Portugal no espelho dos Uber Papers

(Manuel Gouveia, in AbrilAbril, 12/07/2022)

Durante vários anos, a Uber actuou em Portugal na mais completa ilegalidade, afrontando as leis do sector onde está inserida. Nunca o Estado português tentou qualquer acção séria contra ela.


O Consórcio Internacional de Jornalistas Independentes (IJIC) publicou este fim-de-semana um artigo 1 baseado numa investigação conduzida em torno dos Uber Papers, um vasto conjunto de documentos e comunicações internas da Uber.

A Uber reagiu ao conjunto de denúncias dizendo que o conteúdo agora exposto é referente à gestão do anterior CEO e que, desde 2017 com um novo CEO, essas práticas foram completamente afastadas. É preciso ter em conta que um lema – documentado – da tal anterior equipa era «É melhor pedir perdão que permissão»… que é exactamente o que a Uber está a fazer neste momento… mas enfim, esta é conversa para enganar quem quer ser enganado.

O conteúdo até agora tornado público não é muito rico em elementos concretos sobre o processo português, mas a informação disponibilizada ilustra bem o que foram vários processos de entrada forçada da Uber em vários países, e nesse sentido devem ser vistos como um espelho onde o processo português tem que ser entendido e tratado.

Comprando quem os defenda

Quando a Uber realizou uma listagem de algumas centenas de personalidades que era útil atrair, não lhes estabeleceu um preço, e muito menos o mesmo preço, até porque não tinham o mesmo valor para a companhia. Os Uber Papers dizem-nos que para 2016 eram 90 milhões os dólares reservados para esta actividade de atracção, e ilustram situações de pessoas atraídas com descontos na companhia, jantares de luxo, conselhos sobre empregos, contribuições de campanha e oferta de acções. Pessoas úteis que tanto podiam ser políticos, decisores públicos ou académicos. E que eram chamados a cumprir o seu papel quando tal se colocava.

Estas pessoas atraídas apelavam a que «se levantassem exigências, mudassem as políticas relativas aos direitos dos trabalhadores, desenhassem novas leis para o táxi e facilitassem na verificação de antecedentes dos motoristas».

A forma como uma ex-vice-presidente da Comissão Europeia acaba a receber 200 mil euros da Uber é descrita em pormenor, até citando declarações dos responsáveis da Uber proibindo a referência sequer ao nome dessa pessoa, até ser legal oficializar a sua contratação, depois de passar o período de nojo de 18 meses. Uma contratação realizada para um cargo formal – Presidente do Conselho Consultivo – com um ordenado bem real – 200 mil euros – e com funções reais que se depreende serem muito diversas das formais, como por exemplo, pressionar o Governo dos Países Baixos a «forçar o regulador e a polícia a afastar-se».

Actuando como uma organização criminosa

Outra das dimensões que os Uber Papers ilustram é a imagem de uma multinacional actuando como uma autêntica organização criminosa. Discutindo o bloqueio informático de esquadras e edifícios da polícia para travar investigações em curso. Infiltrando agentes seus nos «falsos clientes» usados pela polícia para operações contra a Uber como mecanismo de conhecer com antecedência as operações. Instalando e accionando botões para cortar o acesso a documentação sensível em momentos de rusgas policiais.

É neste ambiente doentio e criminal que parece natural a sugestão dada por um dos responsáveis, em Portugal, de comprar uma investigação sobre um dirigente da ANTRAL para tentar descobrir algo útil de usar numa campanha mediática. Ou parece ainda mais natural a táctica usada em vários países, incluindo Portugal, de montar verdadeiras provocações destinadas a gerar uma resposta violenta por parte dos taxistas para depois poder usar essa resposta para promover a Uber.

O poder económico e o poder político em conluio contra o povo

Onde a investigação destapa vários casos é no conluio do poder político – comprado, convencido ou submetido – com o poder económico para conseguir servir os interesses da multinacional e enganar a opinião pública.

São exemplos os contactos com Macron, então ministro da Economia, que se terá comprometido a «contornar a legislação», ou a participação de dez quadros da Uber em Davos e os contactos com o poder político ao mais alto nível. Apropriado aos tempos em que vivemos, dessa reunião de Davos do Fórum Económico Mundial, os contactos com capitalistas russos foram intermediados por oligarcas ingleses.

Atraindo os motoristas com falsas promessas

Os processos de liberalização incluem muitas vezes medidas, incluindo remuneratórias, para atrair os profissionais do sector a serem cúmplices do processo que, quando completo, promoverá a sua progressiva proletarização com o correspondente aumento da exploração a níveis superiores ao início do processo.

Mas a Uber foi mais longe, oferecendo bónus, incentivos e percentagens que levaram muitos a realizar investimentos de que acabaram por ficar reféns quando esses valores foram retirados.

Os Uber Papers revelam ainda o facto de a multinacional se ter oferecido – para evitar pressão sobre os seus próprios impostos – a ajudar na recolha de impostos aos motoristas. Edificante, sem dúvida.

Significativo é ainda constatar a diferença nas declarações de Joe Biden, em Davos, depois de uma reunião com directores da multinacional, quando se tratava de facilitar a entrada desta no mercado mundial, prometendo «dois milhões de novos empregos este ano, permitindo a liberdade de trabalhar tantas horas quanto se deseje, e organizar a vida de cada um como desejar», com a resposta que agora dá, frente às consequências reais do processo sobre os trabalhadores dos EUA: «estou comprometido em combater o emprego desqualificado que priva os trabalhadores de protecções e benefícios fundamentais, como sejam o salário mínimo, as horas extras e as licenças familiares e médicas».

Revisitando agora o caso português

Depois da leitura do resumo acima publicado, que cada um revisite o processo português e daí retire as devidas ilações.

Durante vários anos, a multinacional actuou em Portugal na mais completa ilegalidade, afrontando as leis do sector onde está inserida, o transporte remunerado de passageiros em viatura ligeira. Nunca o Estado português tentou qualquer acção séria contra ela. Os seus sites ou aplicações nunca foram bloqueados – e é possível, como está demonstrado. Os motoristas que operavam ao seu serviço actuavam na mais completa ilegalidade, afrontando a natural hostilidade dos profissionais do táxi, que realizavam uma actividade regulada que sofria a concorrência desleal e ilegal da Uber. Raras vezes foram multados, ao contrário do táxi, que sofria campanhas de assédio policial. A comunicação social aplaudia a «novidade» enquanto os opinion makers faziam opiniões.

Até que em 2018, PS e PSD se juntaram, com o apoio do PAN e a abstenção do CDS, para criar a Lei do TVDE, legalizando a actividade da multinacional. Uma lei que não é cumprida em muitas das suas disposições, mas veio legalizar a actividade da Uber, que passou a recolher muitos milhões de euros do transporte remunerado de passageiros em viatura ligeira realizado em Portugal. Passado pouco tempo, as condições de trabalho regrediram no próprio sector TVDE e as justas lutas dos seus profissionais têm crescido.

Todo um processo que já na altura parecia sujo. Que hoje parece ainda mais sujo. E que se algum dia for propriamente investigado, se revelará seguramente ainda mais sujo.

Dirão alguns, e qual é a novidade? Tudo isso é velho e tudo isso é capitalismo. E têm razão.


  1. «A máquina de Lobby: como a Uber ganhou acesso aos líderes mundiais, enganou investigadores e explorou a violência contra os seus  motoristas numa batalha pelo domínio mundial.», ICIJ, 10 Julho de 2022. O conhecimento público dos Uber Papers que aqui reporto é o transmitido neste artigo.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

4 pensamentos sobre “Portugal no espelho dos Uber Papers

  1. Como é fácil opinar contra meia dúzia de taxistas mal formados e calar a boca perante os poderosos da economia (criminosa).

  2. O problema está na palavra Estado. Já não existe um Estado Portugués, já não temos soberania em nenhum domínio, ou seja, a coisa pública Portuguesa já não existe, porque foi desviada pelo sector privado, ou seja, pela casta dos grandes fazedores de dinheiro internacionais.
    Esta será uma nova pilhagem, a corrupção é o motor deste sistema …

    A genialidade do nosso poder politico ultra-educado é ter compreendido que o dinheiro pode ser uma coisa virtual; portanto, não mais dívidas, não mais contabilidade, etc.…

    O estado faz más escolhas estratégicas. Consequências: falhas nos serviços públicos, perdas absorvidas pelos cidadãos.

    Na minha opinião, o povo faz o seu próprio infortúnio. Aplaudimos as pessoas dos Banqueiros ou Actores. colocamo-los no poder. estes banqueiros só têm o euro em mente para enganar o povo e levam a vida de imperador! A prova! olhem à nossa volta.

    Em breve iremos pagar para trabalhar… Não é isso que já estou a fazer com as minhas contribuições e vários impostos? Penso que está a tornar-se a uberização de Uber (após a japonização dos bancos…)
    A escravatura só existe porque beneficia uns poucos.

    A concorrência é distorcida quer pelas más práticas sociais (Uber não paga o verdadeiro custo exigido para os empregados tradicionais), quer pelos efeitos da globalização (Apple e a multi que fabricam na Ásia a preços baixos sem respeito pelo ser humano ou pelo ambiente, para vender a um prémio noutro lugar).

    O resultado é um empobrecimento considerável nos nossos países.

    A globalização tem efeitos perversos. Podemos eliminá-los? Será que precisamos de mais e melhor globalização, um governo mundial? Que competição livre e sem distorções pode haver entre a Portugal e os EUA, por exemplo?

    A nossa cultura fez-nos acreditar durante algum tempo que escolhemos os nossos líderes e, portanto, o nosso Estado. Mas ainda vivemos num estado feudal onde as assembleias políticas substituíram os potentados guerreiros locais. Não pode ser um líder deste Estado sem ser apoiado por algum tipo de organização política. ( Enarquia e negócios politicos) .
    O Estado é apenas estéril devido à nossa escravatura voluntária.

    O nosso Estado é infiltrado por funcionários públicos a todos os níveis (presidente, ministros, deputados, presidentes de câmara, vereadores, etc.) que só lá estão para elaborar e aplicar regulamentos e directivas que favoreçam a sua reprodução enquanto enriquecem um capitalismo desviante de conivência.

    Em suma, o nosso estado de sonho está morto desde o sono profundo dos anos 80, quando acordou para as cornetas da decultura anglo-americana.

    Somos um conglomerado de pessoas sem outra ligação que não seja dinheiro, comércio, e América. Quanto ao resto, as nossas espiritualidades, os nossos gostos, as nossas tradições, os nossos hábitos, os nossos costumes, o nosso respeito, os nossos jogos, a nossa comida, de facto tudo o resto nos atomiza numa unidade no solo dos Portugueses, que são ou irão desaparecer por terem preferido ser funcionários públicos do que Portugueses.
    Podemos dizer além disso que somos dirigidos por homens não muito “francos do colarinho”.

    O Estado só falha porque é desviado e monopolizado para estar ao serviço exclusivo daqueles que o bom povo elefante elegeu.

    A primeira função regaliana do Estado era de cunhar dinheiro! A justiça e o exército não existem se não houver dinheiro.

    O Estado abandonou este poder “divino” às mãos dos banqueiros e dos grandes grupos economicos.! Vemos o resultado hoje!
    O problema é que os políticos passam todos para a caixa registadora para servir a sopa dos verdadeiros líderes do mundo , sabemos que a confiança internacional nos apodrece a vida , mas o que fazer com as nossas pequenas armas desgastadas pelo trabalho ?

    Lembrem-se: quando a URSS foi criada…com o “belo princípio” quase religioso de “tudo para todos”…Trotsky, Lenine, Estaline …esqueceu-se que o Homem não é um Santo! E uma vez no Poder ..as suas inclinações naturais surgem e ele aproveita-se delas para os seus, os seus afiliados, etc. ..o Muro de Berlim acabou por ruir com a sua “economia” marxista.Poder e dinheiro matam tudo . Qualquer que seja o regime liberal ou comunista, as pessoas no poder não são santos.

    O Estado, durante décadas, o dinheiro, o lucro não tivesse tido tanto lugar, com os desvios, a corrupção, a perda de autonomia, nenhuma decisão sem passar pela Europa, não digo que a Portugal seria um Éden, mas talvez fosse um pouco melhor.

    Quanto à política, temos um tabuleiro de xadrez que vai desde a extrema direita do capital até à extrema esquerda do capital. E todos querem gerir a “bosta”do capital de forma diferente, mas …… é sempre a “bosta” do capital.
    Ninguém, nem mesmo a ultra esquerda, questiona o capital.

    A democracia impõe mentiras que perseguem os votos (devo dizer a voz do povo) e engana o povo, fazendo-o acreditar que é soberano.

    A riqueza de uma nação é cuidar dos seus cidadãos. Hoje as crises profundas desesperam os profissionais de saúde, bombeiros, policia etc …. a lista é longa, porquê?…?
    Nada é lógico nem as pessoas que nos conduzem nem a legitimidade para reagir de pessoas como vocês e eu.
    Estamos numa submissão quase total do nosso futuro.

    Que miséria intelectual esta é a democracia. Estas pessoas são eleitas com cerca de 25% dos votos e regulam as nossas vidas. O Parlamento Europeu eleito com o mesmo número de votos está à disposição dos escriturários europeus não eleitos que decidem sobre a nossa vida diária. No meio de tudo isto, estamos perante uma grave crise de identidade, um choque de civilizações e uma crise de saúde. Se eu resumir os editoriais do dia, é também uma crise energética, financeira e económica, qualquer que seja o país. Somos um povo de ovelhas condenado ao desaparecimento, somos ignorantes e sem consciência. Um filósofo disse … Se não cuidam da política, a política cuida de vocês. Que mais posso dizer?

    Há décadas que vivemos numa farsa de democracia representativa. O engenho social que a tirania minoritária de uma oligarquia predatória aprendeu e está gradualmente a mordiscar e a corromper todo o sistema. A imprensa já não é um contra-poder, mas um servo do poder. Os corpos intermediários são corrompidos por redes de influência, incluindo a Maçonaria. Tenho visto isto à minha volta.…

    Se o Estado se comportasse como um bom pai, a produção geral beneficiaria toda a gente….mas como os nossos líderes estão à mercê das Finanças (que sabem tirar a grande parte!), são eles que beneficiam do máximo do bolo e além disso….. violar a realidade fazendo-nos acreditar que as desigualdades são culpa do Estado….. Há pessoas preguiçosas, pessoas que desistem, mas sobretudo os gananciosos que querem sempre mais, sabem como fazê-lo através dos seus serviços de lobby, alimentando os fantoches do Estado que os servem.

    Por um lado, estão a refazer a União Soviética, só que pior, com tecnologia digital e, por outro lado, estão a destruir tudo o que dá ao Estado os meios para uma política nacional eficaz. Estamos a assistir a uma política de destruição maciça como nunca vimos antes. E nunca vimos nada parecido, especialmente na área do pior.

    Estamos no início da terceira guerra mundial?

    A Intriga agora a desenrolar-se está a fomentar a Terceira Guerra Mundial.
    Depois disso, a menos que o peso da opinião pública informada a impeça, virá o cataclismo social final. O resultado será uma escravatura espiritual, mental e física absoluta.

    Se isto não fizer os compreender com quem estão a lidar, não sei mais o que dizer.

  3. Melhor que a raspadinha. Tem estilo, é sofisticado, „orgâsmico“, diriam os putos, hoje adultos, no Molero de Dinis Machado. Lê-se como instruções de serviço para ferozes portadores de killer instinct, talento, energia criminosa, enfim, gente de mérito. Seres flagelados pela filargíria têm aqui o guião dos seus sonhos. Vejo Al Capone de bibe, olhos no céu, a entoar marias imaculadas num coro de igreja.

    Corrupção a chegar co dedo. Mas como são os corruptos a fazer as leis, estes processos são declarados prácticas legais para fomento dos mercados de investimento. Qual a diferença entre a Uber e o Novo Banco? A força de crime é canalizada para produtos diferentes. Seria também interessante conhecer o „processo de entrada forçada“ de multinacionais como a Coca-Cola, a McDonalds, a Google, a Apple, e como todas essas multinacionais se chamam, „em vários países“. E pelos vistos a procissão ainda vai no adro. Quando nos for servido o „processo de entrada forçada“ das farmacêuticas no sector da Saúde, de uma Black Rock no sector financeiro e nas Seguranças Sociais, vai a Uber passar a ser um passatempo de crianças a brincar aos taxis.

Leave a Reply to Luís rebeloCancel reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.