Ministério Público: como chegámos aqui?

(Maria José Fernandes, Procuradora Geral Adjunta, in Público, 20/11/2023)

(Afinal ainda há gente com bom senso na corporação que é o Ministério Público. E não digam agora que a senhora não sabe do que fala. Sabe, e depreende-se que não pôde dizer tudo o que gostaria. 20 valores para esta senhora Procuradora. E, não precisando de valores, à Estátua só lhe competia publicá-la, e não falhámos.

Estátua de Sal, 20/11/2023)


Por estes dias, tenho sido abordada para me pronunciar em televisões sobre as adjacências processuais, jurídicas e políticas do caso que vem preenchendo os espaços da comunicação social e que deixou os cidadãos perplexos. Não aceito, pois não posso falar com total liberdade. Já os sindicalistas desfrutam desse privilégio e temos-lhes escutado afirmações controversas, cínicas no dizer de alguém.

Como foi possível acontecer tudo aquilo a que assistimos há duas semanas? Como se chegou até à tomada de decisões que provocaram uma monumental crise política e cujas consequências vão ainda no adro?

Uma coisa é certa: ver um certo político populista de extrema-direita monopolizar a defesa da atuação do MP, dá muito que pensar! Outros haverá que resguardaram o regozijo da crise por entre dentes e aguardam a sua oportunidade num silêncio de marketing.

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O meu colega António Cluny escreveu um interessante artigo de opinião, onde destaca a atuação individual de cada procurador no despacho de inquéritos criminais, pelo que considera errado que o jornalismo se refira coletivamente ao MP como “autor” das decisões agora controvertidas. Conclui que a sua experiência na Eurojust lhe permitiu confirmar a necessidade de uma coordenação forte e ágil, por procuradores com legitimidade e experiência, sem o que não haverá sucesso na luta contra a criminalidade atual.

Originalmente, o MP foi concebido como um corpo hierarquizado piramidal, para representar o Estado nos tribunais, tendo no topo o procurador-geral da República, que dirigia, coordenava, determinava e dava instruções, plasmadas em diretivas. De permeio, entre o procurador-geral da República e os procuradores da base, a organização hierárquica é regionalista, coincidindo com os quatro tribunais da Relação. Desde há décadas, paulatina e persistentemente, o sindicato (SMMP) lançou e insistiu numa reivindicação de maior autonomia individual dos procuradores nas decisões que tomassem, em todas as áreas de intervenção, mas e sobretudo na investigação criminal. O que se pretendia era que cada procurador conduzisse os processos-crime sem interferências, ao seu grado, exigência que tem subjacente e camuflada uma desconfiança relativamente às hierarquias intermédias e superiores, a meu ver injusta e infundada. Porque há-de ser mais “autónomo” e idóneo um procurador da base do que um de topo? Desde logo, como em todas as profissões, há a excelência, a mediania e o sofrível, pelo que se impunha a supervisão do que fosse mais relevante.

Noutros estados europeus avançados, vigoram modelos interventivos diferentes. A gama é variada.

Na Itália dos anos 1980/90, como os leitores recordarão, a atuação autónoma dos procuradores era de tal ordem que começou a criar graves problemas de desestabilização e até de oportunismo político, com os resultados que se conhecem. Foi necessário introduzir normas de equilíbrio, ali por via de regulamentação interna.

Não há muito tempo, no processo do caso Tancos, quem investigava (DCIAP) pretendia inquirir como testemunhas o Presidente da República e o primeiro-ministro. O então diretor daquele departamento opôs-se e impediu tal diligência, por entendê-la inútil, tendo fundamentado a sua decisão num despacho próprio que entendeu dever ficar arquivado à parte. Gerou-se grande sururu dentro da corporação; sindicalistas clamavam que esse despacho tinha de ficar visível no próprio inquérito, outros que não, que podia ficar guardado no que chamamos “dossier de acompanhamento”, como acabou por acontecer. No fim, o desfecho do processo demonstrou que o hierarca tinha razão quanto à inutilidade de inquirir as duas altas figuras do Estado.

Acontece haver quem entenda a investigação criminal como uma extensão de poder sobre outros poderes, sobretudo os de natureza política. Daí que sejamos surpreendidos, de vez em quando, com buscas cuja utilidade e necessidade é nenhuma, pese embora quem as promove sempre se escude no argumento de opacidade: “Eu é que sei o que está no processo, eu é que sei se são necessárias ou não!” E a sorte é que até há pouco tempo o DCIAP dispunha de um tribunal de instrução privativo, com um juiz de instrução igualmente privativo por ser o único durante largos anos. O perfil decisório desse JIC era conhecido, não há constância de contrariedade ao MP. Maus hábitos.

Já noutra frente, a frase que não saía da boca de sindicalistas e de certas responsáveis máximas do MP era o “​​reforçar da autonomia interna”​ dos procuradores, empenho bem-sucedido, pois a autonomia não só foi reforçada, como até calafetada!

As personagens aludidas granjearam assim a simpatia e até quase camaradagem (em congressos) de certo jornalismo que segue as peripécias da corrupção atribuída a políticos e que tem a militância de deixar Portugal bem colocado nos rankings internacionais da percepção desse flagelo.

Desta sorte, procuradores que não hesitem em meios de recolha de prova intrusivos, humilhantes, necessários ou não, são o top da competência! Outros magistrados de elevado escalão que seguem esta linha argumentativa e a verbalizando no discurso público também têm o elogio garantido. Pelo contrário, quem se opõe à estridência processual é rotulado protetor dos corruptos! Neste enquadramento e sendo a nossa dimensão quase paroquial, poucos têm pulso para impor o que deve ser a sensatez, a escorreita interpretação jurídica dos factos, o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos suspeitos, a investigação célere.

Em todos os departamentos de investigação e ação penal, mas mormente no DCIAP, deveria privilegiar-se o pensamento crítico, a discussão interdisciplinar, nomeadamente com colegas de outras jurisdições tocantes ou conexas; temo que se tornem cabines herméticas, onde pontuam algumas prima donnas intocáveis e inamovíveis e onde a “falta de meios”, de peritos disto e daquilo é sempre a velha razão para os passos de tartaruga a que se movem as investigações.

Permitiu-se a criação de uma bruma de auto-suficiência totalmente nefasta e contrária ao que deve ser a qualidade e a excelência desta profissão; os desfechos de vários casos já julgados permitem extrair que há aspectos do trabalho dos procuradores de investigação a carecer revisão e aprimoramento pelo exercício da autocrítica.

Uma investigação bem feita e fundada em provas irrefutáveis conduz a uma acusação de boa síntese factual e melhor incriminação nos tipos de ilícito aplicáveis ao caso. Um julgamento com esta base acusatória corre rápido e permite a quem julga uma decisão célere e bem fundamentada.

Não resisto e exemplificar, por curiosidade, o que deve ser a ponderação de conceitos no crime de recebimento indevido de vantagem, que tem como elemento objetivo nuclear o recebimento de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida.

O conceito de “vantagem patrimonial” não oferece qualquer dúvida interpretativa: é um acréscimo de património. Já a vantagem “não patrimonial”​ é de mais difícil recorte, podendo ser uma vantagem social. Assim, a oferta de um almoço num restaurante caro será uma vantagem? Em que se traduz essa vantagem? No prazer da degustação? E se o agente não apreciou a refeição, quid iuris?

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9 pensamentos sobre “Ministério Público: como chegámos aqui?

  1. Estamos a testemunhar a maior crise das instituções,como saúde,educação justiça,etc,etc.
    Estamos a chegar ao fim da linha?
    A resposta será dada nesta década de 2020-2030.

    Caminhamos para a guerra e violência que emerge de uma sociedade no fim das suas possibilidades, das suas esperanças e dos seus projectos (como a atual) exprime-se no terror que cada um sente perante a obrigação de mudar os seus hábitos, todos os seus hábitos.
    Esta angústia perante uma mudança tão profunda resulta do facto de cada ser humano ser reto nos seus valores e no seu funcionamento. Esta retidão provém da nossa socialização (antes da adolescência), que definiu de uma vez por todas o que será normal durante toda a nossa vida. Quando a mudança começar a impor-se em termos de ideias, esta retidão opõe uma resistência violenta.
    Toda a gente recusa uma mudança profunda, sobretudo se ela parece ir “para menos”. A violência vem do desejo de continuar “em frente” e da impossibilidade de o fazer.
    Esta resistência violenta aplica-se até ao ponto em que a linha reta e, portanto, a normalidade de cada um de nós, se rompe…

    Este mecanismo de resistência à mudança é aplicado até que a situação no mundo atual se torna tão insuportável que a mudança é aceite como uma saída.

    Por vezes pergunto-me se não será este o objetivo dos políticos.

    O maior inimigo de Portugal é as próprias instituições.

    Como aviso,muito sangue vai correr,isto não vai correr nada bem,neste mundo atormentado e desequilibrado que nos está a ser imposto, em particular pela propaganda que destila o medo para se impor.
    Talvez seja o objetivo. Há 150 anos, Karl Marx estabeleceu o princípio de que existem 2 formas de capitalismo: o capitalismo com dominação formal e o capitalismo com dominação real.
    O capitalismo formal precisa de ordem, o que significa religião, um Estado forte, um exército e corpos intermediários poderosos.
    O segundo precisa do caos. É isto!

    O desafio da mudança que estamos a viver:

    Portugal e o ocidente está a perder a sua posição em todo o mundo devido à sua visão hegemónica. A manivela está a voltar.
    É evidente que temos de acordar para a situação actual: o tempo está a passar e estamos cada vez mais perto do fim da nossa civilização,
    e enquanto a Europa Ocidental está em declínio, as nossas elites e os movimentos progressistas apontam o dedo à Europa de Leste pela sua falta de abertura cultural e outras, mas estão a observar-nos e a aprender com os nossos erros geopolíticos.

    A violência a que estamos a assistir hoje é a violência do Estado.
    Temos de encontrar um equilíbrio entre os nossos impulsos contraditórios e muitas vezes violentos. Estar de pé deveria ensinar-nos a viver em equilíbrio, um equilíbrio que só pode ser encontrado no movimento.
    Mas quando a loucura começa a apoderar-se de nós, precisamos de equilíbrio , que tentam chamar-nos de volta à razão e impedir-nos de desencadear banhos de sangue.
    Resta saber que extremos, incluindo , tomarão as rédeas. Pessoalmente, penso que precisamos de mais democracia real. Mas uma democracia empenhada, responsável e plural. Do tipo que faz crescer as pessoas, precisamente para evitar esta escuridão. Não uma que as reduza através da violência. Caso contrário, teremos pior .

    A Europa abandonou suas raízes cristãs e sua cultura, sem notar que nenhum vácuo permanece sem ser preferido, desde o início da Civilização! A decadência cultural, política e econômica.

    Na minha opinião, a perda de confiança do povo nos seus dirigentes é a maior ameaça ao colapso, primeiro de Portugal e depois do Ocidente. É também de salientar que a Europa foi construída de forma unipolar, enquanto que agora estamos num mundo multipolar onde as novas potências vão procurar consolidar a sua posição através de alianças com países que outrora foram parceiros dos países ocidentais, nomeadamente europeus.

    Com cada país que compõe a Europa com interesses cada vez mais divergentes, perante a abertura do mundo devido à ascensão de novas potências que constituem novos blocos de influência e de cooperação, a queda do Ocidente é inevitável.

    A “teologização” dos conflitos é outro fator que enfraquece a civilização moderna, aumentando deliberadamente as desigualdades.
    A transferência de tecnologia também desempenhou o seu papel, há muito cegada pelas “alavancas do crescimento bolsista”.

    Os anos de paz e prosperidade estão provavelmente a chegar ao fim.

    A União Europeia está a ser posta em causa, o nosso país está a descer nos rankings internacionais em todos os domínios e existe um enorme risco de um desvio populacional e, por conseguinte, de um desvio civilizacional (que se caracteriza pela cultura, religião, etnia e identidade). Mas nunca dissemos a nossa última palavra, algumas portas nunca se fecham definitivamente.

    A guerra acaba por conduzir à guerra, tal como a falta de confiança.

    Mesmo que alguns Portugueses compreendam que a situação é crítica e mantenham esse sentido de urgência, não vejo o que se possa fazer. A opinião pública está completamente atolada porque não sabe nada sobre tudo isto e os políticos estão completamente fora de si. Estamos a ver a nossa própria casa a cair na ruína sem podermos fazer nada. É extremamente doloroso. Faz-me lembrar os escritos de alguns autores romanos antigos, como Vegetius, que viam a sua civilização a definhar.

    Portugal por sua própria culpa, e, por conseguinte vai ficar mais pobre. Não há nada que se possa fazer para o evitar. Como todas as crises económicas são acompanhadas de agitação social e de perturbação da ordem estabelecida, a sua verdadeira missão é manter na linha as castas dominantes deste país.

    Portanto, estamos efectivamente a chegar ao fim de um ciclo e os nossos filhos e netos enfrentarão de facto uma situação para a qual não os preparamos.

  2. Ainda há gente inteligente e não carneira em Portugal.
    Que maravilha de artigo. Pouco diz. Mas diz o fundamental para quem ainda tem neurónios!

  3. Afinal ainda há gente lúcida e capaz no Ministério Público! Não seria melhor dar a conhecer, mais amplamente, as suas ideias e posições, ao invés da fixação no erro, nas más práticas e na mediocridade, mediatizando até à exaustão?

  4. «A oferta de um almoço num restaurante caro será uma vantagem? No prazer da degustação? E se o agente não apreciou a refeição, quid iuris?»
    Tal como se o agente tiver recebido durante as férias uma oferta de hospedagem num Hotel de 5 Estrelas nas Caraíbas, mas tendo no final delas acabado desgostoso com a hospedagem oferecida, por não servirem um bom whisky como digestivo após as refeições, só rum! 🙂

  5. Imagino o que diriam de um qualquer empresário a quem encontrasse, no gabinete da secretária uns tantos envelopes com dinheiro vivo.
    A ninguém lhe ocorreria dizer que o problema era da secretária.
    Ou ‘saco azul’ é só no BES?

    Isso não altera o facto de os procuradores deverem saber que ao Ministro da Economia todos os tratam por António Costa!
    É inaceitável que assim o não tivessem entendido; só um burro não entende!

  6. «meios de recolha de prova intrusivos, humilhantes»

    Mas , naturalmente!
    Bastava telefonar a perguntar qual o dinheiro que havia em caixa e em livros…

  7. Voltando à matéria, deixem lá ver se entendi bem a Sr.ª Procuradora:
    Se um funcionário público, a troco de um qualquer favor feito a terceiro, como lhe dar prioridade na passagem duma certidão, meter uma nota de 20 euros no bolso e com ela, depois, ir almoçar, é um corrupto, tendo obtendo uma vantagem material traduzida nos 20 euros recebidos.
    Mas se for um chefe do mesmo funcionário e pela mesma facilitação, em vez de receber a nota de 20 euros, aceitar um almoço de 200 euros, a coisa já não será bem assim, nomeadamente porque, apesar de caro, não ter gostado lá muito da degustação, por a comida estar um pouco salgada?!…🙄

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