O suicídio da Europa

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 06/04/2023)

Miguel Sousa Tavares

A poucos dias de uma visita à China determinante para as relações entre o gigante asiático e a UE, onde chegou acompanhada pelo Presidente francês, Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, resolveu fazer, mais do que um discurso, uma intervenção de fundo que estabeleceu desde logo não apenas a agenda da visita como também todo o futuro das relações sino-europeias. Muito saudado nos meios da autodenominada “ordem liberal internacional”, o discurso foi marcante a vários níveis: pelo momento, pela forma e pelo conteúdo. O momento e a forma — falando antes e publicamente o que é habitual reservar para ser falado durante e em privado — assinalaram uma posição de força, pessoal e institucional, que, aliada a um conteúdo de claro confronto e desafio, logo suscitou uma ríspida resposta da parte chinesa e a certeza de que dificilmente esta visita terá bons resultados, agora ou no futuro: os chineses costumam demorar uns 50 anos a esquecer ofensas públicas.

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Mas, antes de analisar o conteúdo do que disse Von der Leyen, vale a pena começar por constatar que, ao que parece, finalmente a Europa tem uma política externa comum, tão longamente desejada, e alguém que responde por ela. Não é, ao contrário do que se poderia prever, o triste comissário europeu para a Política Externa, Josep Borrell, o qual, no próprio dia em que Von der Leyen e Macron partiam para a China, repetia ao lado do secretário de Estado americano os chavões dos Estados Unidos sobre a guerra na Ucrânia, a Rússia e a China, ou que há semanas apresentava como grande feito da política externa comum a compra em conjunto de munições de guerra para a Ucrânia. Também não é uma política comum resultante de discussão ou debate no Parlamento Europeu ou, menos ainda, nos Parlamentos nacionais — sem que isso tenha merecido um só suspiro dos outrora tão ciosos defensores das soberanias nacionais face a Bruxelas. Mas, desde que começou a guerra na Ucrânia e o Ocidente (ou NATO, se assim preferirem chamar-lhe) tocou a reunir em defesa da tal ordem liberal internacional, considerações desse tipo deixaram de ter lugar, ao ponto de um pobre país como o nosso, onde uma simples lancha patrulheira fica parada no mar por falta de combustível, não se coibir de enviar três dos seus tanques, dos melhores que há nos catálogos (e os únicos em ordem de marcha), para irem combater os russos na Ucrânia. Sim, agora, pelo menos, sabemos quem é que fala em nome da Europa em matéria de política externa: é Ursula von der Leyen. E isso tem, desde logo, duas vantagens: os americanos já sabem a quem telefonar quando quiserem falar com a Europa e é francamente melhor ser ela a representar-nos e a definir a nossa política externa do que esse patético serventuário dos americanos que é o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, que se tinha autodesignado para cumprir a função até aqui.

ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Bom, mas então o que disse Ursula von der Leyen sobre a China? Algumas coisas interessantes, que, não sendo propriamente novidade, tiveram a vantagem de clarificar ainda mais o pensamento europeu dominante. Explicitamente ou subentendendo, começou por dizer que a Europa não queria cortar os laços com a China, mas queria mudar as regras do jogo, pois havia um factor novo: a China está em campo à procura de uma nova ordem global, não aceitando mais jogar de acordo com a ordem liberal internacional na qual se revêem os valores do Ocidente. No fundo, a mesma acusação feita à Rússia e a Putin, pessoalmente: não aceitou “ocidentalizar-se”. Sendo que a China é uma ditadura desde 1949 e a Rússia um regime autocrático desde a noite dos tempos, com uma breve interrupção “democrática” em que conheceu o pior do capitalismo exportado pela ordem liberal, cabe perguntar o que há verdadeiramente de novo e de insuportável em relação aos tempos em que outras gerações de líderes europeus, com outro nível e ainda com memórias de guerra — Adenauer, De Gaulle, Willy Brandt, Harold Wilson, Olof Palme, Kennedy —, conseguiram manter a paz com as duas superpotências inimigas, apesar de terem pela frente muito pior do que Putin ou Xi Jinping, como Mao, Estaline, Khrushchev, Brejnev? Porquê esta súbita mentalidade do pensamento único, esta cruzada moderna contra os hereges da ordem liberal, esta necessidade urgente de exportarmos a nossa noção de bem e de valores para o mundo inteiro, e à força se necessário, antes de tudo o resto: o combate às desigualdades, às epidemias e doenças dos pobres, às alterações climáticas, ao desarmamento nuclear? Dizia há dias um porta-voz do Departamento de Estado americano, em resposta a um pedido de Zelensky para que a Rússia não ocupasse a presidência rotativa do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que “não podemos impedi-lo, pois infelizmente a Rússia faz parte do Conselho de Segurança da ONU”. “Infelizmente”? Já chegámos ao ponto de lamentar a existência da ONU e do seu CS, com as regras de funcionamento estabelecidas, justamente para que os conflitos entre adversários ali fossem dirimidos e não no campo de batalha?

No seu discurso de há dias, Ursula von der Leyen veio implicitamente atravessar a Europa num conflito com a China, do ponto de vista comercial, político e até militar, num confronto que foi declarado pelos Estados Unidos e assumido também há meses pelo secretário-geral da NATO como estratégico para a organização. Já não se trata de levar a NATO até ao Afeganistão com a justificação da solidariedade devida a um aliado atacado na sua própria casa. Agora trata-se de ir até ao outro lado do mundo, como braço armado da política externa americana e para um eventual confronto entre duas potências nucleares, numa guerra no Pacífico, onde a Europa nada tem que ver. Mas, em troca, nem sequer é certo que uma futura Administração americana (com Trump de regresso, por exemplo) esteja disposta a continuar a atravessar-se pela defesa europeia, na Europa.

Sabemos apenas que nos continuam a exigir que a Europa pague o grosso da factura da guerra na Ucrânia, em inflação, em despesas militares e também em possível nova crise bancária importada de lá, para garantir que, como disse Lloyd Austin, o secretário da Defesa dos EUA, a Rússia saia da Ucrânia “de tal forma enfraquecida” que deixe de constituir qualquer ameaça futura. Para, quando os Estados Unidos acharem que está na hora de enfrentar a China, não correrem o risco de verem a Rússia a apoiá-la. A menos que tudo isto vá pelos ares.

Entretanto, é essencial continuar com a guerra na Ucrânia, até à derrota final da Rússia ou até… à eternidade. Que pode ser em 2024, ou mesmo 25, ou até 26, como alguns defensores da ordem liberal internacional e da guerra até ao último ucraniano defendem. E por isso, alinhada com o discurso de Washington, Von der Leyen também não se esqueceu de recordar aos chineses que o seu plano de paz em 12 pontos para a guerra na Ucrânia não podia ser levado a sério. Primeiro porque não previa a retirada russa de todos os territórios ucranianos; segundo porque só a Ucrânia poderia definir as condições para uma paz justa. Ou seja, a primeira condição, independentemente da sua justiça, significaria não uma negociação mas uma rendição incondicional à partida; e a segunda implicaria que só haveria paz nas condições decretadas por uma das partes. Resumindo: o plano não serve precisamente porque quer negociar a paz. E agora saúdam em festa a entrada da Finlândia na NATO, o 31º membro e 15º desde que se extinguiu o seu inimigo, o Pacto de Varsóvia. A ordem liberal está feliz porque ganhou assim mais 1300 quilómetros de fronteira com a Rússia. E para que quererão eles mais 1300 quilómetros de fronteira com a Rússia?

Pobre Europa, desgraçada Ucrânia!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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10 pensamentos sobre “O suicídio da Europa

  1. PREPARA-TE MIGUEL,pq vais ser “queimado nas TVs dos Jornaleiros de serviço”ao jantar dos “Ucranioportugueses”,que não tendo comida nos pratos ,são empanturrados há 15 meses ininterruptos com uma ladainha que já fede ,pq não admite contraditário….salvé pensamento unico…..Cuída-te pois pq a fogueuira será instalada na Praça……

  2. Desculpa Miguel ,pq tb por aqui a censura já impera ……o meu comentário sumiu pelo esgoto ….começa a cheirar mal…..

  3. 3ª Guerra Mundial?? O plano da Nato em 2 meses!

    Em junho exercícios da Nato nos céus da Polonia, Alemanha e republica Checa.

    Guerra mundial? O cenário actual consiste no estado profundo dos EUA, que vai intensificar as suas entregas aos seus principais vassalos que são a Polónia, a Estónia, a Letónia, a Roménia, a Moldávia e a Ucrânia. A nova fronteira otanesa que constitui a Finlândia é igualmente susceptível de enfraquecer as forças Russas.

    Na minha opinião, esta ofensiva ucraniana é uma farsa para empurrar Putin à culpa. Quando se prepara uma grande ofensiva, não se diz publicamente, para impedir o inimigo de se preparar para a ofensiva adversária e beneficiar do efeito de surpresa. Por outro lado, com os meios de telecomunicações de que a Rússia dispõe, o menor movimento de tropas de grande envergadura será detectado muito antes da ofensiva real.

    Parece-me que a principal característica dos dirigentes em Washington ( não é a sua ideologia retorcida, bizarra e neoconservadora, que é deliberadamente irrealista e caprichosa, divorciada da realidade ) é a sua incompetência colossal e extraordinária. Já houve um governo pior e mais ineficaz em Washington? Eles vão de uma catástrofe para outra e nunca aprendem nada sobre isso. Eles apenas continuam independentemente do próximo e maior fiasco. O Iraque, a Síria, a Líbia, o Afeganistão e agora a Ucrânia, a maior catástrofe de todas! Como puderam convencer-se de que a Rússia iria desmoronar-se por causa das sanções económicas, que seria derrotada pela Ucrânia no campo de batalha e que isso provocaria uma mudança de regime na Rússia e outros absurdos.

    No entanto, penso que a tática do “amigo” Vladimir Vladimirovich é a melhor: ele faz o mínimo possível e deixa os lunáticos otaneses desperdiçar seus armamentos e munições ….ver os receios dos países da U.E. que, desde há alguns meses, estão a ficar sem munições, inclusive para a sua própria defesa (4 dias em França…). Então, para fazer mega manobras militares em menos de dois meses alinhando 220 aviões(120 dos EUA) sem contar os materiais terrestres mais os homens que vão com… Basta olhar para as últimas manobras bem-sucedidas da China Popular em torno de Taiwan, a 7ª Frota dos EUA enviou UM porta-aviões (citado no Yahoo hoje). Na minha opinião, estes anúncios são mais um delírio megalomanês de um tio Adolf no seu bunker do que de um Napoleão I em Austerlitz.
    De qualquer forma, quando vemos a cara do Stoltenberg, percebemos tudo… Por outro lado, não está excluído que esses loucos furiosos utilizem, nos seus delírios niilistas, os meios mais definitivos, e espero que as pessoas do mundo ocidental estejam bem conscientes disso…

    As guerras mundiais que são, na verdade, guerras entre nações do hemisfério norte competindo pelo controle da riqueza do hemisfério sul, não serão mais um elemento possível no novo paradigma multipolar das relações internacionais.

    O facto de a NATO continuar a tomar os seus desejos por realidades e ir cada vez mais no sentido de uma fuga para a frente delirante não constitui, infelizmente, uma surpresa…

    Se, infelizmente, a Rússia tem de ser forçada a infligir-lhe uma dura derrota e uma boa lição de realismo, e apesar disso, porque, a derrota e a destruição desta organização criminosa que é a NATO coincide inteiramente com os nossos interesses nacionais, sem contar com as consequências políticas positivas que isso poderia acarretar para os países europeus, entre os quais Portugal… No ponto em que estamos, o futuro que nos é prometido em todos os casos é um futuro de sofrimentos e privatizações, por isso, mais vale fazer com que seja libertadora…

    Sobre a Crimeia: Deve-se ter em mente que SOMENTE na cabeça dos ocidentais o “problema” da Crimeia e do Donbass é diferente: Os 4 oblasts de LOUHANSK, DONETSK, ZAPOROJIA, KHERSON pediram a sua anexação à Federação da Rússia em 2022: O Parlamento da Rússia _ por tratado _ valida o pedido de anexação: De facto, atacar estes 4 oblasts equivale a atacar a Rússia , por conseguinte, aplicam-se a doutrina militar e de dissuasão nuclear.
    Mesmo que a Ucrânia (ou os seus financiadores, ou a NATO) quisessem recuperar esses territórios, teriam de pôr de joelhos a Rússia, o que é IMPOSSÍVEL sem desencadear o apocalipse nuclear.

    A agitação mediática em torno da próxima ofensiva tem dois objetivos: levantar o moral das tropas ucranianas que estão sendo estripadas e relançar o apoio das opiniões ocidentais que está diminuindo cada vez mais. É uma necessidade política que, ao mesmo tempo, é uma heresia militar, mas não têm escolha, trata-se de manter a esperança de que esta ofensiva tenha êxito, pois não haverá outra falta de material bélico e humano. O problema é que, desta vez, os russos estão prontos, duas vezes mais e armados até os dentes com uma produção militar em rápido crescimento (Por exemplo, os serviços ocidentais, não os meios de comunicação, estimam o stock de mísseis hipersónicos Kinjal em 200 contra menos de 50 há um ano e a transformação de bombas clássicas em planadores guiados a 100/dia contra 0 há um ano). Não sabemos se esta ofensiva será bem sucedida, mas uma coisa é certa, vai ser um massacre.

    A coisa mais importante é provavelmente esta: aA Rússia está literalmente atrás da China. Uma Rússia forte é uma garantia contra a ingerência ocidental na Ásia Central e também contra a desintegração da Ásia Central no caos. Com uma Rússia forte e amigável, as fronteiras terrestres da China são imensamente mais seguras. Isso elimina uma enorme preocupação geopolítica e abre o acesso a muitos outros países, todos com grande potencial econômico.

    Enfrentar o Ocidente sozinho é inquietante, mas estar ao lado de outra grande potência (que a Rússia é, segundo qualquer critério razoável) dá confiança; tanto mais que os políticos ocidentais não podem abrir a boca sem ameaçar “o isolamento”. Para a diplomacia internacional, isso tem várias vantagens. Isso aumenta o valor da amizade da China.

  4. Defende a utilidade do Conselho de Segurança da ONU, mas aparentemente os membros de um tal conselho nada têm a ver com a Carta das Nações Unidas que supostamente deviam servir; forma velada e cobarde de, na melhor hipótese, insinuar que a Rússia quis reagir a uma qualquer agressão da Ucrânia ou de que terceiros a viriam a agredir através da Ucrãnia.

    ‘a China está em campo à procura de uma nova ordem global’ que, não se sabe o que seja, nem a China parece a caminho do explicitar mas que, pelo que diz o articulista, se opõe ao ‘combate às desigualdades, às epidemias e doenças dos pobres, às alterações climáticas, ao desarmamento nuclear?’. Um disparate para nada dizer sobre o que há a esperar da China e transformar os valores ocidentais em cruzada por uns tantos rótulos de um corretês sempre mistificador.

    Como todo o cretino militante, sem nada dizer em abono dos adversários, logo vai enxovalhando e diminuindo quem se lhes opõe

    A única conclusão é a de que: se a paz e a ordem não dependem de regras internacionais nem do respeito por valores, só a força e o receio da força prevalecerão.

    Para a Europa que combate as desigualdades com a mais apaparicadora assistência social a nível mundial, que se desarmou em larga medida, e para quem energia alternativa significa independência, só tem que escolher ter força ou ser escrava da força.

    • Este último parágrafo só mostra o facho ambulante que por aqui vai bolçando a sua verborreia reaccionária sem qualquer pudor e que depois se arma em virgem ofendida quando o vêm criticar.

      Sim, senhor.

      Olha, diz lá porque é que a Ucrânia violou continuamente desde 16 de Fevereiro de 2022 até 24 de Fevereiro de 2022 (início da operação militar especial) o cessar fogo imposto pela resolução 2202 do Conselho de Segurança ONU, cessar fogo esse monitorizado pela OSCE, estando tudo isto demonstrado empiricamente e sem qualquer equívoco em relatórios diários PÚBLICOS e ao dispor de quem quiser olhar para eles, mostrando milhares de bombardeamentos diários pelo Exército Ucraniano às Repúblicas do Donbass.

      Mas a Rússia é que é mazinha e a Rússia é que invadiu…

      Tu bem podes tentar e querer, mas os factos não mentem nunca.

      Quanto à China, é um disparate, sim senhor.

      Por isso é que a China é líder em todas as áreas das tecnologias modernas, por isso é que, de acordo com o Banco Mundial, tirou 800 milhões de pessoas da pobreza extrema em 40 anos de Socialismo, é um dos líderes mundiais em energias renováveis e concede empréstimos a países africanos sem que estes tenham de pagar de volta seja o que for.

      Daí que agora o Banco Mundial venha insistir que é preciso que o Ocidente considere uma restruturação das dívidas dos países africanos – porque sabem que estão a competir com alguém que não tem a mesma maneira de proceder que o Ocidente da rapina, das guerras ilegais, das medidas coercitivas unilaterais, dos golpes de estado e dos programas de ajustamento estrutural seguidos da privatização de áreas nucleares das economias.

      Tu não enganas ninguém…

      • ’16 de Fevereiro de 2022 até 24 de Fevereiro de 2022′
        Em 8 dias a Rússia decidiu, preparou e iniciou uma invasão!
        Fantástica dinâmica!

        Ao disparate acrescente-se-lhe os milagres que a ditadura comunista faz com a economia capitalista e ponha-se o Ocidente a pagar as dívidas dos governos corruptos e tudo resultará num mundo melhor

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