É outra vez a economia, estúpido!

(Carmo Afonso, in Público, 07/09/2022)

O Governo apresentou medidas para fazer face à inflação e usa as receitas que obtém graças à própria inflação. É a chamada omeleta sem ovos. Quem está então a fornecer os ovos? Estúpido, somos nós.


António Costa falou aos portugueses.

Para lá do anúncio das oito medidas para fazer face à inflação, ouvimos o refrão de uma música que agrada a muitos e que vai ao encontro da nossa boa prestação na Europa: contas certas e consolidação orçamental. No ano em que enfrentamos o maior surto inflacionista dos últimos 30 anos, o governo mantém como objectivo descer o défice e descer a dívida pública.

Como é que isto é possível? Muito fácil.

As medidas, avaliadas em 2400 milhões de euros, podem ser suportadas pelo aumento extraordinário de receita fiscal, obtido graças à inflação. Não é verdade que seja graças ao esforço que tem existido, com vista à consolidação orçamental, que é agora possível proporcionar este pacote de medidas. Outra vez: elas pagam-se com a receita fiscal extraordinária obtida por causa da inflação. E ainda sobra.

Ou seja: o Governo apresentou medidas para fazer face à inflação e usa, para as concretizar, as receitas que obtém graças à própria inflação. É a chamada omeleta sem ovos. Só que todos sabemos que não se fazem omeletas sem ovos. Quem está então a fornecer os ovos?

Estúpido, somos nós.

Quem vive dos rendimentos do seu trabalho, e não vê o seu salário atualizado em função do aumento de preços, está a carregar o andor. Nenhuma das medidas anunciadas contém a justa, ou sequer uma aproximada, compensação pelo impacto da inflação. Esta erosão no orçamento destes portugueses, que representam a larga maioria, não está a ser valorizada. Está a ser-lhes exigido que façam um sacrifício perante o altar das contas certas.

Existe em Portugal algum trauma com o país que “ficou de tanga” e com a associação de governações socialistas a cenários de bancarrota. É certo que as boas graças, em que muitos portugueses têm Pedro Passos Coelho, vêm precisamente do reconhecimento do seu esforço para consolidar as contas que, é sabido, não estavam bem. Só que esquecem que foi um esforço inglório.

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Até onde levaremos a nossa capacidade de sacrifício em prol de nos protegermos do trauma? Preferimos suportar, e que outros também suportem, perda de poder de compra? Reparem que esta perda não será passageira. A ver: mesmo que a inflação diminua no próximo ano, ela não será negativa. Isto significa que os preços poderão parar de aumentar desta forma, mas que, a maior parte deles, não recuarão. A perda de poder de compra é permanente e definitiva, apesar de a inflação poder ser excepcional.

O Governo assume que a escolha dos portugueses é privilegiar as contas públicas em detrimento da sua qualidade de vida. Essa é certamente a escolha do próprio Governo. Acontece que a escolha não deveria ser entre o oito e o oitenta. Existe um meio termo entre o culto da diminuição do défice, doa a quem doer, e um país de tanga. Os portugueses precisam que esse equilíbrio seja procurado e que o Governo acuda à situação em que se encontram: ainda há pouco tempo falávamos de aumentos salariais reais, mas agora já só estamos a falar de aumentos que compensem a perda do valor do dinheiro.

Para as contas públicas a inflação não é trágica. Além do aumento da receita fiscal ela tem impacto direto na dívida pública e no sentido da sua diminuição. É simples: se devemos 100 e se 100 – face à inflação – passa a valer 80, então a dívida diminui para 80.

Deve notar-se que este fenómeno inflacionista não resultou de uma dinâmica da procura. É um fenómeno que teve origem na oferta. Mesmo que os portugueses passem a ir menos ao supermercado ou a abastecer menos combustível, esses preços não vão diminuir.

O que deve ser considerado – com a continuação da perda do poder de compra – é o risco de se verificar uma diminuição da procura e, com ela, uma recessão. A diminuição do PIB levaria ao aumento da dívida pública. Lá se vão as contas certinhas.

A obsessão com o défice – excessiva; já em 2021 ele estava controlado (e abaixo, por exemplo, do alemão) – não resolve o problema da dívida pública, apenas o crescimento económico o pode fazer. Estamos a tempo de repor os salários da função pública e de devolver qualidade de vida aos portugueses. Essa reposição não encerra um perigo. Não temos a corda ao pescoço, mas temos o cinto muito apertado e estamos a pôr o pescoço a jeito.

Por último: esta inflação é o resultado direto da continuação da guerra. Aplicamos sanções à Rússia que se têm revelado um tiro ao lado. No nosso lado.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico


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2 pensamentos sobre “É outra vez a economia, estúpido!

  1. A inflação “tem impacto direto na dívida pública e no sentido da sua diminuição. É simples: se devemos 100 e se 100 – face à inflação – passa a valer 80, então a dívida diminui para 80.”

    Não é assim que funciona em toda a dívida pública. Há uma parte que tem uma protecção contra a inflação (ou seja, na altura do pagamento, temos de pagar a inflação para que o investidor não lerca dinheiro), e outra parte que foi emitida em moeda estrangeira (ex: dólar) e isso é um grande problema quando a “nossa” moeda já desvalorizou 12% em 6 meses, e 35% em 12 anos. Sim, o €uro tem sido uma valente m*rda.

    Obviamente existem os SWAPS para compensar as variações cambiais, mas no final pagamos sempre o que pedimos emprestado e os juros, e nalguns casos pagamos mais para compensar a inflação e a desvalorização da moeda.

    E depois há a questão do rollover, ou seja, a actualização da dívida que vai vencendo e que, não tendo o país capacidade para amortizar, vai trocando por novos empréstimos (com o valor pedido anteriormente mais os juros) com a taxa de juro do momento.
    Ora, como quem investe não o faz para perder dinheiro, a taxa de juro costuma acompanhar a taxa de inflação (ou a taxa de desvalorização da moeda em causa).

    Em poucos meses, o valor pedido pelos mercados na dívida a 10 anos, subiu de valores próximos dos 0% para valor acima dos 2%, e a caminho dos 3%.
    À medida que a crise e a inflação se forem agravando, e o Quantitative Easing do BCE for recuando (*), esta taxa de juros vai continuar a subir. E se se confirmar o ataque da Fed dos EUA para mantet a atractividade do dollar, o BCE tem de ir atrás e subir os juros de referência. Tudo isto junto, e já não deve faltar muito para a próxina crise do €uro.

    (* na primeira fase, o BCE aumentou o Quantitative Easing, ou seja, ia ao mercado e adicionava a sua procura à procura existente. Mais procura aumentava o preço da dívida, o que leva a uma diminuição dos juros. Chama-se Yeld e Bond. Quando um desce, o outro sobe.
    Na segunda fase, o BCE suspendeu novas compras, mas ia mantendo o nível, ou seja, manteve essa tal procura extra, mantendo artificialmente os juros baixos. Portugal beneficiou disto até agora.
    Mas agora estamos finalmente na terceira fase do QE, em que o BCE já não compra mais dívida nova dos Estados, nem re-compra a que tinha antes só para manter o nível. Agora o BCE, quando chega ao fim a maturidade da ajuda, deixa essa dívida nos mercados, só para os mercados. Ou seja, há agora um aumento da oferta e diminuição da procura. Portanto a dívida torna-se mais barata, o que pela relação oposta entre Yeld e Bond, leva ao aumento dos juros.)

    Dizem que há um mecanismo de compensação para evitar que, tal como em 2010-2011, os especuladores se aproveitem do defeito estrutural do €uro e consigam especular contra os países periféricos.
    Tenho enormes dúvidas. Assim que o BCE começar a ajudar os “PIGS”, virão logo os “asseados” do Norte barafustar, com toda aquela arrogância e até xenofobia que nos fez ficar traumatizados com aquele nome: Jeroem Dijsselbloem
    Esperem só para ver…

    De forma indirecta, a inflação descontrolada, também é má para a dívida. Quando os preços sobem muito, a procura interna contrai. Se a subida é na energia, muita indústria tem de fechar. E se a coisa fica preta para o motor da Europa: Alemanha – vamos todos sofrer com isso. Ora, menos crescimento, ou até recessão, mais desemprego e falências, significará agora o mesmo que em 2011-2012-2013: a dívida a subir em % do PIB.

    Acrescentando a isto as estúpidas regras da ditadura do €uro, isso significará piores possibilidades de recuperação apód a crise. É por tudo isto que a Zona €uro é a zona económica/monetária com pior performance em todo o Mundo nos últimos 22 anos.
    E quando temos “habilidosos” como estes rosas que cativam investimento (!) só para poderem colocar cartazes a dizer “défice zero”, então isto é mesmo uma MORTE LENTA do país.

    Por último, tenho de comentar esta barbaridade:

    “esta inflação é o resultado direto da continuação da guerra”

    1) nem é resultado da guerra
    2) muito menos direto
    3) houve sempre guerras, até feitas pela NATO aqui perto e neste Continente, e nem por isso houve mais inflação
    4) esta inflação já vinha de trás, pelo menos 4% ou 5% já se antecipavam no final do ano ou em Janeiro
    5) em parte era pelo quantitative easing que desvaloriza a moeda
    6) noutra parte era a disrupção das cadeias de produção durante a pandemia
    7) e a parte mais significativa já era, e continua a ser, da especulação e lucros excessivos
    8) agora a restante inflação vem das sanções ilegais
    9) e o que ainda falta subir, aí sim, é explicado pela guerra, mas não é a guerra da Rússia contra Nazis, e sim pela guerra híbrida do Ocidente contra a Rússia, pela estúpida decisão de usar o gás como arma contra a Rússia

    Agora virou-se o feitiço contra o feiticeiro, e os idiotas chamam “chantagem” ao acto de quem se defende fechando a torneira a quem lhe declarou guerra quase total.
    Mas sejam os mais belicistas NeoCon, os mais xenófobos anti-Russos de cabeça completamente lavada pela propaganda Ocidental , ou os mais superficiais como a Carmo (que cometem tantos erros de análise por não irem ao fundo de nenhuma questão), está a ser difícil lidar com a realidade.

  2. O Carlos Marques está a ser severo de mais. O texto saiu no público e os jornais agora escrevem para a sua clientela. É uma prática capitalista recorrente: oferece-se ao cliente o que ele quer consumir, isto para o negócio não encalhar. Embora o comentário tenha razões de sobra para ser feito, fica aberta a questão: na avalanche de propaganda que são os periódicos não é um pequeno milagre um texto que lhe escapa ? Digamos que o artigo tem 2 partes: 1 a do público, outra o comentário de Carlos Marques ( ia tendo um lapso e chamar-lhe Marx … ).

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