Aprenda a aldrabar com os médicos pela verdade

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/11/2020)

Daniel Oliveira

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Já aqui escrevi sobre esse grupo que usa a megalómana mas reveladora denominação de “Médicos pela Verdade”. De como, sem serem especialistas da área, se entretêm a lançar suspeitas sobre o que diz quem realmente investiga o coravírus ou trabalha de forma mais direta com a pandemia e, com o grau de segurança possível, vai dando ao Estado a informação para que tome decisões. Como enganam milhares de pessoas nas redes sociais, lançando a confusão e a dúvida fora dos lugares onde se faz o debate científico e vão convencendo os incautos que o contraditório científico se faz em posts no Facebook. Mas, acima de tudo, de como estes médicos, psicólogos, dentistas e enfermeiros têm o atrevimento de, apesar de meterem a foice em seara alheia, se atribuírem a propriedade da “verdade”, insinuando que os especialistas da área andam a enganar os cidadãos.

A Ordem dos Médicos, com a lentidão que é comum quando não estão em causa as lutas políticas e corporativas do seu bastonário, lá avançou com um processo disciplinar para quem, tendo deveres deontológicos, espalha desinformação nas redes. Desinformação que, no meio de uma pandemia, pode custar vidas. Mas era inevitável que a coisa acabasse por ir mais longe. E foi: uma das fundadoras dos Médicos pela Verdade foi apanhada, no Telegram, a “prescrever” uma forma de ludibriar os testes, para darem negativo.

Maria Margarida Gomes de Oliveira é mesmo médica (tem dado a cara pelo movimento) e, perante uma mãe cujo filho de 22 anos foi chamado para fazer o teste de rastreio do SARS-CoV-2 porque tinha contactado com uma pessoa infetada, disse-lhe para ele recusar fazer o teste PCR e, “se a pressão pidesca” fosse muita e o jovem não conseguisse escapar, usar a tal receita para que o teste desse negativo. Apesar de se defender com sigilo profissional, não há defesa possível. A “informação” foi dada com várias pessoas a ler. Se aquilo era uma consulta, a violação do dever de sigilo foi da própria. A verdade é que a “receita” foi replicada por muitas pessoas. E até foi repetida a uma grávida, que pretendia garantir que medidas de segurança não fossem tomadas, afastando-a do recém nascido – o que, na realidade, não está previsto. Alguns especialistas ouvidos dizem que a “receita” da anestesiologista é pouco eficaz. Como recordou Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, este comportamento pode ser punido pelo artigo 283.º do Código Penal.

Da parte criminal tratarão os tribunais, se isto lá chegar. Da parte disciplinar, tratará a Ordem, que também já abriu um processo a esta médica.

Mas seria interessante que o bastonário, no intervalo do seu trabalho sindical e político, condenasse de forma clara e audível estes irresponsáveis, contribuindo para os desautorizar aos olhos dos cidadãos. Há médicos a usar o título que lhes é garantido pela Ordem para ensinar pessoas a falsear testes no meio de uma pandemia. Bem sei que é politicamente mais promissor fazer guerrilha contra quem, mal ou bem, a tenta combater.

Até já há promessas de carreira autárquica. Mas, apesar de tudo, a Ordem dos Médicos ainda tem a função de regular a atividade médica. E isso faz-se por via disciplinar e tomando posições públicas. A forma descarada como estes médicos espalham desinformação mostra que não temem o poder disciplinar da Ordem ou o julgamento dos seus pares. Lá saberão porquê.