(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 03/12/2022)

O que aconteceu à OSCE? Finou-se em segredo! Raptaram-na? O desaparecimento da OSCE tem um significado: a tentativa dos EUA de impedir o multilateralismo nas relações internacionais.
A guerra na Ucrânia, é um dos resultados do desaparecimento da OSCE e da reposição da ordem bipolar — bons e maus; nós e os outros — da guerra fria. O desaparecimento sem dor nem deixar rasto da OSCE é a vitória da política de confronto, de alinhamentos, da ideia de quem não é por mim é conta mim, da visão do mundo a preto e branco. Os atuais dirigentes europeus enfiaram a Europa nesse beco sem nada terem perguntado aos europeus. Antes pelo contrário, ludibriando-os, iludindo-os, metendo questões inconvenientes debaixo do tapete. Onde está OSCE?
A OSCE — a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa — desapareceu. Segundo as notícias antigas, incluindo do governo português no seu site, a dita criatura havia nascido na sequência de um processo político, iniciado em 1973, intitulado “Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa” (CSCE), que visava melhorar o clima entre o bloco soviético e o bloco NATO, e reforçado em 1990, com a “Carta de Paris para uma nova Europa”, adotada na sequência do fim da União Soviética.
A OSCE tornou-se numa organização com sede e instituições permanentes a 1 de janeiro de 1995. A OSCE, segundo os arquivos, era um fórum político e de segurança que procurava, “de forma cooperativa e através do consenso, promover a paz, a democracia e os direitos humanos.” A organização, segundo os seus pais fundadores, destacar-se-ia pela sua abordagem abrangente, recorrendo a instrumentos como a diplomacia preventiva, a gestão de crises, medidas de criação de confiança e reabilitação pós-conflito. Segundo as últimas notícias trabalhavam nesta organização de que se desconhece o paradeiro cerca de 2500 funcionários, entre eles um Secretário-geral. Todos desaparecidos!
Lembrei-me da OSCE a propósito do papel dela na Conferência de Helsínquia onde, entre vários assuntos relativos ao conflito Leste-Oeste e à Guerra Fria, ao controlo de armamentos e à divisão do mundo em zonas de influência foi decidido o futuro regime de Portugal que seria implantado a 25 de Novembro de 1975.
A atual guerra na Ucrânia seria uma oportunidade para a intervenção da OSCE — afinal trata-se de um conflito na Europa. Mas nada. Já no ataque da NATO à Sérvia e ao desmantelamento da Jugoslávia a OSCE não fora vista.
A “Ata Final de Helsínquia”, assinada em 1975, foi considerada a maior conquista da diplomacia da época, prenúncio de uma nova era nas relações Leste-Oeste. No entanto, desde então, os problemas aumentaram na Europa com o final do período soviético e a OSCE foi sendo substituída pelos Estados Unidos na condução do processo da Guerra Fria.
Em1990 ainda decorreu uma cimeira da estrutura, que passou designar-se “Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa” (CSCE), que incluía os países da NATO e os do Pacto de Varsóvia. A cimeira adotou em Paris a “Carta para uma Nova Europa” (Carta de Paris) que deveria marcar o fim da “era de confronto e divisão do continente’, e proclamou a eliminação de obstáculos à construção de uma verdadeira “casa europeia comum” sem linhas divisórias.
O facto é que o “Ocidente” não tomaria nenhuma atitude para transformar esses compromissos em ações concretas. A opinião pública ocidental fora iludida na crença “do fim da História” com a vitória da democracia liberal, mas os líderes sabiam a verdade: a História é um continuo de ações de força. Ainda em Paris e em 1990, o então Secretário de Estado dos EUA, John Baker, advertiu o presidente dos EUA de que “é precisamente a Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa que pode representar uma ameaça real para a NATO” (e a NATO era a máscara dos EUA).
De facto, no final da Guerra Fria, muitos políticos e cientistas políticos sensatos e previdentes consideravam ser melhor abandonar agora não só o Pacto de Varsóvia, que já havia desaparecido naquela época, mas também a Aliança do Atlântico, e fazer todo o possível para garantir que a OSCE se tornasse uma verdadeira ponte entre o Oriente e o Ocidente, uma plataforma para a alcançar objetivos comuns baseados no equilíbrio dos interesses de cada um dos participantes.
O problema é que esse objetivo da OSCE ia contra os interesses de domínio dos EUA sobre o Ocidente, o que explica o rumo seguido que foi o do alargamento da NATO, retirando a importância do significado principal da OSCE como instrumento coletivo para garantir uma segurança igual e indivisível entre as duas antigas europas.
Era importante para os Estados Unidos provar quem era o dono da casa europeia comum, que todos se comprometeram coletivamente a construir. O papel do Reino Unido foi o de dificultar a afirmação europeia e de agir como o perturbador ao serviço dos EUA: foi assim nas questões do alargamento da União Europeia sem cuidar dos princípios (o que conduziu aos atuais conflitos com a Polónia, a Hungria e os estados bálticos), do alargamento da NATO, da agressão contra a Jugoslávia (violando os princípios da OSCE estabelecidos em Helsínquia) até que, cumprido o seu papel de cavalo de Troia, o Reino Unido sai pela porta pequena do Brexit.
É interessante verificar o resultado dos compromissos obtidos pela OSCE: Em 1999 foi a adotada, em Istambul, a Carta de Segurança Europeia e o Tratado sobre Forças Armadas Convencionais (CFE), que fora renegociado depois do desaparecimento do Pacto de Varsóvia. Após negociações difíceis, o Tratado CFE foi assinado em 1999 em Istambul. Em seguida, foi aprovada a Carta para a Segurança Europeia, reconhecida como “a pedra angular da segurança europeia”. Os Estados Unidos proibiram os seus aliados de ratificar o Tratado CFE e retiraram-se do Tratado de Limitação de Sistemas de Mísseis Antibalísticos, Eliminação de Mísseis de Alcance Intermediário e de Curto Alcance, e também recusaram o “Tratado de Céus Abertos”. A OSCE assistiu a tudo como se nada lhe dissesse respeito. Os europeus obedeceram.
A OSCE foi o fórum onde se estabeleceram e acordaram os princípios de que a segurança dos Estados deve ser igual e indivisível, de que cada Estado tinha o direito de escolher alianças, mas ao mesmo tempo não tinha o direito de garantir a sua própria segurança em detrimento da segurança dos outros. Uma declaração importante foi a de que nenhum país ou grupo de países tem o direito de reivindicar um papel exclusivo no campo da segurança na área euro-atlântica. Mas a OSCE desapareceu enquanto os Estados Unidos conduziam a expansão da sua zona de ação para Leste com a adesão à NATO de novos Estados, de 16 para 30 e o avanço das suas fronteiras de cerca de mil quilómetros para Leste, com a integração da Polónia, da Hungria, da Roménia e dos países Bálticos, aos quais se acrescentariam mais mil quilómetros com a integração da Ucrânia, que os Estados Unidos estavam a promover com clareza e determinação desde 2014, dos acontecimentos da praça Maidan e que levaram ao poder Zelensiki como seu homem e dos oligarcas aliados de Washington. Para a história ficaria a frase “Fuck the Europeen Union” proferida em Fevereiro de 2014 por Vitoria Nuland, ao tempo diplomata do departamento de Estado e atual subsecretária de Estado, numa conversa telefónica com o embaixador americano em Kiev sobre o futuro do país.
Utilizando uma blague que infelizmente não será tão desajustada à realidade como devia ser, os cidadãos das democracias liberais distinguem-se dos cidadãos das democracias iliberais por terem os mesmos direitos dos monarcas britânicos: serem informados. Utilizando esse direito, os cidadãos europeus têm o direito de perguntar aos políticos europeus o que fizeram da OSCE. É que, além de terem enclausurado em parte incerta a OSCE, os políticos europeus têm aberto outros clubes e tertúlias de acesso privado, deque se sabe pouco mais do que o nome na porta.
O que é a “Comunidade Política Europeia” que teve uma reunião inaugural em Praga? O que é a “Cimeira da Democracia” convocada pelos Estados Unidos? Se a Europa dispõe de uma estrutura inclusiva, a OSCE, e no formato global existe a ONU, para que multiplicar organizações, capelas e capelinhas, a não ser para dividir e para inviabilizar soluções consensuais, multilaterais, democráticas e não sujeitas a uma lógica de bipolarismo, que apenas interessa aos EUA?
Ao menos anunciem o funeral da OSCE e o local da sepultura. Aqui Jaz mais uma utopia de uma Europa! Quanto à Europa Ocidental, esta resume-se hoje a ser uma parcela da NATO, a um “espaço” e um “teatro de operações”, a “uma acompanhante de luxo” dos EUA, uma empresa que durante a sua existência dificilmente se consegue registrar pelo menos uma “história de sucesso” real para si mesma, da agressão contra a Sérvia e a Líbia à invasão do Iraque, dos vinte anos de ocupação do Afeganistão aos continuados problemas no Kosovo.
A opção da Europa pela NATO, uma aliança militar, com uma inegável sujeição ao domínio político, económico e estratégico de uma potência hegemónica, os EUA, em detrimento do reforço da pertença à OSCE, a uma organização multilateral inclusiva, para segurança e cooperação, os atuais líderes europeus optaram pela sujeição, pelo bipolarismo americano contra o resto do mundo, em que são figurantes, em vez do multilateralismo em que podiam ser atores.
Os cidadãos europeus ficaram, democraticamente, arredados da decisão e nem sequer tiveram direito a informação, mas sim a bombardeamento informativo e manipulação em doses cavalares. Somos, os europeus, os bagageiros dos que mandam!
Excelente. Cada vez mais precisamos de informação competente e não propaganda avulsa.
Segundo notícias de ontem, o sempre presente Borrell afirmou que a OSCE ainda é necessária apesar de severamente prejudicada pela guerra. Estas declarações foram proferidas na sequência da reunião anual da OSCE (a Rússia foi impedida de participar). Nesta reunião não terão tratado de matérias relacionadas com a negociação da paz, diz Borrell, todos foram unânimes na crítica à Rússia. Ou seja, aproveitaram a reunião anual da OSCE para fazem mais do mesmo, recusarem qualquer hipótese de diálogo.
Gomes Cravinho, que também esteve na reunião, reproduziu o pensamento de Borrell, dizendo que a OSCE nada pode fazer, que está paralisada, só lhe faltou passar a certidão de óbito.
Borrell, cravinho é que nada podem fazer até ao dia em que Biden diga, acabou, vamos negociar. A partir de então iremos ouvir Cravinho a dizer, vamos negociar, é o tempo da diplomacia, bla, bla…
Curioso é ver como Cravinho (orientação da reunião da OSCE?) culpa a Rússia pelo estado moribundo da OSCE, diz ele, “porque a Rússia não está a permitir a aprovação do orçamento anual”. Exactamente a Rússia, que foi impedida de participar na reunião, é que vai fechar a organização.
Perante tamanho desplante, que nome dar a esta gente?
Mais um excelente texto que explica como os políticos ocidentais são tão hipócritas, mentirosos e manipuladores. Obrigada ao autor e à Estátua de Sal por ainda defenderem os factos verídicos. Longe vão os tempos desta conferência da OSCE em Outubro de 1991 em Moscovo (realizada num local próximo do Kremlin, após o golpe de estado) – https://www.osce.org/files/f/documents/8/a/14314.pdf em que a OSCE maquinava maldades mesmo nas barbas dos russos e com a conivência de uns quantos vendidos. Agora as coisas mudaram e o gato está escondido… mas com o rabo de fora. O documento está em russo, mas é fácil traduzi-lo recorrendo aos tradutores gratuitos da net. Saudações para todos.