O Ocidente visto do mundo

(Boaventura Sousa Santos, in Diário de Notícias, 05/03/2023)

Entre 2011 e 2016 realizei um projeto de investigação financiado pelo Conselho Europeu de Investigação. Intitulava-se ALICE – Espelhos Estranhos, Lições imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo. Nesse projeto, tentei mostrar que a Europa, depois de cinco séculos a procurar ensinar o mundo, se confrontava com um mundo que não tomava em grande conta as lições da Europa e que, em face disso, em vez de propor isolacionismo progressivo, entendia que a Europa devia disponibilizar-se a aprender com o mundo e usar essa aprendizagem para resolver alguns dos seus problemas. A guerra da Ucrânia veio mostrar que as propostas da minha investigação de pouco serviram aos políticos europeus, uma experiência que não é nova para os cientistas sociais.

Em outubro de 2022, oito meses depois da invasão da Ucrânia, um conhecido instituto da Universidade de Cambridge harmonizou e fundiu 30 inquéritos globais sobre atitudes em relação aos EUA, à China e à Rússia. Os inquéritos cobriam 137 países do mundo e 97% da população mundial, tendo sido realizados em 75 países depois da invasão da Ucrânia. O resultado principal deste estudo é que o mundo está dividido entre uma pequena minoria da população do mundo, que tem uma opinião positiva sobre os EUA e uma atitude negativa sobre a China e a Rússia (1,2 mil milhões de pessoas), e uma grande maioria em que o inverso ocorre (6,3 mil milhões). Embora o estudo se refira aos EUA, não é arriscado especular que, sobretudo depois da guerra na Ucrânia, a Europa seja associada aos EUA ainda mais intensamente que antes. A essa associação podemos chamar o Ocidente. Isto significa que, se tomarmos o mundo como unidade de análise, o Ocidente está mais isolado do que nunca, e isso explica que a grande maioria dos países do mundo se tenha recusado a aplicar sanções à Rússia decretadas pelos EUA e UE. É importante conhecer as razões deste facto. Vejamos algumas delas.

1. O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, S. Jaishankar, afirmou recentemente numa entrevista que “a Europa tem de deixar de pensar que os problemas da Europa são os problemas do mundo e começar a pensar que os problemas do mundo não são os problemas da Europa“. O mundo do sul global enfrenta uma série de desafios a que o Ocidente não tem dado qualquer prioridade para além da exuberância retórica, sejam eles as consequências da pandemia, os juros da dívida externa, os impactos da crise climática, a pobreza, a escassez de alimentos, a seca e os altos preços da energia. Durante a pandemia, os países do sul global insistiram em vão que as grandes empresas de produção de vacinas do norte global abrissem mão dos direitos de patente de modo a permitir a ampla e barata vacinação das suas populações. Não admira que os embaixadores da Europa e dos EUA não tenham agora qualquer credibilidade ou autoridade para exigir a estes países que apliquem sanções à Rússia. Tanto mais que, no auge da crise pandémica, a ajuda que receberam veio sobretudo da Rússia e da China.

“Não é arriscado especular que, sobretudo depois da guerra na Ucrânia, a Europa seja associada aos EUA ainda mais intensamente que antes. A essa associação podemos chamar o Ocidente. Isto significa que, se tomarmos o mundo como unidade de análise, o Ocidente está mais isolado do que nunca…”
© Facultada pela Câmara Municipal de Zaporíjia / EPA

2. A mesma falta de credibilidade e autoridade ocorre quando os países do sul global são intimados a mostrar respeito pela “ordem internacional baseada em regras”. Durante décadas (senão séculos) o Ocidente impôs unilateralmente as suas regras, arrogou-se o privilégio de as declarar universais, ao mesmo tempo que se reservou o direito de as suspender e violar sempre que isso lhe conveio. Eis algumas perguntas que ocorrem a estes países. Quantos países foram invadidos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, da Jugoslávia ao Iraque, da Líbia à Síria? Por que razão vivem enterrados em prisões ou em exílios todos os que ousam pôr a nu o abismo entre os princípios e as práticas, como ilustram os casos de Julian Assange e de Edward Snowden? Por que é que o ouro da Venezuela continua retido nos bancos do Reino Unido (e não só), tal como as reservas do Afeganistão continuam congeladas enquanto a população afegã morre de fome? Ninguém imagina na Europa o ridículo em que cai o Secretário-Geral da NATO quando é ouvido no sul global a invetivar a Rússia por usar o gaz e petróleo como arma de guerra, quando há tanto tempo muitos países vivem sob a arma de guerra do sistema financeiro global controlado pelos EUA (sanções, embargos, restrições).

Finalmente, em 8 de fevereiro passado, o respeitado jornalista norte-americano Seymour Hersh revelou com informação concludente que foram os EUA quem, de facto, planeou, a partir de dezembro de 2021, a sabotagem dos gasodutos Nord Stream 1 e Nord Stream 2. Se assim foi, estamos perante um crime hediondo que configura um ato de terrorismo de Estado que não só causa um irreparável desastre ambiental como cria um precedente imprevisível para todas as infraestruturas submarinas internacionais. Deveria ser do máximo interesse para os EUA averiguar o que se passou. Infelizmente, sobre este ato terrorista pesa o mais profundo silêncio.

3. A memória dos países do sul global não é tão curta quanto pensam os diplomatas ocidentais. Muitos desses países estiveram sujeitos ao colonialismo europeu, o qual, ao longo do século XX, contou quase sempre com a cumplicidade e apoio dos EUA. A solidariedade para com os movimentos de libertação veio da China e da Rússia (então União Soviética) e esse apoio continuou em muitos casos depois da independência. Quem lhes pede agora solidariedade contra a Rússia e a China foi no passado hostil às suas aspirações, ou esteve ausente.

4. Estamos a entrar numa segunda Guerra Fria, desta vez entre os EUA e a China, e, de facto, o envolvimento dos EUA na guerra da Ucrânia visa, entre outras coisas, enfraquecer o mais importante aliado da China. Os países do sul global recordam-se da primeira Guerra Fria, entre os EUA e a União Soviética, e sabem, por experiência, que, com algumas exceções logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o alinhamento incondicional com um dos campos não os beneficiou; pelo contrário, a Guerra Fria foi, para eles, muitas vezes quente. Por isso, em 1955, 29 países da Ásia e da África (alguns ainda colónias) e a Jugoslávia se reuniram em Bandung e criaram, a partir de 1961, o Movimento dos Não-Alinhados. Não é por coincidência que a chamada para um novo Movimento dos Não-Alinhados percorre hoje todo o sul global e está de facto a emergir sob novas formas.

Sociólogo


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3 pensamentos sobre “O Ocidente visto do mundo

  1. Bem, se a Rússia viu 1 milhão de pessoas a partir, essas pessoas poderiam muito bem regressar, não é fácil refazer a sua vida noutro lugar. Além disso, a Rússia viu cerca de 2 milhões de ucranianos se juntarem a ela após a invasão, estes últimos vindos das regiões separatistas, portanto, por enquanto, a Rússia ganhou mais habitantes do que perdeu.

    Continuo convencido de que a reconfiguração dos equilíbrios mundiais provocados por este conflito na Ucrânia exige que se tenham em conta os novos apetites de novos actores da geopolítica internacional. Esta crise não é apenas uma ameaça para algumas potências. É também uma grande oportunidade para outras. Assim, a consideração destes apetites novos, daria talvez uma leitura diferente dos desafios e dos resultados possíveis a este conflito.
    O mundo nunca mais será como o que conhecemos até agora e acho que ninguém sabe como o mundo será daqui a alguns anos.

    Fortes tendências em geopolítica, diplomacia, economia e comércio mundial estão mudando profundamente e a invasão da Ucrânia pela Rússia é apenas o lado militar dessa mudança. A Rússia nunca teria pensado que 10 ou 20 anos atrás seria capaz de fazer tal acto, apesar da pertinência ou não das razões que apresentou antes dessa invasão.
    Parece indispensável repensar a governação mundial. Mas é ainda demasiado cedo para levantar esta questão e colocá-la sobre a mesa até que as novas relações de força se esclareçam.

    Esta é a nuance. A economia russa está passando por mudanças que lhe são positivas pelo efeito inverso das sanções( como em 2014). E para a NATO, se fosse para perder 3/4 dessas munições e equipamentos e fazer do mundo uma aliança belicista e não ser capaz de alinhar 500 tanques, não valia a pena. Em termos de resistência, a NATO não tem peso em um conflito de alta intensidade, onde seus membros não produzem nem 50.000 projéteis de artilharia por mês.

    1) Os ganhos da Rússia na Ucrânia não são negligenciáveis. A maior parte do Donbass que era o pulmão econômico ucraniano é agora russo (se eu não acho que tomar isso por essa razão foi um objetivo). Isso desfere um golpe terrível na Ucrânia e na sua economia. Dificilmente poderá recuperar e continuará a ser um fardo para o Ocidente. E será pior se Odessa for tomada, cortando todo o acesso ao mar.

    2) Quanto ao sentimento anti-Rússia, há duas coisas: por um lado, já existia sem necessariamente ser justificado ( menos exacerbado do que hoje) e era, sobretudo, habilmente mantido. (leiam o livro muito bom de Guy METTAN – Creating Russophobia).
    E por outro lado, tornou-se tão histérico, que só trouxe à luz a hipocrisia ocidental e a sua moral de geometria variável. O efeito foi estreitar não só os russos entre si, mas também os BRICS, que já não aguentam mais o comportamento ocidental.

    O sentimento anti-russo sempre existiu anteriormente em certos meios, recordar-se-ão que o sentimento anti-ocidental, manipulado, existia também anteriormente no poder russo. A hipocrisia russa vale em grande parte a hipocrisia ocidental. Agora, ambos são exacerbados pela guerra, que surpresa! Também, que os países do Leste da UE, fora do domínio soviético, sejam o ponta de lança deste sentimento anti-soviéticoE que a sua pertença à Nato os tranquilize! E que culpem à Europa Ocidental a sua ingenuidade passada sobre o seu antigo dominador..

    3) Se a intervenção russa permitiu efectivamente que a NATO se reforçasse… Por um lado, os europeus que anunciam isto como algo de positivo enganaram-se fortemente. Isto é positivo, sobretudo para os EUA. E, por outro lado, o corolário é que isso empurrou a China e a Rússia nos braços uma da outra. MAS TAMBÉM uniu os BRICS. É preciso recordar a estalada infligida pela Arábia aos EUA + a aproximação Irão/Arábia/China e o número de BRICS que querem juntar-se à aliança. Se a China abusar dessa situação ou não num futuro mais ou menos próximo… é outra história. Mas a China tem muito mais queixas contra o Ocidente do que contra a Rússia e quando se diz que os EUA não podem liderar uma frente de hostilidades contra a Rússia e a China em mm tempo… isso também permanece verdadeiro para a China. Ela terá o suficiente para lidar com os EUA para se permitir tensões com a Rússia no futuro …

    Penso que, Putin acelerou uma tendência global de “desocidentalização” da geopolítica. Podemos ver isso em Teerão, Riade. Putin está a jogar um jogo de póquer arriscado com esta guerra, mas se a NATO se esgotar antes dele, então terá conseguido.

    Por enquanto, a Rússia está desempenhando o papel de atrito, o que desempenhará a seu favor a longo prazo, e os aliados de Kiev já esgotaram grande parte de sua ajuda e não podem se dar ao luxo de bater em reservas estratégicas por mais tempo. A grande ofensiva desta Primavera/Verão vai ter lugar.

    Há também uma ligeira mudança de tom na mídia americana e os think tanks estão começando a recomendar que se acabe rapidamente. O apoio da Ucrânia está diminuindo conforme observado nos EUA e Biden terá que terminar esta guerra antes de 2024, se ele quer ter uma chance de ganhar as eleições presidenciais. O exército russo não procura recuperar terreno, mas sim destruir as forças de kiev e da NATO e fará manter este movimento de atrito durante muito tempo. Eu acho que tudo vai acontecer nos próximos 6 meses…

    Putin não queria um longo conflito, por isso ele tem lutado contra a economia desde o início. Da mesma forma, no dia seguinte à invasão, ele aceita as negociações com ZELENSKY, sabíamos suas reivindicações em Ancara.

    Foi a europa que interviu e que fizeram fracassar as conversações, como confirmou Naftani Bennet, antigo Primeiro-Ministro israelita. Além disso, no início de julho de 2022, foram lançadas outras negociações com esta vez trocas de territórios, fizeram com que esta discussão fracassasse novamente. 11.000 sanções, estavam prontas há algum tempo, não se sai tanto em tão pouco tempo.
    Hoje, a aritmética é a favor do Kremlin, assim como a relação de forças, a sua economia vai manter-se…

    A propósito do mundo multipolar que parece ser o mantra de muitos, não era o caso já muito antes da guerra, da retirada dos EUA no Iraque, depois na Síria e no final do Afeganistão. A ascensão da China. Essa tendência dos EUA está agora invertida, então eu realmente não vejo como essa guerra pode beneficiar a Rússia. À China, certamente, enfraquecendo a força de negociação do seu primeiro fornecedor de matérias-primas.

    A guerra só custa vidas humanas no lado russo.
    Porque a vertente económica é muito mais benéfica.
    Eles vendem seus recursos naturais caros e conseguiram criar um núcleo financeiro de vários países para desestabilizar seus negócios!

    Esta é a minha visão. É verdade que esta guerra é dispendiosa do ponto de vista militar e económico para a Rússia, mas também permitiu que outros países “não alinhados” na primeira linha da China vissem o que lhe poderia acontecer se entrasse em conflito com Taiwan. Os Brics estão se aproximando mais rápido do que o esperado, com um sistema bancário alternativo, uma gestão diferente de energia, uma forte aproximação com a África etc… Então, é inteligente quem pode dizer qual será o impacto final para a Rússia de todas essas mudanças. Neste momento, a Europa parece-me a grande perdedora de tudo isto.

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