Not clean, not safe

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 27/06/2020)

Clara Ferreira Alves

Agora, os mesmos que disseram que éramos um destino de eleição para as férias inglesas, ou britânicas, dizem que somos pestíferos. Em vez do recorte da Praia da Rocha com água verde-esmeralda, vêm os números da peste.


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Não somos o Estado pária, estamos logo abaixo do Estado pária. A Suécia. Os entusiasmados do costume, mais ou menos os mesmos que se comoveram com a vitória de Trump com o voto das massas, humedeceram os olhos com a “experiência sueca”. Sem tomarem medidas de confinamento ou proteção, sem fecharem a economia, os suecos guiados por um único epidemiologista e as suas teorias esdrúxulas sobre a imunidade de grupo, ou de manada, ordenaram a eugenia. Os velhos internados com 65 anos ou mais foram abandonados, ordens para não serem tratados ou assistidos, acabando por morrer na solidão e na agonia, visto que dois terços dos trabalhadores dos lares desertaram quando a epidemia atingiu o sector. Dois terços. A Suécia exibe agora um número de mortos muito superior ao dos civilizados vizinhos, a Noruega e a Dinamarca, e tem a entrada barrada em todos os países europeus. Se fossem os alemães a tentar a experiência, não faltariam os gritos e acusações de nazismo e ressuscitação de Goebbels. Sendo os suecos, bom, sendo os suecos, torna-se um sinal de uma superior civilização.

Em Portugal, somos grandes admiradores das civilizações superiores, praticamente todas as dos países mais ricos do que o nosso. Assim se explica a quantidade de notícias em jornais portugueses sobre jornais estrangeiros que publicam notícias sobre portugueses. O “Sunday Times” disse, o “Telegraph” disse, e inchamos o peito de orgulho com a distinção. Pode ser uma notícia com três parágrafos, nós nos encarregaremos de a dilatar. Pode ser uma notícia falsa, ou mal informada, nós nos encarregaremos de a reproduzir, porque estas breves contribuem para a chamada autoestima dos heróis do mar.

Agora, os mesmos que disseram que éramos um destino de eleição para as férias inglesas, ou britânicas, dizem que somos pestíferos. Em vez do recorte da Praia da Rocha com água verde-esmeralda, vêm os números da peste. Os novos surtos. Em compensação, a Espanha aparece como o eldorado, aberto a receber as hordas da cerveja e do peixe frito, do vinho reles e da salsicha. Vivam Benidorm e Torremolinos, abaixo a Quarteira e Albufeira. Como é que isto nos aconteceu? Simples, bastava termos mentido. Uma criança saberia como fazer.

Recapitulemos. Ainda não há muito tempo, a Espanha estava carregada de mortos, de infetados e de problemas. Tivemos de os defender dos holandeses. Os números eram tão superiores e as medidas tão desordenadas que as “autoridades espanholas”, uma coisa que ninguém sabe bem o que seja, decidiram fechar as fronteiras não as abrindo tão cedo. A fronteira com Portugal foi fechada de um dia para o outro e sem comemorações, cada país tratou de si como pôde. É o período do chamado “milagre português”, tão grande como o de Fátima e tão mitificado como este. A fé tem muita força.

O tempo foi passando, as autoridades portuguesas, que são muitas e várias, entrando em contradição, disseram que podíamos sair de casa. Numa praia onde num dia não podiam estar dez pessoas juntaram-se 180 mil, com a augusta presença do senhor primeiro-ministro. Sem transição e sem raciocínio logístico. Confina, desconfina, vamos festejar. Em Espanha, tudo continuava na mesma. Mal.

É possível que tenha sido uma invenção nossa, na sequela de corredores entre países com baixa taxa de infeção. Enquanto os outros abriam corredores seguros, éramos o único país do mundo a querer negociar e abrir um corredor com os inseguros ingleses. O primeiro e único. A Grécia disse que não abriria, para não borrar a pintura dos campeonatos de infeção e mortalidade, e a Espanha secundou. A decisão portuguesa parecia assim deslocada e imprudente. O “Telegraph” publicou uma notícia a dizer que Portugal era bestial. A seguir, veio a quarentena inglesa, que a gente do turismo e da aviação aguentou e vituperou. Orgulhosamente sós, perseverámos na negociação do corredor, e parece que estava a correr bem, o Boris aceitava, o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros rejubilava com este negócio estrangeiro. Criámos o selo Clean & Safe e prometemos desinfetarmo-nos bem para receber hóspedes de um país com uma taxa de mortos e infetados tão grande que era a primeira do espaço europeu. Pior que a Espanha e a Itália. Ia ficar tudo bem.

Entretanto, de Espanha chegaram mudanças repentinas nas datas de reabertura da fronteira com Portugal, sem comunicação prévia aos portugueses. Assentou-se o 1 de julho, e os portugueses ficaram todos contentes, a coisa ia meter chefe de Estado e primeiro-ministro. Do lado de lá, o rei, muito útil justamente para cerimónias destas. Ia ficar tudo bem.

Não ficou. Enquanto o desconfinamento acelerado nos trazia mais mortos e infetados, a Espanha aparecia com zero mortos. De um dia para o outro, zero mortos. Zero tudo, os números não atinavam. Enquanto exibia zero mortos, a Espanha ia negociando um corredor com os ingleses, prometendo a abertura de fronteiras. Numa clara operação de propaganda, a Espanha passou-nos a perna, como de costume, e anunciou que estava aberta para o turismo além-mancha, o alemão, o que se quisesse. O “The Guardian” noticiou a coisa, como um acontecimento grandioso, o “Telegraph” também. ABRIRAM. Ninguém falou mais de Portugal, que continuava aberto, nunca fechou, mas sem corredor, à espera da cerimónia fronteiriça. E até a Grécia, tão sóbria, tão fechada a infetados, resolveu abrir o corredorzinho com os ingleses e colocar Portugal na lista negra, numa operação de concorrência desleal que brada aos céus. Chama-se a isto, em bom português, esperteza saloia.

Entretanto, por aqui, negociando a final do Champions, com as autoridades aos saltinhos, deixámos a coisa descambar e a Europa virou-nos as costas. Estado pária, abaixo da Suécia. A Grécia e a Espanha tinham agora o verão desimpedido pela concorrência portuguesa. A Espanha passava por imaculada, mas a versão estava tão estragada como a Imaculada Concepção de Murillo desfigurada por um carniceiro armado em restaurador de arte antiga.

Ou seja, a Espanha mentiu. Mentiu sobre os mortos e infetados porque sonegou os números durante 12 dias, 12, camuflando a desonestidade com a desculpa de que estava a rever os “critérios de contagem”.

O “The Guardian” fez mais uma notícia dizendo que a direita espanhola atacava o Governo com isto, como se o argumento fosse uma invenção política. A Espanha reviu os números, e não eram bonitos. Continuavam as mortes. Por cá, tratando-se de um Governo amigo, socialista, de esquerda, optou-se por enterrar o assunto. E continuamos na lista negra, à espera da fotografia com o rei, em que, para a coisa ser devidamente oficializada no dia 1 de julho, se aconselha o uso de um barrete bem enfiado na cabeça dos nossos chefes de Estado. Para cúmulo, o britânico país mais infetado da Europa veio rever a sua apreciação de Portugal e disse que considerava pôr o nosso país na lista negra, arredando a hipótese de um corredor aéreo ou do turismozinho em Portugal.

Logo fazerem-nos isto a nós, os mais velhos aliados, que pusemos um enfermeiro português a oxigenar o Boris Johnson. E quando encomendámos tantos selos Clean & Safe.

Nota: Escrito na quarta-feira. Pode ser que no sábado nos tenham perdoado. Ele há milagres.


A Europa está a arriscar tudo

(Pedro Sánchez, in Público, 05/04/2020)

A Europa está a sofrer a maior crise desde a Segunda Guerra Mundial. Os nossos cidadãos estão a morrer nos hospitais saturados por uma pandemia que representa a maior ameaça de saúde pública desde a gripe de 1918.

A Europa enfrenta uma guerra diferente das que temos conseguido evitar nos últimos setenta anos: uma guerra contra um inimigo invisível que está a pôr à prova o futuro do projecto europeu.

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As circunstâncias são excepcionais e exigem posturas contundentes: ou estamos à altura das circunstâncias ou fracassaremos como União. É um momento crítico em que, inclusivamente os países e os governos mais europeístas, como é o caso de Espanha, precisamos de provas de compromisso real. Precisamos de uma solidariedade indiscutível.

Porque a solidariedade entre os europeus é um princípio fundamental dos tratados da União. E demonstra-se em tempos como este. Sem solidariedade não haverá coesão, sem coesão haverá desapego e então a credibilidade do projecto europeu ficará gravemente prejudicada.

Nas últimas semanas tomaram-se decisões importantes que aplaudimos, como o novo programa temporal de compra de emergência do Banco Central Europeu e, nesta semana, o plano “Sure” da Comissão, para os afectados pelo desemprego. Mas não é suficiente. É preciso chegar mais longe.

A Europa deve pôr em pé uma economia de guerra e promover a resistência, a reconstrução e a recuperação europeia. Tem que fazê-lo o mais rápido possível com medidas que sustentem a dívida pública que muitos Estados estão a assumir. E terá que fazê-lo depois, uma vez que se ultrapasse a emergência da saúde, para reconstruir as economias do continente mobilizando grande quantidade de recursos através de um plano que chamámos Plano Marshall e que terá que contar com o apoio de todas as instituições comuns.

A Europa nasceu das cinzas da destruição e do conflito. Aprendeu as lições da História e compreendeu uma coisa muito simples: se não ganhamos todos, no fim, perderemos todos.

Podemos transformar esta crise numa oportunidade para reconstruir uma União Europeia muito mais forte. Mas, para isso, precisamos de activar medidas ambiciosas. Se continuamos a pensar de forma limitada, fracassaremos. Os Estados Unidos responderam à recessão de 2008 com estímulos, enquanto a Europa respondia com austeridade. Os resultados são conhecidos por todos. Hoje, que está à espreita uma crise económica global de maior escala que a desse tempo, os Estados Unidos aplicaram a maior mobilização de recursos públicos da sua História. A Europa está disposta a ficar para trás?

É o momento de cortar com os velhos dogmas nacionais. Estamos num tempo novo e precisamos de respostas novas. Conservemos os nossos valores positivos e reinventemos o resto.

Nos próximos meses será inevitável que nós, os Estados-membros, criemos uma dívida maior para responder às consequências de uma crise na saúde mas que também é económica e social. Por isso, as respostas não podem ser as mesmas que estavam previstas para choques assimétricos da economia, como uma crise financeira ou bancária num Estado isolado ou num grupo de Estados. Se o vírus não percebe de fronteiras, os mecanismos de financiamento também não o podem fazer.

O Mecanismo Europeu de Estabilidade pode ser útil numa primeira fase para injectar liquidez nas economias europeias através de uma linha de crédito, sempre que esta seja universal e não condicional, mas não vai ser suficiente a médio prazo.

O desafio que enfrentamos é extraordinário, sem precedentes. Exige uma resposta unida, única, extrema e ambiciosa para preservar o nosso sistema económico e social. Para proteger os nossos cidadãos.

Os espanhóis sempre protegemos e defendemos o projecto europeu. É o momento da reciprocidade. Connosco, com Itália e com todos e cada um dos 27 países da União.

É o momento de agir de forma solidária: criando um novo mecanismo de mutualização da dívida, agindo como um bloco na aquisição de produtos sanitários de primeira necessidade, estabelecendo estratégias coordenadas de cibersegurança e preparando um grande plano de choque para que a recuperação do continente seja rápida e sólida.

Para que não haja divisões entre o Norte e o Sul. Para não deixar ninguém para trás. Vivemos tempos muito difíceis que exigem decisões valentes. Há milhões de europeus que acreditam no projecto da União. Não os abandonemos. Demos-lhes razões para continuarem a acreditar. Agora ou nunca, porque, nestes momentos, a Europa está a arriscar tudo.

Presidente do Governo de Espanha


Salvar o capital ou salvar o povo?

(Ángeles Maestro, in Resistir, 26/03/2020)

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A actual crise sanitária e social tem proporções gigantescas e consequências ainda por determinar, sem comparação desde há décadas.

A saúde pública é ultrapassada enquanto os hospitais de gestão privada com financiamento público olham para o outro lado, mantêm boa parte das suas instalações encerradas e continuam a sua actividade habitual. As seguradoras privadas, em meio à tragédia, multiplicam a publicidade pretendendo aproveitar-se da angústia das pessoas enquanto aproveitam as medidas do governo para reduzir o seu pessoal.

Ao mesmo tempo, surge uma autêntica hecatombe social.

O confinamento decretado para tentar minimizar os contágios revelou toda a magnitude da criminosa desordem capitalista. A polícia, a guarda civil e o exército tomaram as ruas para evitar que as pessoas saiam de casa sem motivo justificado enquanto se deixa ao livre arbítrio do grande capital manter ou não a produção. A incongruência produz situações aberrantes como trabalhadores e trabalhadoras indo trabalhar em sectores não indispensáveis, apinhadas no metro, enquanto o exército com metralhadora em punho ou a polícia as impedem de dar um passeio pelo seu bairro no fim-de-semana. Ao mesmo tempo, a redes sociais reflectem um número crescente de abusos, arbitrariedades e brutalidade policial na aplicação, precisamente, da Lei Mordaça.

De facto, as empresas que fecharam fizeram-no, na maioria dos casos, em consequência da exigência do pessoal. Milhares de empresas mantêm sua produção de bens e serviços não essenciais; e fazem-no expondo seu pessoal – mesmo com casos e sintomas positivos e sob ameaça de demissão – a correr o risco de contágio e de se converterem em novas fontes de infecção. Um dos muitos casos relatados foi o da multinacional dinamarquesa VESTAS, que fabrica turbinas eólicas e obriga os seus 1.300 funcionários a trabalhar na sua sede em Saragoça, apesar de ter vários casos confirmados de Coronavírus. Os sindicatos denunciaram que esta empresa armazena e esconde milhares de máscaras, luvas de nitrilo, óculos e fatos de segurança, etc [1] .

O sindicato CGT da Airbus, depois de comprovar que tanto na empresa como em indústrias auxiliares havia centenas de trabalhadores e trabalhadoras com sintomas – positivo ou em quarentena – e perante a recusa da empresa em parar a produção, convocaram greve indefinida a partir de 30 de Março. O objectivo é dar cobertura a todas as pessoas que decidam não comparecer ao trabalho.

Onde está o dinheiro?

Seria possível pensar que esta penúria desesperada de meios da saúde pública e de miséria em milhões de lares é consequência da ausência generalizada de recursos. Não é assim, nada que se pareça. Recordo alguns dados relativos a fundos que saem dos Orçamentos Gerais do Estado, que vão parar em sectores de prioridade discutível e que não o Estado de Alarme não alterou em absoluto:

Só o pagamento dos juros da Dívida [2] que triplicou depois de transferir dezenas de milhares de milhões de euros de dinheiro público à banca e que não foi devolvido – sem contar os vencimentos de capital – supõe €31,4 mil milhões por ano, €86 milhões por dia [3] . O gasto militar é de €31,4 mil milhões por ano, €87 milhões por dia [4] . As subvenções à igreja católica, mais de €11 mil milhões/ano, €30 milhões/dia [5] . O pagamento à casa real, oito mi milhões de euros por ano, €22 mil/dia [6] .

A tudo isto temos de somar os dados da evasão fiscal dos grandes bancos e empresas, que se em condições normais provocam indignação hoje são directamente escandalosos.

As empresas do [índice] Ibex 35 mantêm 805 filiais em paraísos fiscais, 80% delas na própria UE, para os quais desviam lucros empresariais, provocando perdas multimilionárias nas receitas do Estado pelo já muito desvalorizado imposto sobre Sociedades. Desta forma, apesar do incremento espectacular de lucros declarados nestes últimos anos, as receitas estatais com este imposto foram a metade, ao passo que as receites provenientes de impostos indirectos como o IVA subiram 14%. Os lucros destas empresas nos anos de 2018 e 2019, segundo a CNMV, somam 77.677 milhões de euros.

As empresas do Ibex que mais filiais possuem em paraísos fiscais são o Banco Santander com 207, seguindo-se ACS com 102, Repsol com 70, Ferrovial com 65 e Arcelor Mital com 55 [7] .

E um respirador, material pelo qual clama a saúde pública, custa 4.000 euros.

O grande capital aumenta seu poder com o Estado de Alarme

E frente a esta situação, que antes do coronavírus já partia de condições de miséria dramáticas para 12 milhões de pessoas e de penúria para mais da metade da população [9] , o governo na declaração do Estado de Alarme limitou-se a por ridículos remendos frente ao desmoronamento social e económico em curso.

O governo estabeleceu mecanismos de controle social estritos da população, alguns deles com justificação mais do que duvidosa, ao passo que o capital continua a actuar em função dos seus lucros e contra a saúde da população, a começar pelos seus próprios trabalhadores e trabalhadoras.

As medidas económicas anunciadas pelo governo do PSOE-PODEMOS no passado dia 17 de Março, tal como ocorreu há uma década, põem em poder da banca e das grandes empresas a capacidade de decisão sobre os fundos públicos que, sem dúvida, vão empregar para resgatarem-se a si próprias. A oligarquia económica e financeira, cujas empresas e bancos estão interpenetrados, não só se verá beneficiada por esta gigantesca emergência sanitária e social como é a banca que decidirá a que empresas concede créditos com o aval do Estado e a quais não concede.

Como mandam os cânones da luta de classes, o grande capital, com o governo “progressista” ao seu serviço, mantém o ceptro do poder, ainda mais aumentado, para beneficiar-se com o desastre da imensa maioria.

Vejamos o mecanismo.

Dos 200 mil milhões que se anunciam, 100 mil são avais do Estado que o governo põe em mãos dos bancos para que os administrem. Ou seja, são os bancos os que avaliarão a solvência das empresas que os solicitarem e os que decidirão a quais delas darão e a quais não darão, em função da sua capacidade de assegurar a devolução do crédito concedido. E sem nenhum risco, porque sem por acaso errassem na decisão e se verificasse o não pagamento o Estado actuaria com o aval.

Existe alguma dúvida quanto a que empresas serão consideradas solventes, tendo em conta que os mesmos capitalistas são donos de bancos e grandes multinacionais? Haverá alguma possibilidade de que as mais de 150 mil pequenas empresas ou os mais de três milhões de autónomos que estão a ver afundarem-se seus negócios acedam maioritariamente a esses créditos? É evidente que não.

Foi aos bancos, portanto, que foi concedida a enorme prenda de poder vender a sua matéria-prima, o dinheiro, dando créditos no valor da enorme soma de 100 mil milhões de euros. E venderão seus créditos à taxa de juros “de mercado” quando o Banco Central Europeu (BCE) lhes empresta a eles, e se emprestam entre si, à taxa zero ou inclusive negativa [10] .

A eles somar-se-ão os 750 mil milhões do BCE para comprar “activos públicos e privados”, ou seja, para insuflar essa enorme quantidade de dinheiro público mediante a compra de títulos às grandes corporações, enquanto o risco é assumido pelo BCE. Ou seja, a parte desses 750 mil milhões que caiba à Espanha irá parar aos mesmos grandes bancos e às mesmas empresas multinacionais.

Quanto às medidas destinadas às necessidades mais prementes da classe operária, habitação, luz, gás, água, etc, são meros adiamentos de pagamentos de hipotecas e facturas, que se acumularão para depois. E caso nos esqueçamos, os credores são os mesmos grandes bancos e as grandes multinacionais.

O resto das medidas do governo que impliquem gasto irão incrementar a Dívida pública, essa que pagamos todos, sem que ao grande capital se tenha imposto qualquer fardo. Muito pelo contrário, como vimos. E o que mais veremos quando “para sair da crise” reclamem reduções, ainda mais, no Imposto de Sociedades e outros impostos directos.

Na sua negligência criminal, porque há vidas a pagar por ela, o Executivo não assumiu medidas paliativas que foram adoptadas por outros governos europeus, pelo menos durante do Estado de Alarme, como:

Proibição absoluta de despedimentos neste período, como na Itália e Grécia, declarando nulo qualquer despedimento que se verifique. Na Itália, cada autónomo receberá um bónus de 600 euros em Março e Abril. Na Grécia o Estado dará 800 euros em Abril àqueles que tiverem perdido seu emprego. Na Dinamarca, o Estado pagará 75% dos salários de empresas em risco de crise em contrapartida de não haver despedimentos. Em França, moratória no pagamento de alugueres às PMEs, que além disso não pagarão água, luz ou gás. Na Alemanha, até há pouco gendarme da austeridade na UE, será utilizado o banco público KfW para usar os 550 mil milhões de euros em empréstimos às empresas durante a crise e serão usadas ajudas públicas para que não haja despedimentos.

Neste quadro resumem-se as medidas adoptadas por alguns países. Como se pode ver, a Espanha está na cauda das ajudas se tivermos em conta as aprovadas até 22 de Março último:

Estado% Total ajudas/PIB% Ajudas directas/PIB
Alemanha22%19,09%
Itália20,98%1,40%
Reino Unido17,21%1,36%
França14,26%1,86%
EUA12,15%4,86%
Espanha9,40%1,37%

Fonte: recopilação de anúncios governamentais (22 de Março) Carlos Sanchez Mato [11]

Como se pode ver, até na Itália, com um governo de direita, as medidas de choque social superam amplamente as aprovadas por este governo.

Conclusão urgente: por o salvamento do povo no posto de comando

Por muito que queiram ocultar, sob o sinistro manto do Coronavírus, é evidente que a pandemias foi só o detonador de uma nova crise, de muito maior envergadura e menos margem de manobra que aquela de uma década atrás, e que já estava em avançado estado de gestação.

Esta conclusão não tem interesse só para economistas. É indispensável saber que quando a emergência sanitária se atenuar estaremos em meio à mais gigantesca crise social e económica que se recorda.

Os dados já são alarmantes: 50 mil despedimentos diários, 760 mil pessoas somaram-se a uma paralisação (temporária?). Na semana passada perderam-se mais empregos do que em todo o ano de 2019 e a cara da fome sem paliativos surge com intensidade progressiva nos bairros operários.

O governo, como se viu, não abordou as responsabilidades essenciais que lhe cabem perante uma situação de grave emergência como a actual. Nem sequer quando já se ouvem os estalidos da derrocada foram incluídos nas decisões do Conselho de Ministros de 24 de Março migalhas como a moratória ou ajudas ao pagamentos de alugueres ou a protecção social mais ampla (fala-se em 70% da base reguladora) para as trabalhadoras do lar quando são milhões as mulheres, chefes de família, na economia submersa e que ficam sem nada ao perder o trabalho devido ao Coronavírus.

O Governo de Coligação mostra com cada vez mais clareza de quem recebe as ordens e o Podemos continua a somar batalhas perdidas a mostrar que não serve senão para dar uma imagem “progre” no relato, não nos factos. Enquanto isso, cada vez mais sectores da classe trabalhadora vão descobrindo na sua própria pelo que não se pode continuar assim.

O conto de que não se pode fazer outra coisa senão salvar banqueiros e grandes capitalistas já não é comprado por ninguém, sobretudo depois de haver comprovado como o Rei Emérito é provavelmente o maior ladrão do reino e isso quando a competição é árdua.

As dimensões do desastre não podem ser enfrentadas senão com medidas que considerem as causas, não apenas os sintomas, e que devem constituir o programa básico de uma Frente para salvar o povo.

1. Nacionalização de todos os recursos sanitários e planificação do seu funcionamento ao serviço das necessidades de saúde da população e da protecção eficaz daqueles que estão na primeira linha: os trabalhadores e trabalhadoras de todo o sistema sanitário.
2. Paralisação da actividade em todos aqueles sectores não indispensáveis para a sobrevivência e intervenção das empresas produtoras de recursos sanitários, incluídas as farmacêuticas.
3. Intervenção de todas as grandes empresas de produção e distribuição para a fuga maciça de capitais que já se a verificar e declarar a função social das empresas estratégicas.
4. Expropriação da banca que parasita o resto da sociedade. Recusa a pagar a Dívida, criada em boa parte ao transferir dinheiro público à banca, e não aceitar os limites do gasto público impostos pela UE.

Só com estes instrumentos se pode abordar o objectivo essencial:

5. Planificação racional da economia em função das necessidades sociais.

Em definitiva, o que é incontornável é a necessidade de sair da barbárie de um funcionamento social destinado com mão férrea a assegurar o incremento permanente dos lucros de grandes capitalistas, à custa da miséria, da saúde, da repressão e da vida daqueles que, precisamente, criam suas riquezas.

Junto a estas medidas inescapáveis, cuja urgência irá crescendo a cada dia, surge a necessidade de construir o poder capaz de mostrar o caminho à mobilização popular que sem dúvida se produzirá após esta fase de confinamento e catatonia e, em definitivo, levá-las a cabo. Com base nestas colocações programáticas, enunciadas de uma maneira ou de outra, é preciso construir uma Frente destinada à salvação do povo, a partir do acordo político de organizações e da construção de poder popular a partir da base.

A história nos ensina que nos momentos de crise grave é que se vêm as coisas com mais clareza e chegou o momento por mãos à obra.
26/Março/2020[1] https://intersindicalaragon .
[2] Como se recorda, a Dívida Pública triplicou em sete ano. Passou de 37% do PIB em 2007 para 100% em 2014. A rubrica mais importante pela qual se verificou este incremento espectacular foi a transferência aos grandes bancos de dezenas de milhares de milhões de dinheiro público que, como é sabido, perante a passividade absoluta do governo, nega-se a devolver.
Precisamente neste lapso de crise social agudíssima, em 2011, o PSOE e o PP reformaram o artigo 135 da Constituição, para juntamente com o Tratado de Estabilidade da UE considerar seu pagamento como prioridade absoluta frente a qualquer outra necessidade. Até à data esta consideração continua a ser a mesma.
[3] https://byzness.elperiodico .
[4] https://www.elsaltodiario.com/
[5] https://www.elplural.com/
[6]  https://cadenaser.com/ser/
[7]  https://www.europapress.es/
[8]  https://www.elconfidencial .
[9]  https://www.rtve.es/noticias/
[10]  https://www.lavanguardia.com/
[11]  https://elmundoencifras.es/

[*] Médica, dirigente da Red Roja.