A rendição

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 22/07/2022)

Miguel Sousa Tavares

Em Maio, quatro dias antes de completar 99 anos, Henry Kissinger foi a Davos, o fórum dos bem-pensantes donos do mundo. Embora Davos tenha servido sempre para que os grandes se acomodassem quanto ao essencial, fingindo diferenças no acessório (normalmente a cargo de cantores rock ou ambientalistas sazonais), desta vez a agenda era inteiramente monocórdica e pré-formatada: o apoio incondicional à Ucrânia e à continuação da guerra contra a Rússia de todas as formas e a qualquer custo. Mas alguém se esqueceu de avisar disso a velha raposa da política externa americana, mestre da realpolitik, doutor honoris causa do cinismo e o Prémio Nobel da Paz com mais mortes na consciência de toda a história da Academia Sue­ca. E assim, julgando que as coisas ainda eram como antes e que o que se esperava de si era um conselho feito de experiência e visão do futuro, num mundo sem ilusões de amanhãs cantantes — ao contrário das patetices ditas e agora recuperadas por Fukuyama —, Kissinger disse o que lhe parecia avisado: a) que era urgente terminar com a guerra na Ucrânia, que em nada servia ao Ocidente e, em particular, à Europa; b) que, para tal, era necessário dar uma saída a Putin; c) que essa saída teria de passar pelo reconhecimento da anexação da Crimeia e um estatuto especial para o Donbas — (o regresso à situação anterior à invasão e aos Acordos Kiev-2) — ou mesmo a cedência de território por parte da Ucrânia; d) que a verdadeira ameaça à Europa e aos Estados Unidos não vinha da Rússia, mas da China.

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Como era de prever, caíram todos em cima do “velho”, que só não foi acusado de alta traição e de estar ao serviço de Putin porque, enfim, tinha atrás de si um sólido currículo de inestimáveis serviços prestados à causa ocidental, sem olhar a meios nem a escrúpulos. Mas o escândalo foi tamanho, as pressões devem ter sido tantas, que os amigos ou ele próprio (o mais provável) viram necessidade de uma retractação pública, universal e completa. O resultado dessa auto-humilhação a que o celebrado autor de “Diplomacy” se submeteu puderam lê-lo nas páginas da última Revista do Expresso, num artigo sindicado da “Sunday Times Magazine”, em que o seu biógrafo, Niall Ferguson, simula uma entrevista com ele que nem na forma nem no conteúdo é entrevista alguma: é uma série de citações indirectas de pretensas respostas que Kissinger terá dado a perguntas cirurgicamente pensadas para desdizerem tudo o que ele havia dito em Davos, evitando, assim, elaborar o que quer que fosse acerca da sua discordante leitura da situação na Ucrânia e da saída para ela. Uma absoluta humilhação infligida a um homem centenário cujo prestígio político e académico influenciou gerações de diplomatas e governantes de direita. Felizmente para ele, o “velho” vive numa democracia, onde, mesmo neste tempo do pelourinho das redes so­ciais, as penas máximas são a autoflagelação ou o insulto “viral”; se vivesse no estalinismo, aquilo que teve de passar em nada se distinguiria dos “processos de Moscovo” e o que o esperava era o fuzilamento ou a Sibéria. Mas que mesmo alguém como Henry Kissinger se tenha de submeter a isto só porque ousou exprimir uma opinião diferente sobre o conflito na Ucrânia diz muito, muito mesmo, sobre o mal que a Ucrânia está a fazer às nossas democracias: ao jornalismo, à liberdade de opinião, às instituições democráticas. Temo que essa venha a ser a maior vitória de Putin.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 Kissinger é das personagens que eu mais me habituei a desprezar entre os fazedores da História. Nunca esquecerei que foi ele quem convenceu Gerald Ford a entregar Timor à Indonésia e, antes disso, quem, em nome do cinismo determinista com que sempre olhou para o mundo, tentou explicar a Mário Soares que ele ia ser o Kerensky da Ibéria e defendeu que Portugal deveria ser abandonado para Moscovo em benefício da doutrina da “vacina”. Não impede que, em minha opinião, tenha estado do lado certo da análise histórica quando avisou, há mais de 20 anos, que a progressiva expansão da NATO a leste era um erro de geopolítica que um dia poria em causa tudo o que se tinha ganho com o extraordinário fim da URSS e do Pacto de Varsóvia. Por essa altura, Mikhail Gorbatchov veio a Lisboa fazer uma conferência na Gulbenkian. Estava ali o homem que tinha mudado a história do século XX, que tinha posto fim ao “equilíbrio do terror” em que a Europa e o mundo haviam vivido nos últimos 40 anos. Mas, mesmo assim, aventuroso e despreocupado, José Pacheco Pereira acusou-o de ter desmembrado levianamente o antigo império soviético sem cuidar dos perigos daí resultantes para a estabilidade europeia: levou uma resposta arrasadora sobre a diferença entre governar um país como Portugal ou um país com 11 fusos horários e 40 nacionalidades diferentes (ninguém me contou, eu estava lá, sentado na mesa entre eles, e nunca o esqueci). O curioso da História é que hoje o mesmo Pacheco Pereira acusa ferozmente Putin de tentar repor a ordem imperial soviética que antes, segundo ele, Gorbatchov terá destruído irresponsavelmente.

É certamente provável que haja alguma nostalgia imperial no jogo de xadrez de Vladimir Putin: não é o único dos grandes do mundo que a tem. Mas o que há seguramente, também, é aquilo que Kissinger avisou: a sensação de que a Rússia estava a ser sufocada pela NATO, passo a passo. Por razões históricas e geopolíticas, Putin escolheu a Ucrânia como a última trincheira admissível do avanço da NATO. E essa é a tragédia da Ucrânia: foi escolhida por Putin como o terreno de confronto com a NATO, mas também foi escolhida pela NATO como o campo de confronto com a Rússia, pois que há muito que a NATO armava e treinava o Exército ucraniano, julgando inevitável uma invasão russa.

O erro estratégico e político de Putin será estudado durante muitos anos em todos os cursos de Ciência Política. E dele constará o essencial: o crime da invasão da Ucrânia cujas provas nos são servidas todos os dias num ecrã perto de nós. Aquelas caras de sofrimento, aquelas imagens de destruição são de um povo e de um país que não tem culpa nenhuma da sua contenda com a NATO (não obstante a imprudência gratuita do pedido de adesão à NATO). Mas o crime é bilateral, pois que, se a Ucrânia ainda não entrou formalmente na NATO, a NATO entrou em força na Ucrânia e ali está deliciada. Ainda não consegui perceber qualquer vantagem da guerra para a Rússia, mas as vantagens dela para a NATO e para os Estados Unidos são gritantes: além do confessado interesse no enfraquecimento militar de Moscovo, do teste no terreno a novas armas e no alargamento a novos países, há as fabulosas oportunidades de negócio já antes experimentadas na guerra contra a Sérvia — primeiro destrói-se, depois reconstrói-se. E a Ali Burton e as outras agradecem.

3 O problema do pensamento único imposto a tudo o que respeita à guerra na Ucrânia — incluindo a informação reportada e a que é escamoteada, a unilateralidade da cobertura da guerra e a falta de contraditório de cada vez que há alguém importante à frente de um microfone — é que ele não apenas distorce necessariamente a verdade dos factos, em Lisboa como em Moscovo, como também pode prestar um mau serviço à causa que se quer servir. Vou dar apenas dois exemplos.

Em Mariupol, na fábrica Azovstal, durante dois meses relatou-se que 2 mil civis estavam encurralados dentro das instalações porque os russos, que cercavam a fábrica, impediam a sua saída em segurança — o que estes negavam. Mas bastou que António Guterres fosse a Moscovo falar com Putin e a seguir mandasse uma delegação da ONU a Mariupol e, em dois dias, todos os civis saíram em segurança para a Ucrânia. Afinal, e como era fácil de adivinhar, estavam, sim, reféns dos combatentes ucranianos do Batalhão Azov, entrincheirados dentro da fábrica e que só os deixavam sair utilizando-os como escudos, para não terem de se render aos russos. Agora a cena repetiu-se com as toneladas de cereais ucranianos retidos no porto de Odessa, porque, segundo os relatos do lado ucraniano e “nosso”, os russos não os deixavam exportar, “utilizando a fome como arma de guerra” — coisa que, como garantiu um exaltado político ocidental, decerto absolutamente ignorante de História, nunca antes tinha sido vista. Mas bastou que a ONU entrasse mais uma vez em cena, que os turcos se oferecessem como mediadores e que todas as partes garantissem aos russos que os navios que irão buscar os cereais não levarão na ida armas para os ucranianos para um acordo estar iminente. Afinal, os russos negoceiam, mesmo que o acordo apenas interesse à Ucrânia e mesmo que, entretanto, a brava Lituânia, invocando as sanções europeias à Rússia, tenha ameaçado pôr tudo em causa, boicotando a passagem pelo seu território de mercadorias provenientes da Rússia para o seu enclave de Kaliningrado — ou seja, da Rússia para… a Rússia!

Em ambos os casos, no mínimo, perdeu-se tempo e acumularam-se danos, não resolvendo situações que se poderiam ter resolvido antes se a prioridade não fosse fazer passar por verdade a propaganda que interessava.

Mas se até as guerras ditas justas precisam de mentiras para afirmar a sua justiça, essa é mais uma razão para que a informação isenta e completa seja uma exigência. Numa guerra, toda a gente pode tomar partido pelo lado que considera justo, esquecendo tudo o resto. Mas o jornalismo não.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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2 pensamentos sobre “A rendição

  1. A ONU e Davos querem acelerar a implementação da “Agenda 2030”.

    O grande reset excepto para os ricos, que permanecerão ricos.

    Davos! Um grupo de reflexão secreto, elitista e ideologicamente perigoso. Recomendo a leitura do livro de ERic Verhaeghe ‘The Great Reset: myths and realities’. Após a sua leitura, verão o papel e o destino das nossas democracias de forma diferente. As nossas ‘elites’, algumas das quais eleitas, já não acreditam na democracia por um momento. Pelo contrário, eles consideram-se uma nova aristocracia que gere pessoas como os mendigos da Idade Média… com a ajuda da tecnologia. Davos ilustra e reúne uma casta cínica que é apenas benevolente para os próprios interesses do ITS. Lembro-vos que a maioria dos nossos líderes passaram pela formação dos “Jovens Líderes Mundiais” com a sua doutrinação mal disfarçada.
    Informem-se, os bastidores não são tão obscuros para os curiosos.

    A davocracia é galopante na nossa vida quotidiana, os globalistas encontram-se…Sem a Rússia e a China Popular! Isso é muito “sem saída”, como nos anos 30, quando a Liga das Nações se reuniu sem a Alemanha e a Rússia, que a propósito implementaram planos de parcerias industriais e militares estreitas na altura.

    Para um verdadeiro “RESET”, precisam de recomeçar numa base saudável com uma demografia controlada.
    Por isso começam com a 3ª ? guerra mundial, é claro!

    O Grand Reset vai ser quando os bancos centrais perderem o controlo. Com as injecções que existem, se os mercados caírem, então esse reinício terá de acontecer. A questão é: o que planeiam eles reiniciar? A moeda? Democracia? Estados? Fronteiras? Soberania? Liberdades? Será que o povo poderá convidar-se a si próprio para a discussão?

    O Grand Reset

    A- criação de DSEs
    B- pandemia global
    C- monetização global
    D- hiper-inflação
    E- big reset com substituição das principais moedas por DSE.
    Não importa quanto tempo demore, desde que consigamos a globalização.

    A “Grand Reset” não é uma escolha deliberada, é antes de mais uma admissão de fracasso perante o possível colapso das nossas sociedades.
    Defender a liberdade e a democracia? Convenhamos, eles não nos impediram de chegar onde estamos, eles acompanharam o movimento…
    O factor determinante do nosso tempo é a tecnologia, o “tecno-sistema” e a sua ideologia.
    Os homens de Davos estão apenas a levar esta lógica cada vez mais longe, mas é apenas uma precipitação estéril, como a crise da COVID mostrou claramente: pseudo-cientistas a fazerem-se de tolos durante todo o dia nos meios de comunicação social por uma “política de saúde” de um absurdo sem precedentes na história.
    Na verdade, a humanidade deve abandonar a ideia do progresso técnico, e compreender que o único progresso que nos pode salvar é interno e moral.

    O Grande Reset é a forma desejada de levar a ditadura do NOM um passo mais longe. Se pensam que isto está a ser feito à pressa, numa emergência devido à falta de outras soluções, estão enganados. Este plano tem vindo a nascer há várias décadas.

    Este plano de Davos é planeado e realizável localmente, ou seja, apenas no Ocidente, ou o seu sucesso requer a cumplicidade de todos os governos, incluindo a China e a Rússia?
    Porque na China não houve até agora vacinação obrigatória. Nem na Rússia.
    Assim, isso dá-nos esperança….

    A casta governante falhou, eles faliram o mundo através da dívida. A única forma de se safarem é utilizar receios mais ou menos fundados (aquecimento global antropogénico, que não está realmente provado, tensões étnicas criadas artificialmente, a destruição total de todos os valores morais tradicionais) e assim criar um clima de divisão e ódio entre as pessoas.
    Isto irá levá-los a um fracasso abjecto e a uma guerra por todo o Ocidente (começou nos EUA, está a começar aqui).
    Os grandes vencedores deste movimento serão os países que tiverem conseguido manter a unidade. Estou a pensar nos países asiáticos, na Rússia e, provavelmente, no Ocidente, nos países de Visegrado, se mantiverem o seu curso actual.
    O que mais me entristece é que ninguém parece perceber isto, todos pensam que Trump e Putin são as principais ameaças para o mundo.
    O Ocidente está aparafusado.

    A oligarquia de Davos compreendeu que o grande colapso sistémico e global é agora inevitável.
    A sobrevivência da humanidade neste planeta doente exigirá planeamento económico e ecológico.
    Hoje em dia, a oligarquia de Davos ainda controla os bancos, e portanto a impressora de dinheiro, e portanto o poder. Mas não controla o essencial: o Povo. A sua angústia: os movimentos populares de insurreição que têm a capacidade de a fazer desaparecer (uma pequena imagem no clip evoca isto).
    Os oligarcas de Davos vêm dos negócios, não nos esqueçamos. Eles sabem como antecipar tendências de uma forma distanciada e pragmática.
    Talvez se estejam de facto a pré-posicionar a fim de preservar a sua sobrevivência no mundo “planeado” que está para vir?
    No início da década de 1930, os industriais alemães fizeram a mesma aposta no partido nazi.

    Com estas pessoas, estamos definitivamente lixados. Uma vez que não somos capazes de fazer uma democracia que respeite os cidadãos .

  2. Obrigada Miguel Sousa Tavares por mais um excelente artigo que nos ajuda a compreender melhor esta guerra que tanto interessa a alguns e é desgraça e sofrimento para tantos! Impressiona, em particular, o que parece ser (?) a falta de sensatez dos governantes da UE que implica para os europeus sofrer as consequências das sanções económicas à Rússia. Quão melhor seria dedicarem o seu esforço a negociações para o fim imediato da guerra!

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