror nas letras é uma virtude que devia ser mais cultivada.