A aceleração da História e derrota do Ocidente

(Por  Régis de Castelnau., in Reseau International, 21/07/2022, TRAD. Estátua de Sal)

A intervenção russa na Ucrânia em 24 de fevereiro foi uma grande surpresa para o Ocidente. Inclusive para aqueles que, como o autor destas linhas, consideram que a da NATO e a União Europeia tiveram grandes responsabilidades. Essa surpresa é, em última análise, o sintoma desse sentimento de superioridade ocidental tão presente na mente das pessoas, inclusive entre aqueles que tentam não se afastar muito da realidade e testemunham, consternados, a queda das elites dominantes num delírio imbecil. Com base na recusa de provas, decisões absurdas, propaganda imbecil, racismo sumário, impulsos suicidas e, para ser honesto, numa cegueira bastante aterradora.

Dissemos nestas colunas  que era possível que a intervenção militar de 24 de fevereiro de 2022 desencadeasse um processo que poderia pôr fim à dominação secular do Ocidente sobre o mundo. Os acontecimentos que se desenrolam há quatro meses parecem confirmar esta hipótese e, em todo caso, é claramente o caminho que a Rússia e os países “do Sul” decidiram seguir.

A História muda a passos largos, e é irreversível

O aspeto militar da guerra na Ucrânia, sem ser secundário, aparece como um elemento entre outros dessa súbita aceleração da História. Assistimos em simultâneo à condução metódica pela Rússia da sua “operação especial”, e à recomposição geoestratégica do planeta onde o Ocidente, isolado, enfrenta o resto do mundo. O que impressiona é que o que está em jogo nesse confronto é muito claro. Por um lado, temos uma potência, os Estados Unidos, que se considera excecional e destinada a liderar o mundo organizando a sua globalização como uma forma moderna de dominação. O seu sistema económico é o neoliberalismo financeiro baseado na sua moeda, o seu sistema político é a democracia representativa – hoje abastardada em oligarquia ou mesmo em plutocracia-, tem como instrumento legal a famosa “ordem internacional baseada em regras” que só ela conhece e produz de acordo com suas necessidades, sendo o seu principal meio a violência militar. Ao contrário, os países que representam a grande maioria da população mundial, não querem mais essa hegemonia, aspiram a uma organização multipolar de estados-nação regulados pelo direito internacional resultante do ordenamento jurídico instaurado no final da Segunda Guerra Mundial. E, portanto, essas economias rejeitam o neoliberalismo e são a favor de esquemas de organização económica onde o Estado mantém alguma relevância. 

Os dois sistemas são incompatíveis. Detenhamo-nos, por momentos, numa anedota que se refere a esta diferença fundamental e à incompatibilidade que dela resulta. Dois eventos colidiram no início de 2021. No tumulto que se seguiu às últimas eleições presidenciais americanas, Donald Trump questionou a legitimidade democrática da eleição invocando fraudes. Ora a sua conta no Twitter, com quase 90 milhões de “seguidores”, foi eliminada com por Jack Dorsey, o bilionário dono da rede social e apoiante de Joe Biden. Em paralelo, o bilionário chinês Jack Ma, dono do site de compras online Alibaba, criticou publicamente o regime chinês. Ele foi imediatamente  “exfiltrado” do mundo dos negócios, e teve que se retratar, tendo que ficar calado se quisesse conservar alguma parte da sua imensa fortuna. Consequentemente, na América, são os bilionários que têm o poder de retirar a palavra ao presidente em exercício, na China, é o contrário… Esta anedota mostra a diferença entre os dois sistemas, com dois protagonistas idênticos, presidente e oligarca. Este não é um julgamento moral ou qualitativo, mas simplesmente a observação de uma diferença irredutível.

Está claro hoje que a Rússia, apoiada pela China, decidiu com sua guerra na Ucrânia iniciar o processo destinado a acabar com a hegemonia americana no mundo. O social-democrata britânico Tony Blair, cúmplice dos crimes de guerra americanos no Iraque e exemplo da quintessência daquilo que o Ocidente produz de forma mais cínica e corrupta, reconheceu recentemente: “Estamos a chegar ao fim da dominação política e económica do Ocidente. O mundo vai ser pelo menos bipolar e talvez multipolar”. Sim, sim…

Às vezes é possível importar conceitos das ciências duras para as chamadas ciências leves, neste caso as ciências humanas. Para compreender a revolução que acaba de começar, e em particular esta aceleração da História, podemos inspirar-nos no conceito introduzido por Stephen Jay Gould na sua teoria da Evolução, o dos “equilíbrios pontuados”. Ao contrário de uma visão gradualista lenta, o cientista americano considerava que a Evolução progredia aos saltos após longos períodos de estabilidade. O mesmo se passaria na História, como o demonstra, por exemplo, o caso a Revolução Francesa que começou com a primeira reunião dos Estados Gerais em 5 de maio de 1789. Sete dias depois, as instituições de um regime de quase mil anos estavam no chão e uma reviravolta deslumbrante iria abalar toda a Europa.

A invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro obviamente serviu como catalisador para colocar em movimento elementos pré-existentes que, no final, estavam apenas esperando para serem movidos. O Ocidente dominou o mundo por meio milénio, liderou a segunda globalização do século XV com a conquista do planeta, a terceira com a Revolução Industrial e Imperial do século XIX, e o contemporâneo pela forma atual da sua dominação. Como diz Tony Blair – e não apenas ele – é possível e talvez provável que essa fase termine.

Apenas mais uma pequena digressão pelas ciências duras seguindo o segundo princípio da termodinâmica que estabelece a irreversibilidade dos fenómenos físicos. É o mesmo na História, e não haverá retorno à situação anterior a 24 de fevereiro de 2022.

O problema é que essa aceleração e o princípio da irreversibilidade são contraintuitivos, pois para os apreender é preciso aceitar o fim do velho mundo, renunciar às convicções tranquilizadoras e gerir a ansiedade da imprevisibilidade do que está por vir. Porque devemos ser claros, qualquer um que afirme saber qual será o estado de nosso lar humano nos próximos trinta anos é um charlatão. Inclusive porque entre as hipóteses que atualmente correm, a de destruição nuclear não é a menos provável. Mas sabemos que, de qualquer forma, não voltaremos a 23 de fevereiro de 2022.

Vejamos três áreas onde o impacto dessa revolução e sua velocidade surpreendente estão a sentir-se. É antes de tudo a inversão brutal do equilíbrio global de poder, quando o Ocidente, envolto na sua arrogância e convicção de encarnar a “comunidade internacional”, não percebe que é ele mesmo que agora está isolado. Depois, há o “pânico cognitivo” que tomou conta das elites ocidentais, um pânico que se manifesta por uma recusa furiosa da realidade. E, finalmente, as consequências sociais e políticas que devem ser provocadas pelas decisões económicas delirantes implementadas para provocar “o colapso da economia russa”, segundo a expressão de Bruno Le Maire, o infantil e incompetente que infelizmente atua como Ministro da Economia da França.

Isolamento do Ocidente

A reação à invasão russa foi imediata, especialmente na União Europeia que, sob a égide de Ursula von der Leyen, exercendo competências que não possui, adotou um pacote completo de sanções de todos os tipos. Foi o primeiro erro, pois deixou de ser possível qualquer modulação posterior que não aparecesse como um retrocesso, e obviamente essa reação só poderia repelir os países do Sul, mesmo os favoráveis ​​ao Ocidente. A condenação da invasão foi votada na ONU, com base no direito internacional, justamente aquele que os Estados Unidos não querem nunca aplicar em detrimento da sua conceção de “ordem internacional baseada as regras”. Em relação às sanções, a grande maioria dos países olhou para o lado. Os líderes ocidentais, no entanto, multiplicaram-se em viagens para os levar a obedecer. Contudo, levaram com a porta na cara, mais ou menos educadamente. O último exemplo patético foi o desastre de Biden na Arábia Saudita. Também podemos citar a lista absolutamente ridícula de 40 países (de 195) que se declararam a favor de “processos-crime contra a Rússia”, e que inclui triunfantemente os principados do Mónaco, Andorra e San Marino. Imagine-se o terror de Vladimir Putin.

O problema é que a recusa maciça em aplicar as sanções, por parte de países que representam quase 90% da população mundial, combina-se com a relutância e o comportamento à la carte por parte dos países ocidentais. Tal como acontece com a duplicidade total, dos Estados Unidos que levantaram as sanções aos fertilizantes russos considerados essenciais, ou ao petróleo cujas importações aumentaram massivamente…

Mas, sobretudo, muitos grandes países viram claramente a abertura proporcionada pela iniciativa russa. E apressaram-se, como mostra o – espantoso para os ocidentais – paralelo das reuniões dos G7 e dos BRICS. A organização que reúne Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul representa cerca de 3,5 biliões de habitantes, contra 750 milhões dos países do G7. Cujos líderes ridículos (alguns dos quais em liberdade condicional) se mostraram em mangas de camisa como crianças no pátio da escola em frente às câmaras. Enquanto os dos BRICS mostraram ostensivamente a sua solidariedade para com Vladimir Putin, antes de receberem pedidos ansiosos de adesão de vários outros países importantes. A média francesa também teve o cuidado de não dar grande relevo à catástrofe política da “Cimeira das Américas” organizada na Califórnia por Biden. Cimeira amplamente boicotada pela América Latina e em particular pelo México, um vizinho dos EUA. E o que dizer do G20 organizado na Indonésia, onde os ocidentais foram geralmente severamente rejeitados, como Anthony Blinken, o secretário de Estado americano pelo seu colega chinês ou o lamentável Josep Borrell, que representou a UE? Deste último, reteremos uma reflexão extraordinária: “Alguns diplomatas do G20 estão mais preocupados com as consequências da guerra para o seu país do que em atacar o suposto culpado”. Percebe-se, pois: essas pessoas pensam no seu interesse nacional em vez de defender o nosso!

Há também algo estranho no silêncio do Ocidente sobre a superioridade militar estratégica da Rússia. O contexto em que a “operação especial” ocorre é, no entanto, aquele em que a Rússia demonstrou o seu domínio de mísseis hipersónicos que, juntamente com outros equipamentos, lhe deram superioridade nuclear estratégica. 

Enquanto isso, os Estados Unidos favoreceram a “guerra ao terror” após o 11 de Setembro, e aceitaram submeter-se aos ditames de um complexo militar-industrial corrompido até aos ossos. Existe agora, pois, e para mim tal já ocorre há dez anos, um desequilíbrio estratégico entre os Estados Unidos e a Rússia. A favor desta última…

A lista de todos estes exemplos, que dão uma ideia da velocidade a que o mundo está a mudar, cresce a cada dia. Citaremos mais um, para finalizar, e que tem a ver com o processo de queda do dólar. Em novembro, as cinco maiores economias do Sudeste Asiático (Filipinas, Malásia, Indonésia, Singapura e Tailândia) assinarão um acordo sobre a integração dos seus sistemas de pagamento móvel. Isso tornará as transferências internacionais muito mais eficientes, sem recurso ao dólar.

Pânico cognitivo

Em vez de psiquiatrizar Vladimir Putin e inventar um mundo que não existe, seria melhor ouvir o que ele diz e tentar entender a mudança que acaba de ocorrer. O problema é que as elites no poder do bloco ocidental tornaram-se incapazes de apreender a realidade e estão reduzidas a lançar-se sobre um terreno que está cedendo sob seus pés. Falar sobre o caráter suicida da estratégia da UE em relação à Rússia tornou-se lugar-comum. Estamos completamente à sua mercê, ela que pode cortar completamente as nossas compras de energia no limiar do inverno. Instantaneamente causando o colapso económico da Europa. Sem mencionar, claro, a arma alimentar e outras matérias-primas essenciais. A única coisa que nos protegeria de tal seria justamente a construção dessa nova ordem internacional multipolar na qual a Rússia seria um dos principais atores. Ordem que a Rússia pretende preservar, tomando conta dos seus principais parceiros. Até agora, ela respeitou os seus compromissos internacionais, inclusive em relação a um Ocidente que, no entanto, lhe declarou guerra. Não por razões morais, claro, mas porque é do seu interesse. E certamente também não por benevolência para com o Ocidente, do qual ela agora ri e com quem a rutura ela sabe ser irreversível. 

Quanto às elites no poder, não se trata apenas desses medíocres dirigentes reunidos que estão à frente dos Estados, mas também de todo o sistema institucional. E em particular a aliança fraudulenta entre a oligarquia e o sistema de média baseada em jornalistas desonestos, especialistas pagos e oficiais incompetentes. Não voltaremos à inépcia das “narrativas”, em particular as militares, que nos têm servido há cinco meses, exceto para especificar que se trata tanto de propaganda como de autointoxicação. Nessa área, a França tem sido particularmente lamentável, a média se contentando em reproduzir servil e exclusivamente os discursos ucranianos, mesmo os mais grotescos. Mas, o que surpreende é o espetáculo desse sistema de pressão que se sente de vez em quando cedendo e começando, diante da evidência da realidade, a qualificar sua apresentação. Recuperar-se muito rapidamente e voltar depois de alguns dias a uma descrição cuja motivação principal, senão essencial, não é dizer a verdade, nem mesmo continuar sua propaganda, mas, em última análise, tranquilizar-se. 

Infelizmente, a derrota do Ocidente está começando a tomar forma, e não apenas no terreno militar na Ucrânia. É por isso que o termo “pânico cognitivo” parece ser necessário para caracterizar a sua atitude. E que é fruto da dificuldade de apreender uma grande mudança no mundo que é lhe é insuportável. 

Convido, sem que seja necessário ver o menor ponto Godwin nisso, para uma leitura do diário de Joseph Goebbels e em particular a parte que se refere ao último ano do Terceiro Reich. Como a maioria do povo alemão, e embora ele seja um profissional da propaganda e tenha um lugar privilegiado no conhecimento da realidade, ele recusa-a, ainda assim, de maneira patética e suicida. Até ao desastre final.

Vigília de armas

A França viveu um episódio político bizarro, com uma reeleição bastante confortável de Emmanuel Macron, seguida de uma derrota do macronismo nas eleições legislativas que teve o efeito de o paralisar. A sua margem de manobra é muito pequena, e o modo de governar de Emmanuel Macron, se é que o seu método consistindo exclusivamente em encenar-se a si mesmo pode ser descrito como tal, condu-lo diretamente à impotência. É claro que há a situação económica, devido em particular à crise do Covid, à recessão e à inflação, e que o efeito bumerangue das estúpidas sanções anti russas piorará consideravelmente. Parte dos pagamentos do Covid pelo BCE estão condicionados à implementação de um pacote de reformas impopulares como as pensões ou a finalização da privatização/destruição de serviços públicos. A combinação de crises económicas, políticas e financeiras pode, desse ponto de vista, confrontar Emmanuel Macron com uma situação inextricável. E este verão escaldante está começando a parecer uma vigília política e social.

Perante estas perigosas perspetivas, quando a hipótese de um conflito nuclear não pode ser descartada liminarmente, vamos repetir mais uma vez que, em vez de chamar louco a Vladimir Putin ou alegar que ele está desenvolvendo uma coleção de cancros, teria sido melhor ouvir o que ele diz. Por exemplo, o que ele diz sobre as “elites” ocidentais:

“Eles deveriam ter entendido que já perderam desde o início de nossa operação militar especial, porque seu início significa o início de uma rutura radical da ordem mundial ao estilo americano. É o início da transição do egocentrismo liberal-global americano para um mundo verdadeiramente multipolar – um mundo baseado não em regras egoístas inventadas por alguém para si, atrás das quais há apenas o desejo de hegemonia – […] E nós, temos entender que esse processo não pode mais ser interrompido”.

A guerra na Ucrânia é apenas um aspeto do confronto “Ocidente contra o resto do mundo”. A derrota da Ucrânia é claro, mas na verdade a da NATO está consumada. Provavelmente será a “Batalha de Adrianópolis” do império americano.

Bem-vindo ao novo mundo.


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Um pensamento sobre “A aceleração da História e derrota do Ocidente

  1. O Ocidente foi derrotado em 2022, enquanto o Comunismo foi derrotado em 1991, ou seja durou 30 anos menos. Portanto, o Ocidente capitalista revelou-se mais sólido que o comunismo, camaradas.

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