O Chega tinha de vir e aqui ficará até o sabermos explicar

(Daniel Oliveira, in Expresso, 13/03/2024)

Daniel Oliveira

Durante anos prevaleceu a tese do excecionalismo português, negado pelos indicadores de aceitação do discurso populista. Faltava o protagonista, que foi buscar os votos à abstenção. Não há explicações e soluções simples para problemas complexos. Mas amarrar os democratas que têm de fazer oposição e apresentarem-se como alternativa, dando mais razões para as pessoas acreditarem que o Chega é a única forma de “mudar”, seria um enorme disparate.


Durante vários anos prevaleceu a tese, com a qual nunca concordei, da especificidade portuguesa e de como ela nos deixava e deixaria imunes aos encantos da extrema-direita. Esta espécie de nova versão do luso-tropicalismo, que nos tornaria únicos no contexto internacional, ignorou que os indicadores de aceitação do discurso populista e da aceitação de valores propagados pelos partidos de extrema-direita sempre estiveram cá, o que faltava era um protagonista. Num artigo prescientemente intitulado “Populismo em Portugal: um gigante adormecido”, Pedro Magalhães já o dizia há cinco anos: “Para que seja consequente, o populismo depende não apenas de uma procura social, que em Portugal claramente existe, mas também de uma oferta política e de oportunidades. Por outras palavras, precisa de ser “ativado” politicamente”.

André Ventura, crescido e formado dentro do PSD, aceitou dar o passo que Manuel Monteiro ou Paulo Portas nunca ousaram. Estes últimos dois líderes do CDS também piscaram o olho ao discurso contra os supostos subsídio-dependentes, que vivem “à nossa custa”, mas nunca o associaram diretamente aos ciganos. Foi sempre um discurso ambíguo, mais sugerido e insinuado do que abertamente proclamado, permitindo a Paulo Portas um populismo light, mas mantendo-se dentro do sistema. Ventura rasga esse compromisso, achando que volta a entrar no sistema pela força bruta dos votos de quem exige que se digam “umas verdades”.

É esse passo que o faz, pela primeira vez, ir buscar o exército que vinha engrossando a abstenção nas últimas décadas. Ainda é cedo para perceber a dinâmica de transferência de votos entre partidos, mas parece evidente que Ventura vai uma boa parte do seu milhão de votos à abstenção. A similitude entre o aumento de número votos do Chega com o crescimento do número de votantes é um sinal, mesmo que ténue, mas ainda maior é o dos concelhos onde mais cresceu a participação eleitoral terem uma significativa correlação com os locais onde o Chega teve votações mais elevadas. Ouvi esta história em terceira mão. Para explicar o seu voto, um homem disse: “Dantes abstinha-me para protestar. Agora, votei no Chega”. Os números batem incrivelmente certo.

O primeiro-ministro em funções não foi a votos, o que acontece apenas pela segunda vez nos últimos quarenta anos, depois de ter sido associado pela Procuradora-Geral da República a um processo de corrupção. Com um mandato interrompido a meio, as eleições acontecem num contexto de uma crise inflacionária que varreu a maioria dos governos nos últimos dois anos, com um secretário-geral do PS sem tempo para se afirmar e os juros a agravar a crise do poder de compra. Com isto tudo a seu favor, seria de esperar um resultado histórico do PSD. E foi, na verdade. Foi o pior resultado de sempre dos partidos que constituem a AD.

O resultado da AD é, contando com os votos na Madeira, inferior ao de Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos, dois anos antes. Onde a AD, com todas as siglas com que se candidatou, conseguiu agora 29,49% dos votos, PSD e CDS mereceram a confiança de 30,89% dos eleitores em 2022. Se é certo que conquistou qualquer coisa como 200 mil votos a mais, apenas ganhou mais três deputados. A AD venceu apesar de Montenegro e da sua campanha. O único dado relevante sobre a vontade de mudança que levou à perda de quase meio milhão de votos no PS foi mesmo a votação em André Ventura e no Chega.

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O Chega muda o quadro político nacional, obrigando a geometrias parlamentares muito mais complexas, tornando a governabilidade uma quimera quase impossível (tratarei disso na sexta-feira). Há dois anos disse que o Chega, ao contrário da IL, tinha condições para crescer e se afirmar como uma força política determinante. Porque corresponde ao clima político que se vive um pouco por toda a Europa e nos EUA e porque o seu discurso encontra um público recetivo.

Não vou, neste texto, tentar analisar as razões para os 18% do Chega. Aprendi, do muito que vou lendo e ouvindo sobre o tema, que só há duas coisas seguras nas explicações que cabem num texto curto: são sempre incompletas e correspondem quase sempre àquilo que nós queremos que o “protesto” queira dizer. Acredito que há uma confluência de razões transversais às sociedades ocidentais, ou o fenómeno não seria transversal, atingindo países radicalmente diferentes nas suas condições económicas, sociais e políticas. Há aumentos de desigualdade económicas; a falência do capitalismo globalizado como projeto de progresso partilhado; novas formas de mediação incompatíveis com a democracia que conhecemos; novas identidades sociais que valorizam as mesmas coisas que a extrema-direita sempre valorizou (desculpem ir contra a corrente, mas há muito mais do que 19% de racistas em Portugal e em qualquer país do mundo); consciência da inconsequência do voto em governos que decidem cada vez menos… Uma coisa é certa: cada um terá a explicação que lhe der mais jeito para a sua própria agenda, responsabilizando sempre o seu opositor por este fenómeno.

As redes sociais não são um pormenor. Elas polarizam a vida política a níveis impensáveis há poucas décadas. Com algoritmos que privilegiam os conteúdos mais virulentos, criando bolhas onde cada pessoa só vê conteúdos que confirmam a sua perceção da sociedade, a extrema-direita encontrou terreno fértil para propagar as “suas verdades”. A utilização hábil destas ferramentas, conjugada com uma juventude que abandonou o jornalismo como fonte de informação, explica que o Chega seja o segundo partido mais votado na faixa etária entre os 18 e os 34 anos.

O Chega, ao contrário de uma IL concentrada nos grandes centros urbanos, é um partido nacional e mais ou menos homogéneo. Ventura consegue eleger deputados em todos os círculos eleitorais, menos em Bragança, e é bem possível que consiga furar a representação nos círculos da emigração, atendendo ao exponencial aumento do número de votantes. Com um resultado nacional de 18%, o pior desempenho que teve foi no Porto, com 15,3%, e na maioria dos distritos obteve sempre resultados muito próximos da média nacional. A exceção, claro, são os 27% no Algarve, onde foi a força política mais votada, ou os 24,5% de Portalegre, onde só ficou atrás do PS.

Não podemos olhar para o Chega como um partido cujo discurso encontra eco apenas no país desprotegido do interior, como foi dito durante algum tempo, quando vemos o resultado que tem nas grandes cidades. Os seus temas são nacionais, mesmo quando olhamos para a excelente reportagem que Valentina Marcelino foi fazer na freguesia com a maior votação no Chega, em Albufeira, no Algarve. É a falta de habitação, de perspetivas de futuro, ou de salários dignos e compatíveis com custo de vida, culpando e responsabilizando os os imigrantes pela compressão salarial. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, há presidentes de junta de freguesia a constatar o elevado número de brasileiros que pede informações sobre o recenseamento eleitoral para poder votar em André Ventura.

Pouco importa a amálgama reivindicativa, com temas muitas vezes contraditórios e alguns irresolúveis. O Chega transmite a ideia de protesto contra o regime. O seu tema principal na campanha, e nos últimos anos, tem sido o combate à corrupção. “Vamos limpar Portugal”, diziam os cartazes, e ainda assim o pior resultado do Chega no distrito de Lisboa foi precisamente em Oeiras, com 11,6%. Para quem não passou os últimos anos numa cave, Oeiras é o concelho onde o atual presidente da autarquia cumpriu pena de prisão depois de ter sido condenado a dois anos de prisão por fraude fiscal e branqueamento de capitais.

A presença de imigrantes no bairro onde se vive também não parece determinar particularmente o voto. Nas freguesias com maior número de imigrantes na cidade de Lisboa, a votação no Chega ou ficou bem abaixo da média da cidade (9% em Arroios, 10% em Campo de Ourique), ou a par da média (12% em Santa Maria Maior). Das freguesias onde convivem os explorados da Glovo com os estrangeiros que compram as casas mais caras do país, até Campo de Ourique dos reformados franceses e jovens nómadas digitais, realidades sociais muito distintas, mas com resultados bastante uniformes. Mesmo em Odemira, epicentro da exploração de migrantes e concelho onde estes já representam mais de um terço da população, a votação não é superior à registada no distrito. O discurso repetido, e as perceções que o mesmo cria, parecem contar tanto ou mais que a realidade conhecida.

Há imensas razões para o crescimento do Chega em Portugal e de toda a extrema-direita em toda a Europa. Há até um eleitorado que sempre ali esteve e agora tem quem diga o que quer ouvir. Se eu soubesse a resposta para este fenómeno quase global quereria dizer que acreditava que ele resulta de um problema único e fácil de identificar. Uma das coisas que dizemos aos demagogos é que não há explicações e soluções simples para problemas complexos. Seria bom não fazermos o mesmo que eles para os explicar.

Mas sei o que não é solução: amarrar a um novo governo os democratas que têm o dever político de fazer oposição e de se apresentarem como alternativa, dando mais razões para que as pessoas acreditarem que o Chega é a única forma de “mudar”. Isso sim, seria um enorme disparate.


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4 pensamentos sobre “O Chega tinha de vir e aqui ficará até o sabermos explicar

  1. Uma pessoa que vive na Alemanha tambem se espantava pelos motivos que muita gente invocava para votar no Chega. Um artista dizia “vou a Portugal e vejo lá aqueles indianos, aquela gente de turbante. Vou votar Chega porque aquilo tem que acabar”. A criatura ainda argumentou “estas na Alemanha há 20 anos, vais lá três vezes por ano, achas mesmo que vale a pena votar na extrema direita e lixar a vida a quem lá está, imigrante ou não?”.
    “só lá vou três semanas e tenho de ver aquela canalha. É por isso que vou votar Chega”.
    Foi motivo invocado por muitos.
    Os motivos pelos quais se votou Chega foram muitos e uma coisa já sabemos. Ninguém o fez por bem. Foi sempre a pensar lixar a vida a, alguém. A não ser um pobre velho ou outro que acreditou mesmo ser possível passar a sua reforma miserável de 300 para 1000 euros.
    Mas aquela malta que nunca votou porque “são todos iguais” não interessando nada haver quem nunca tenha estado no Governo, votou basicamente por querer virar do avesso a vida de alguém.
    E complicado acreditar que um em cada cinco portugueses, em algumas regiões mais de um em cada quatro está tão ressabiado com a vida que quer dar cabo da vida de alguém.
    Mas é com isto que vamos ter de viver.
    E, claro, a obsessão do PS com o excedente orçamental que o levou a fazer tudo para deitar borda fora os parceiros a esquerda e durante os últimos dois anos aproveitar a inflação para encher os cofres em vez de tomar medidas para a mitigar levou também ao caldo de cultura que o fez perder meio milhão de votos e dar ainda quase 30 por cento da votação a quem nos virou a vida do avesso indo além da troika.
    O PS foi hábil em chamar a si todo O mérito pelas medidas que nos anos 2015 a 2020 aliviaram o garrote imposto às nossas vidas nos anos anteriores. Quando na verdade muitas delas saíram de pro postas, alguns dirão imposições dos partidos a esquerda.
    Assim consegui repetir a maioria absoluta esquecendo se também de que estando livre dos parceiros que pediam o impossível, como disseram muitos comentadores da nossa praça, também sofreria pressões várias até dos poderes europeus para ter as contas certas.
    E o PS prosseguiu a sua obsessão com as contas certas enquanto o povo enfrentava inflacao e a subida de juros assassina imposta por aquela senhora de cabelo lambido que um dia disse ter pens era das crianças do Níger e não das crianças gregas que desmaiavam de fome na escola.
    Talvez pensassem em usar os próximos dois anos para aliviar o garrote esquecendo se de dois factores cruciais. Não tinham um presidente da mesma cor política mas sim um que, mais polido e com aquela conversa mole dos afectos, estava disposto a tudo para fazer a direita voltar ao poder rapidamente e em força.
    Depois também nunca lhes deve ter passado pela cabeça que o lawfare, a guerra judicial aplicada no Brasil poderia com a mesma eficácia ser aplicada deste lado do mar.
    O irónico disto tudo é que o senhor que assegurou que a nossa vida não estava melhor mas o país estava melhor vai poder mas o país estava melhor vai poder fazer alguns bonitos graças ao acumulado pelo PS. Como a mais que justa recuperação do tempo de serviço dos desgraçados dos professores que ainda teem muitos deles de levar com a barbaridade de ser colocados no Norte se, são do Sul e no Sul se são do Norte.
    E assim se repete o velho ditado, o dinheiro do usuário vai dar a mão do estravagante.
    Fica para os homens e mulheres que estudam estas coisas tentar explicar a razão pela qual políticos batidos caíram numa armadilha destas.
    No meio disto tudo quem se lixa é o mexilhão. Ou seja, nós. Tenhamos ou não votado no Chega.

  2. A estratégia do voto útil resultou no reforço da extrema direita! E de quem é a responsabilidade?
    Foi a arrogância sobretudo do PS e de parte da intelectualidade burguesa, dita de esquerda, cujas análises se fazem mais a partir das suas barrigas do que do cérebro, que empurraram os portugueses para posições que, à primeira leitura, se apresentam como irracionais.

  3. Os acionistas da “empresa” Chega, funcionando com os conhecimentos de marketing, na venda de qualquer produto, mas desta vez, vendem ideias que os votantes compram, mas que legitimam a chegada ao poder e assim, os acionistas que são quem manda, repito, saberão continuar, a manipular a comunicação social que dominam, e em proveito próprio, retirarão os dividendos que gananciosa mente, sempre ambicionam, sempre à custa da exploração da mão de obra do trabalho.

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