Acumulação cleptocrática

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 23/01/2020)

Alexandre Abreu

A investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação em torno dos Luanda Leaks, em que o Expresso tem tido um papel importante, é um trabalho notável de jornalismo de investigação. No entanto, é bem certo, tal como foi já referido por outros nestes últimos dias, que a origem cleptocrática da fortuna de Isabel dos Santos e de outros membros da elite angolana não era segredo para ninguém.

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A despeito das narrativas micromitológicas sobre fortunas construídas a vender ovos, é bem conhecida a longa história de espoliação dos recursos angolanos por boa parte da elite deste país, com destaque para a família dos Santos, através do controlo sobre processos de privatização, concessões de licenças, venda de recursos a preços privilegiados e outras formas de participação nos dois lados de negócios em que a parte pública – o povo angolano – ficou sistematicamente a perder.

Tal como há muito é bem conhecido o prolongamento em Portugal desta constelação de interesses, o papel da economia portuguesa como plataforma para exportação e branqueamento de capitais e os aliados e cúmplices desta estratégia em Portugal – alguns dos quais são agora os primeiros a procurar abandonar o navio perante a iminência do naufrágio.

Esta longa e triste história é obviamente uma parte importante da explicação para o contraste entre o nível de rendimento de Angola e os seus deploráveis indicadores de desenvolvimento humano e social. Sendo certo que têm sido feitos progressos importantes nos últimos anos em vários destes aspectos (como a mortalidade infantil, que tem caído significativamente), é também certo que a situação da população angolana é muito pior do que o nível de rendimento deste país permitiria, assim os recursos disponíveis não tivessem ao longo dos anos sido tão concentrados em tão poucas mãos.

Não sendo caso único, não deixa de ser impressionante a desfaçatez com que tudo isto – este esbulho sem freio dos recursos de milhões por uma pequena elite, os contrastes entre miséria e ostentação – foi acompanhado por uma retórica de transformação revolucionária e justiça social. E um exemplo especialmente irónico desta hipocrisia foi a forma como a elite, a partir de certa altura, recorreu a uma categoria de análise marxista – a acumulação primitiva – para justificar o seu próprio enriquecimento a partir do controlo do Estado.

Por analogia com o processo histórico de constituição de uma estrutura de classes capitalista na Europa que emergiu do feudalismo, o enriquecimento sem limites dos privilegiados na órbita do poder na Angola contemporânea foi apresentado como historicamente progressista na medida em que corresponderia à consolidação de uma burguesia local capaz de pôr em marcha dinâmicas de acumulação de capital e de desenvolvimento das forças produtivas.

Foi o caso do discurso do Estado da Nação proferido por José Eduardo dos Santos em 2013, em que este se referiu à “acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África” e à necessidade de “empresários e investidores privados nacionais fortes e eficientes para impulsionar a criação de mais riqueza e emprego” para, já então, alertar contra campanhas anti-corrupção que procurassem obstaculizar esses processos.

Em rigor, a acumulação primitiva a que Marx se referia não consistia tanto no enriquecimento original da burguesia quanto numa outra coisa: a generalização de relações de produção capitalistas na sequência da expropriação dos trabalhadores dos meios de produção (as terras dos camponeses, em particular) de modo a criar uma compulsão para a venda da força de trabalho. Para além de que a análise desse processo histórico por parte de Marx não se destinava a ser lida como um encómio ou um manual de instruções.

Sobretudo, o processo de acumulação cleptocrática que tem tido lugar nas últimas décadas em Angola, em articulação com Portugal, tem tido muito mais de rentismo do que de produtividade, muito mais de extraversão do que de dinamismo local, muito mais de parasitismo do que de progresso. Pelo que mais importante do que o materialismo histórico de José Eduardo dos Santos são as perspetivas de que, em Angola como em Portugal, as elites mais parasitárias possam ser sujeitas ao escrutínio da justiça e à democratização da economia. A vinda à luz do dia do modo como operam e a erosão de alguns dos seus pés de barro não deixam de ser passos importantes nesse sentido.


Vieira de Almeida, PLMJ e Uría: quem são os advogados por trás dos negócios de Isabel dos Santos?

(Miguel Prado, Elisabete Miranda, Isabel Vicente, in Expresso DIÁRIO, 22/01/2020)

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Durante anos, Angola não só jorrou petróleo como também revelou ser uma atrativa mina de honorários para advogados e consultores portugueses. Empresas como a PwC, Boston Consulting Group (BCG), McKinsey e a Vieira de Almeida conseguiram amealhar somas importantes vendendo os seus serviços a Angola e vêm referenciados nos Luanda Leaks. Mas aquilo que até domingo era um ativo, que cumpria todas as regras de compliance, no início desta semana tornou-se “um ativo tóxico”, segundo confidenciou ao Expresso fonte de uma sociedade de advogados. Jaime Esteves, na PwC, já caiu mas há outras figuras que trabalharam muito proximamente com o universo empresarial de Isabel dos Santos.

Uma delas é a Vieira de Almeida, sociedade de advogados que nos Luanda Leaks aparece como beneficiária de uma comissão pela reestruturação da Sonangol, operação feita através de uma empresa em Malta que pertence a Isabel dos Santos.

O envolvimento da VdA com Isabel dos Santos começa em 2015. Nesse ano a Vieira de Almeida foi buscar seis sócios e outros 18 advogados à concorrente Miranda. Entre eles estava um dos sócios de topo da Miranda, Rui Amendoeira (que entretanto saiu da Vieira de Almeida), mas também Susana Brandão e Paulo Trindade Costa, que já trabalhavam há vários anos com empresas de Isabel dos Santos.

Susana Almeida Brandão, que se licenciou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, fez a maior parte da sua carreira na Miranda Correia Amendoeira & Associados, onde esteve entre 2002 e 2015, e terá sido aí que ganhou proximidade a Isabel dos Santos e ao mercado angolano.

Ao que o Expresso apurou, quando ainda estava na Miranda, Susana Brandão trabalhou em dossiês relacionados com a cimenteira Nova Cimangola, mas também em negócios imobiliários e noutros interesses que Isabel dos Santos tinha, e que eram geridos através da empresa portuguesa Fidequity, liderada por Mário Leite da Silva.

Depois de se mudar da Miranda para a Vieira de Almeida, onde é hoje associada da área de fusões e aquisições, Susana Brandão levou consigo a confiança de Isabel dos Santos e de Mário Leite da Silva para continuar a trabalhar diversos dossiês. Um deles foi a Sonangol: em 2017 quando Isabel dos Santos era presidente da petrolífera estatal angolana, Susana Brandão foi nomeada para a administração da Sonangol.

No site da Sonangol pode ainda hoje em dia ler-se a seu respeito: “Uma sólida experiência em Angola reforçada pelo conhecimento do sector têm sido pilares para o seu destaque no processo de reestruturação da Sonangol”. Contudo, no currículo da advogada no site da VDA não há qualquer referência à passagem pela administração da Sonangol.

A Vieira de Almeida garantiu ao Expresso que “a dra. Susana Almeida Brandão nunca tomou posse”. A advogada regressou pouco depois à Vieira de Almeida.

Recorde-se que esta sociedade de advogados é uma das entidades contratadas pelo Governo angolano para prestar assessoria relativamente à Sonangol. Na verdade em 2016 Luanda contratou uma empresa de Malta, denominada Wise Intelligence Solutions, e esta (que era detida por Isabel dos Santos) subcontratou a Boston Consulting Group (que em Luanda era liderada pelo português Alexandre Gorito), a McKinsey e a PwC, bem como os serviços jurídicos da Vieira de Almeida, que segundo o Luanda Leaks, recebeu pelos menos 490 mil dólares.

Questionada pelo ICIJ, a Vieira de Almeida respondeu que nunca assessorou Isabel dos Santos individualmente, mas garantiu que “leva muito a sério a admissão de clientes e os procedimentos de gestão de riscos”.

Além de Susana Brandão, também o advogado Paulo Trindade Costa estava estreitamente ligado aos interesses de Isabel dos Santos. Depois de mais de uma década na Miranda, entre 2004 e 2015, Paulo Trindade Costa foi com Susana Brandão para a Vieira de Almeida, onde permanece até hoje, como sócio da área de fusões e aquisições. Embora acompanhe diversos outros clientes, seguiu de perto vários negócios do universo Isabel dos Santos, primeiro na Miranda, depois na Vieira de Almeida.

O Expresso questionou entretanto a Vieira de Almeida sobre se a “Sonangol foi ou é cliente”. A firma respondeu que “foi cliente”.

Um outro negócio de Angola que impulsionou a faturação da Vieira de Almeida foi a Urbinveste, empresa imobiliária de Isabel dos Santos. A sociedade de advogados confirma ter prestado assessoria jurídica à Urbinveste, mas reitera não trabalhar diretamente com a empresária angolana. “A VdA nunca teve como cliente a Eng. Isabel dos Santos. A VdA tem clientes em cuja estrutura acionista, e como é do conhecimento público, figuram empresas desse universo às quais prestou exclusivamente serviços técnico-jurídicos de caráter empresarial”, aponta a sociedade.

O Expresso também quis saber se a Vieira de Almeida receia um impacto reputacional da sua associação a negócios de Isabel dos Santos. “Não. A VdA trabalhou na reestruturação do setor dos petróleos em Angola, tendo prestado serviços estritamente jurídicos e circunscritos a esse âmbito, conforme faturas emitidas com descritivo claro e transparente de todas as diligências realizadas a esse respeito”, aponta a sociedade de advogados.

PLMJ E URÍA, OUTROS ASSESSORES PRÓXIMOS

Durante vários anos diversos contratos das empresas de Isabel dos Santos foram sendo preparados entre Susana Brandão e Paulo Trindade Costa (até 2015 na Miranda, a partir daí na Vieira de Almeida). Mas não em exclusivo. Até 2016 muita assessoria jurídica de Isabel dos Santos passava pela PLMJ, dada a confiança que a empresária depositava (e ainda deposita) em Jorge Brito Pereira.

A ligação a Brito Pereira é antiga e surgiu por intermédio de Mário Leite da Silva. O gestor de Isabel dos Santos trabalha com Brito Pereira desde o tempo em que era administrador financeiro do grupo Amorim. Mas um desentendimento entre Américo Amorim e Mário Leite da Silva levaria este último a trabalhar diretamente com Isabel dos Santos, empresária que acompanhou o “rei da cortiça” no seu investimento na Galp, através da Amorim Energia. A partir daí Jorge Brito Pereira conquistou a confiança da filha do ex-presidente angolano e tornou a PLMJ uma das sociedades de eleição de Isabel dos Santos.

Quando Jorge Brito Pereira sai para a Uría, em 2016, leva consigo o ‘fillet mignon’ dos negócios de Isabel dos Santos (NOS e Efacec, por exemplo), mas ainda deixou algumas sobras, e dentro da PLMJ outros nomes foram conhecendo cada vez melhor o universo empresarial e patrimonial da angolana. É o caso da advogada Inês Pinto da Costa (que integra a firma desde 2009, sendo sócia das áreas de fusões e aquisições e private equity). E ainda de João Magalhães Ramalho, especialista na área fiscal que trabalhou na PLMJ de 1999 a 2019, tendo em julho do ano passado transitado para outra sociedade, a Telles. Uma outra advogada da PLMJ, Serena Neto, também chegou a acompanhar de perto os negócios de Isabel dos Santos, tendo feito parte da Fidequity entre 2011 e 2012. Depois, na PLMJ, deixou de acompanhar os negócios de Isabel dos Santos.

Dos três advogados, hoje em dia, a que terá mantido maior proximidade é Inês Pinto da Costa, que a PLMJ reteve no “terramoto” de 2019, quando vários sócios abandonaram a firma que durante anos foi liderada por José Miguel Júdice (e vários deles foram trabalhar para a concorrente Vieira de Almeida).

O Expresso questionou a PLMJ sobre se ainda trabalha com Isabel dos Santos e sobre se tem procedimentos para evitar práticas de branqueamento e evasão fiscal.

A PLMJ respondeu de forma genérica. “O respeito pelas melhores práticas internacionais e pelas disposições legais no domínio da prevenção do branqueamento de capitais e na admissão e acompanhamento de clientes são – e continuarão a ser – uma prioridade da PLMJ. Em resultado das regras de segredo profissional a que estamos sujeitos não nos é permitido comentar factos relativos a serviços jurídicos por nós prestados na qualidade de advogados”, aponta a sociedade.

É, aliás, uma resposta em linha com a que a Vieira de Almeida apresentou quando questionada sobre os seus procedimentos para evitar práticas de branqueamento: “A VdA aplica a todos os seus clientes regras de compliance a que está obrigada e apenas trabalha com entidades que passam nos crivos das exigências legais vigentes, tal como foi o caso”.

O Expresso questionou ainda a Uría Menendez sobre se teme algum impacto reputacional decorrente da associação do seu sócio Jorge Brito Pereira a Isabel dos Santos, mas a sociedade de advogados escusou-se às questões. “A Uría Menéndez – Proença de Carvalho abstém-se de fazer mais comentários, designadamente por respeito ao dever de sigilo profissional”, respondeu apenas a empresa.

ADVOGADOS NÃO COMUNICAM OPERAÇÕES SUSPEITAS DE BRANQUEAMENTO. ORDEM NÃO FISCALIZA

As sociedades de advogados estão entre as entidades que estão obrigadas a implementar um conjunto de regras para prevenir que sejam usadas em esquemas de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo (à semelhança da banca e do imobiliário). A fiscalização da implementação das regras está a cargo da Ordem dos Advogados. Contudo, ao longo dos anos, os advogados têm-se recusado a fazer comunicação de operações suspeitas, por considerarem que ela viola as suas obrigações de sigilo.

Contactado pelo Expresso, Luís Menezes Leitão, o novo bastonário da Ordem dos Advogados confirma que a ordem não fez nenhuma auditoria a sociedades de advogados para verificar se estas estão a prevenir de facto o branqueamento de capitais, mas disse já realizou ações de formação sobre o tema, à luz da nova diretiva transposta em 2017.

Luís Menezes Leitão diz não pronunciar-se sobre casos concretos, e garante seguir com atenção o envolvimento dos advogados em negócios que possam eventualmente estar associados a esquemas de branqueamento de capitais.

“Relativamente ao controlo do branqueamento de capitais, é uma função que nos compete. No anterior mandato [da Ordem dos Advogados] foi feito um regulamento, presente à assembleia geral em junho do ano passado, mas o Conselho Geral decidiu retirá-lo. Vamos retomar esse trabalho”, indica Menezes Leitão. “Precisamos de ter esse controlo [do branqueamento de capitais]. Estamos bastante atentos a esse assunto”, acrescenta.

O bastonário realça que nos termos da lei “tudo o que seja suspeita de branqueamento de capitais tem de ser comunicado pelos advogados ao bastonário”.

As ondas de impacto do Luanda Leaks estão a fazer-se sentir para lá do universo empresarial de Isabel dos Santos. Esta terça-feira o consultor português Jaime Esteves anunciou a saída do departamento de fiscalidade da PwC, consultora e auditora que decidiu deixar de trabalhar com Isabel dos Santos. Mas as consequências podem não ficar por aí.

O Banco de Portugal quer explicações do EuroBic sobre as transações que saíram da conta da Sonangol , as quais fez saber, podem vir a ter consequências tanto ao nível prudencial como contraordenacional. A pressão para afastar Isabel dos Santos do banco onde controla 42,5%, subiu de tom, podendo esta ser inibida dos direitos de voto. Isto apesar do supervisor estar do novo a fazer uma inspeção ao banco desde outubro.

Na Nos, onde Jorge Brito Pereira e Mário Leite da Silva são administradores não executivos, também estão sob avaliação do Comité de Ética da Empresa.

Nos últimos dias tem-se assistido também a uma demarcação de poderes políticos e económicos da empresária e, enquanto no meio dos negócios se admite que as sociedades de advogados poderão a partir de agora ser mais cuidadosas e recusar trabalhar com Isabel dos Santos em dossiês que envolvam a criação de empresas, ainda que possam aceitar representá-la em eventuais processos criminais, também se desabafa sobre a “hipocrisia” do processo, uma vez que no passado quer o poder político, quer o poder económico, receberam de braços abertos os capitais angolanos, bem como os chineses, sem grande interesse em escrutinar a origem dos mesmos, como ouviu o Expresso.


O dominó angolano ainda mal começou a cair

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 21/01/2020)

O dominó começou a cair e nunca foi difícil adivinhar que viria o tempo. Durante quase quarenta anos à frente de Angola, o presidente José Eduardo dos Santos constituiu uma oligarquia que se alimentou fartamente dos recursos nacionais, mas o inevitável esgotamento do consulado, as contradições entre cleptocratas ou a pressão popular para a democracia acabaram por se impor. João Lourenço teve de afirmar o seu poder protegendo-se do clã Dos Santos, a desesperante falta de recursos em tempos de petróleo barato obrigou ao esforço de recuperação de capitais, o povo exigia medidas contra o saque e, assim, o dominó desabou. Mas, ao desfazer-se, desencadeou uma curiosa valsa de justificações em Portugal.

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Com aquele gosto florentino que tem aprimorado, o ministro dos Negócios Estrangeiros, falando de si próprio na terceira pessoa, na boa tradição literária de um treinador de futebol, explicou que “talvez agora se perceba melhor a insistência do ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal – desde pelo menos dezembro de 2015 – de manter o melhor relacionamento possível com as autoridades angolanas; de manter o nível de relacionamento entre os dois Estados no mais alto dos patamares”. Maravilha da diplomacia, este “melhor relacionamento possível” foi estabelecido desde finais de 2015 mas não antes, ou seja, desde a nomeação do próprio, com a “autoridade angolana” do “mais alto dos patamares”, ou seja o próprio José Eduardo dos Santos, eventualmente na presunção futurista de que aquele seria substituído por alguém que o pusesse em causa. Nisto, o governante só peca por um menosprezo injusto pelos que estiveram nas Necessidades antes dele e que, aliás, fizeram exatamente o mesmo, o “melhor relacionamento possível” com esse “mais alto dos patamares”.

Esse “relacionamento” resume-se a uma guarda pretoriana que foi recrutada em Portugal para proteger os assaltantes de Angola. Os banqueiros (no BCP, no BPI), os empresários (Amorim primeiro que todos, depois a Sonae, José de Mello e tantos outros) e os governos multiplicaram-se em vénias para atrair esses capitais e as suas alianças. O Banco de Portugal fechou os olhos às investidas de personalidades “politicamente expostas” e, salvo ter evitado na 25ª hora que Isabel dos Santos viesse a ser administradora do BIC, não opôs qualquer reserva a nenhuma das suas outras funções nem sequer à compra em saldo deste último banco.

Assim, protegida por alguma imprensa que a apresentava como a rainha do glamour, por uma câmara municipal que oferecia ao marido a medalha de ouro da cidade a troco de uma inútil promessa de um museu, pelo deslumbramento dos políticos e pela ganância dos capitais, Isabel dos Santos instalou uma rede de conivências em Portugal, com que pretendeu abrir caminhos para o reconhecimento internacional.

É cruel lembrar, mas não deixa de ser verdade, que estas aplicações do dinheiro extorquido de Angola eram barradas noutros países europeus. Nada que demovesse um ex-presidente do PSD, ex-ministros de várias cores, um ex-governador do Banco de Portugal, um ex-deputado do PS e tantos outros de trabalharem para esta rede de interesses da constelação Dos Santos e, em particular, de Isabel. Ser pago em dinheiro angolano passou a ser uma das etiquetas de muita da elite portuguesa.

E tudo se sabia. Pepetela, que conhecia cada uma dos personagens desta clique, retratou-as em vários romances em que apresenta a sua desilusão e raiva contra a corrupção e o seu regime. Rafael Marques denunciou durante anos muitos destes esquemas, com dados detalhados. O livro que Jorge Costa, João Teixeira Lopes e eu publicámos em 2014, “Os Donos Angolanos de Portugal”, resumindo muito do que nos anos anteriores já tínhamos investigado e escrito sobre a cleptocracia luandense e os seus aliados portugueses, chegou a milhares de pessoas em Angola e por cá. Incluímos nomes e gráficos com as ligações das diversas empresas. Contamos a história e revelamos de onde vinha o dinheiro. O general Kangamba alegou o direito de resposta e respondeu-me na imprensa portuguesa, não era de menos o que dele contamos no livro, as investigações judiciais internacionais sobre redes de prostituição ou automóveis com malas de dinheiro a circular pela Europa.

O “Jornal de Angola” dedicou-nos editoriais e insultos. Luaty Beirão e os seus camaradas puseram todas as denúncias na rua. Como Rafael Marques, foram presos, enquanto no Parlamento português, confrontados com votos pela liberdade de imprensa e de opinião contra a repressão pelo regime de Luanda, o PS, o PSD, o CDS e o PCP alinhavam na recusa sobranceira, com José Eduardo dos Santos ninguém se mete.

Nos congressos do MPLA desfilava uma procissão de políticos portugueses a tecer loas ao cônsul. Mesmo sendo membro da Internacional Socialista e parceiro do PS, o partido do poder procurava aliados em quase todos os quadrantes. Em 2016, de 17 a 20 de agosto, em mais um congresso de consagração de Dos Santos (e no período em que o nosso atual ministro já cuidava do “melhor relacionamento possível” com o “mais alto dos patamares”), o PS fez-se representar pela secretária-geral adjunta, Ana Catarina Mendes, e pelo presidente, Carlos César, que enfaticamente brindou os anfitriões com um “o MPLA e o PS têm trilhado um caminho comum, um continuado diálogo político e uma colaboração concreta em áreas de interesse mútuo, incluindo no âmbito da nossa família política no seio da Internacional Socialista. Estou convencido que esse caminho de proximidade será cada vez mais produtivo e a nossa presença neste congresso e a nossa saudação neste congresso é justamente para aqui testemunhar a garantia desse caminho novo de proximidade, de afetividade, de colaboração e de luta comum”.

Diz o DN, que assistiu ao congresso, que César acrescentou que “o líder do MPLA e Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, é uma figura referencial da história angolana e da emancipação africana”. Helder Amaral, em nome do CDS (Paulo Portas estava também, mas como “convidado pessoal”, e não falou), explicou que o seu partido estaria mais próximo do MPLA, com “muitos mais pontos em comum”, desejando “fortalecer essa relação”. Dois vice-presidentes do PSD, Teresa Leal Coelho e Marco António Costa, abrilhantaram a cerimónia, bem como Rui Fernandes, membro da comissão política do PCP.

Pois é. O que ninguém pode agora dizer é que não se sabia de nada. Mais se vai descobrir, mas surpresa é que não será. Foi roubo e não foi o mordomo.