A corrupção dos valores começa na nossa casa

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 18/12/2022)

A eurodeputada grega e vice-presidente do Parlamento Europeu, Eva Kaili, enfrenta acusações de corrupção e lavagem de dinheiro.

Miguel Sousa Tavares publicou no Expresso de 16 de Dezembro, (Ver aqui), um excelente texto sobre a corrupção no Parlamento Europeu, neste caso envolvendo a eurodeputada grega Eva Kaili, a propósito de subornos feitos pelo Qatar. Este meu texto é uma adaptação do texto de Simon Tisdall, do The Guardian, (Ver aqui), que reforça a ideia de estarmos a assistir à corrupção por dentro dos regimes de democraca representativa e de Estado de Direito.

Boas notícias para os autocratas do mundo — a mesquinhez (corrupção e cupidez) da UE é um grande golpe contra a democracia. Artigo de Simon Tisdall (The Guardian)

O texto de Simon Tisdall começa com uma provocação:

O escândalo do Qatargate (que envolve a eurodeputada grega Eva Kaili) mostra como a corrupção interna e o tráfico de influências podem corroer a confiança pública. A democracia é uma planta vulnerável, facilmente negligenciada e enfraquecida por parasitas. Ela enfrentou ataques abertos, às vezes letais, em 2022, de autocratas em lugares tão distantes quanto Estados Unidos, Brasil, China, Rússia, Irão e a Turquia. No entanto, quando a democracia é silenciosamente corrompida e subvertida por dentro — esse é o verdadeiro assassino. O caso da eurodeputada grega está nesta categoria, de inimigo interno, de cancro insidioso. Se provada, a corrupção no Parlamento Europeu constituirá uma enorme traição à confiança pública.

No entanto, aconteça o que acontecer, o escândalo prejudicará a UE, que gosta de dar lições ao mundo sobre valores democráticos, incluindo padrões na vida pública. O escândalo já está a ser sendo utilizado pelos inimigos internos da U E. Basta escutar os da Hungria, da Polónia, ou até do Reino Unido. “Onde está o problema com o estado de direito? Na Polónia ou na UE?” perguntou o deputado Dominik Tarczyński, do partido eurocético PiS. Marine Le Pen, da União Nacional da França, reclamou que, enquanto os eurodeputados questionavam as finanças de seu partido, “o Qatar entregava malas cheias de dinheiro”. O escândalo já está a chegar à atual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que bloqueou as perguntas sobre o papel de sua vice-presidente da comissão, a grega Margaritis Schinas, que representou a UE na cerimónia de abertura do Campeonato do Mundo e publicou tweets elogiando as práticas de exploração do trabalho na construção das infraestruturas do campeonato.

Os funcionários e deputados do Parlamento Europeu são em grande parte autorregulados e enfrentam um escrutínio mínimo. Além do salário, os deputados podem reivindicar € 9.500 por mês em despesas e subsídios sem fornecer recibos. Podem ter outros empregos remunerados e não precisam registar publicamente contactos com agentes de estados estrangeiros. O PE resistiu até agora a impor regras de responsabilidade mais rígidas. Michiel van Hulten, chefe do gabinete da Transparency International na UE, afirmou que as revelações da semana passada podem ser a ponta de um iceberg. “Há uma influência indevida em uma escala que não vimos até agora”. A “ombudsman” (provedora) da UE, Emily O’Reilly, advertiu que salvaguardas anticorrupção ineficazes minavam os esforços da Europa para projetar os seus valores no cenário mundial. O escândalo também pode chamar a atenção para o comportamento de alguns parlamentares britânicos antes do Campeonato do Mundo. Eles afirmam que seguiram as regras parlamentares do Reino Unido ao aceitar um total de £ 251.208 em presentes do Qatar, incluindo hotéis de luxo e voos de classe executiva, enquanto participavam de missões de “apuramento de factos”. Vários defenderam o Qatar em debates subsequentes. Isso pode ser legal, mas como parecem aos olhos da opinião pública?

As instituições da UE e do Reino Unido também não são os únicos alvos das forças internas antidemocráticas. Na Turquia, o presidente Recep Tayyip Erdoğan está a “trabalhar” para abolir a eleição democrática, numa tentativa de manipular as próximas eleições. A inclusão de fanáticos e racistas de extrema-direita no novo governo de Israel parece uma auto-sabotagem da democracia representativa para a substituir por um regime iliberal de ditadura religiosa e militar.

As traições democráticas que emanam de dentro tornam-se mais comuns — e mais visíveis. No Reino Unido a contínua subversão dos direitos civis é efetivamente sufocada pela teoria de Rishi Sunak de “pragmatismo robusto”. A reverência covarde da Grã-Bretanha aos valentões dos diplomatas chineses em Manchester é outra punhalada nas costas.

Passado o campeonato, o Parlamento Europeu pode proibir funcionários do Qatar de entrar em instalações. (O Parlamento português condenou a atribuição da organização do campeonato ao Qatar!)

Os princípios fundadores dos EUA, um modelo para o mundo, estão sendo atacados em casa. A rejeição por Donald Trump e muitos republicanos do resultado da eleição presidencial de 2020 produziu ondas de choque globais. O seu efeito corrosivo ainda é sentido internacionalmente, explorado por atores malignos como a Rússia (que apoiou Trump em primeiro lugar). Trump desceu a um novo nível de perfídia democrática ao qual os imitadores seguem. No entanto, seu sucessor, Joe Biden, dificilmente pode ser considerado perfeito. Ele condenou ao ostracismo o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, pelo assassinato de Jamal Khashoggi e pelos abusos dos direitos humanos do reino. No entanto foi cumprimentá-lo durante uma humilhante viagem a Riad em uma busca inútil por petróleo barato.

A mensagem de Biden foi e é: os princípios democráticos são negociáveis; tudo tem seu preço. A confiança dos eleitores na integridade na vida pública e a governação através da democracia representativa são sub-repticiamente negociadas em jogos cínicos de tráfico de influência e política monetária.

Nesta luta global, os parlamentares desonestos são apenas pequenos conspiradores na grande traição da democracia.

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3 pensamentos sobre “A corrupção dos valores começa na nossa casa

  1. Tenho um ponto de vista muito diferente disto, porque parto de uma premissa diferente: não é possível a Democracia estar a ser atacada agora nestes regimes, porque ela já não existia. E quem chama “democracia” à UE e aos EUA só pode andar muito distraído.

    Completar a distração chamando nomes tão violentos à Rússia e Hungria só torna a vossa visão do Mundo ainda mais distorcida. Afinal de contas Russos e Húngaros estão satisfeitos e representados com quem elegeram para os liderar, enquanto a UE é levada para o abismo por gente NÃO eleita, e os EUA são uma oligarquia de partido único.

    Ou como disse um certo Cubano no gozo contra os hipócritas da “democracia liberal”, para Cuba ser uma “democracia” de “dois partidos” como os EUA, bastava que o Fidel fosse líder de um partido, e Castro fosse o líder do outro partido. É isso o “bi-partidarismo” em Washington.

    Quando Orbán impede os média de receber financiamento estrangeiro, isso não é autoritarismo nem ataque à democracia ou às liberdades (de expressão e de imprensa). Isso é bom senso.
    O oposto deste bom senso é Portugal ter a CNN a colocar dinheiro na TVI.
    E autoritarismo é o que a UE fez à RT’ censura.

    Portanto ganhem noção. É só isso que peço. Na Rússia, um litro de gasolina custa 60 cêntimos, o exército serve para combater nazis, e o líder tem 80% de taxa de aprovação. Cá no Ocidente o preço da gasolina vai a caminho dos 2 €uros, o exército serve os interesses da Raytheon e companhia, e as taxas de aprovação dos líderes chegam a estar abaixo dos 20%.
    Portanto quem é que está a governar para representar os que todos os dias têm de atestar o depósito e pagar impostos para financiar o seu exército?

    Tal como no outro texto falei de como até o Miguel Sousa Tavares é vítima da máquina de propaganda e condicionamento, hoje falo de como até o Carlos Matos Gomes é vítima do mito da “democracia liberal” e dos double standards.

    Os familiares dos 21 assassinados pelo regime golpista ontem no Perú que o digam, agora que o seu Presidente eleito foi preso, e que a Mainstream Merdia ocidental diz que Castillo é que tentou um “auto-golpe” ao tentar fazer no seu Congresso o MESMO que Marcelo fez no Parlamento: dissolução.
    Na cabeça de demasiada gente, ser “democrata” é ser obediente ao império das “rules bases world perder” e nada mais.

    Se o fizerem, como Marcon, depois até podem invadir o Iémen e a Síria, bombardear Líbios e Ucranianos do Donbass, e tirar olhos aos manifestantes em Paris, que os propagandistas e as vítimas desse condicionamento, continuam a chamar-lhe “democrata”.

    E pior, e uma das razões pelas quais desisti de Portugal: defendem com unhas e dentes o que está a matar o país e levou a 20 anos em divergência, endividamento, perda de poder de compra, e continuará a manter o país em morte lenta: o €uro.
    E se alguém fala de factos, e de como já devíamos ter saído (leiam os livros do João Ferreira do Amaral e do Francisco Louçã), ainda têm a lata de dizer que a saída do €uro é que seria má, e que quem o defende é “populista” ou “eurocético” como se essas palavras fossem automaticamente coisas más.
    Isto vindo dos mesmos avençados que diziam que a austeridade e a TINA (essas sim mortais para a Democracia) eram coisas boas…

    Estou farto disto! Isto não é Democracia nem liberdade de imprensa! É um regime Orwelliano com uma máquina Goebbelsiana! E mesmo sendo feito por maluquinhos apoiantes de Trump, um 6-Janeiro-2020 não é um ataque à Democracia (pois não podem atacar o que não existe), é apenas uma tentativa desesperada e desorganizada de mudança de regime, que obviamente falhou pois tinha pela frente a máquina mais afinada de sempre na criação de golpes. E quem os sabe criar e até chamar “democrata” aos nazi-fascistas golpistas (Ucrânia 2014, Bolívia 2019, etc), também é exímio em evitá-los e em convencer-nos a chamar “extremistas” ou “anti-democratas” a quem, bem, se defende do regime em que infelizmente vivemos no Ocidente.

    Para que não fiquem dúvidas: não estou a dizer que a Rússia ou a Hungria são exemplos. Estou a dizer que a “democracia liberal” é uma anedota e que não dá lições a ninguém. Almejo viver num regime melhor. É crime?

  2. Concordando com a penalização da deputada europeia por ter recebido dinheiro como contrapartida pela promoção da imagem do Qatar, deixo uma pergunta.
    Quem pagou toda a campanha desenvolvida nos meios de comunicação social europeus visando denegrir a actuação daquele país para acolher o evento desportivo e para a construção das infraestruturas necessárias para tal, ignorando entretanto as empresas construtoras europeias contratadas e as suas práticas laborais? Em linguagem popular, um controlo (desinteressado? ) da formiguinha-deputada para facilitar a passagem aos elefantes.

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