(Carla Dórea Bartz, in Diário da Causa Operária, 11/07/2022)

Há décadas como a principal vitrine europeia de uma cultura burguesa considerada sofisticada, a prestigiosa marca francesa Festival de Cannes foi usada descaradamente pelos capitalistas como propaganda de glorificação de ideias nazistas na sua 75ª edição, realizada entre os dias 17 e 28 de maio de 2022 na ensolarada cidade mediterrânea da Côte d´Azur.
Uma encenação farsesca aconteceu logo na cerimônia de abertura, no dia 17, quando foi dado ao ator que representa o papel de presidente da Ucrânia, Vladimir Zelenski, um lugar de honra: a tela de cinema destinada aos grandes filmes mundiais do Grand Théâtre Lumière.
Durante vários minutos, o ucraniano falou o que tinha que falar e depois foi ovacionado de pé por uma plateia comovida como se estivesse no Oscar, em Los Angeles. Todos eles especialistas em produzir melodramas. O discurso em si não tem a menor importância, visto que o objetivo era somente a construção superficial e cínica da imagem de um herói de guerra que sofre por seu povo e pelo seu país invadido.
No entanto, sua glória individual não deve ser subestimada. De que outra maneira, em sua vida infeliz, este ator servil do imperialismo conseguiria tanta atenção nesse festival de cinema que é o sonho de milhares que se dedicam a produzir filmes? Com certeza, essa memorável recompensa deve pagar com lucro todos os contratos de venda de seu próprio país que ele tem assinado com a OTAN.
A encenação virou matéria nos principais jornais do mundo. A maioria limitou-se a elogiar a performance, tida como “surpresa”, e a explicitar detalhes da fala, como se de fato houvesse algo de concreto e verdadeiro naquilo que foi oferecido a todos como um produto cinematográfico que, pelas próprias exigências do festival, jamais seria selecionado para a competição oficial.
Importante ressaltar a natureza explícita da propaganda de guerra que é martelada o tempo todo e em qualquer oportunidade. Um exemplo terrível é o de outra instituição europeia cooptada por este aparato: o Memorial de Auschwitz, na Polônia, que aderiu, desde o primeiro instante da invasão, à demonização dos russos, apesar das inúmeras evidências que mostram que o Batalhão Azov e os militares ucranianos são nazistas. Nota-se o dedo do Estado de Israel e do governo dos Estados Unidos na ingerência do posicionamento político do principal museu do holocausto existente na Europa.
No caso do cinema, uma consideração deve ser feita à luz desses acontecimentos. Desde a sua criação, esta arte foi disputada pelas forças progressistas e pelas reacionárias como forma de representação. Desde o início, a burguesia se apropriou do cinema como arma para expressar seus ideais sociais. Todos os estados nacionais europeus mantiveram e mantêm agências de fomento e usam o cinema como forma de disseminar seus valores e sua cultura.
Porém, de todos os países, não é preciso ressaltar que os Estados Unidos são o mais bem sucedido. Até hoje, o cinema estadunidense, principalmente aquele ligado à indústria hollywoodiana, é o grande disseminador dos valores da burguesia. Se você quiser saber como a classe dominante estadunidense pensa, assista a um filme da Marvel ou a Top Gun: Maverick, com Tom Cruise, que foi exibido no Festival de Cannes fora da competição oficial, ou seja, uma forma de exibição-propaganda bem cara. Exatamente como a de Zelenski.
Confesso que não vi este filme, mas consigo imaginá-lo com um enredo muito parecido com o primeiro Top Gun (1986). A sua trajetória, no entanto, é singular. Finalizado há pelo menos dois anos, sua estreia nos cinemas foi sendo adiada devido à pandemia. Com o fim do isolamento social, a reabertura das salas de exibição, a temática militar e o início da guerra, os produtores encontraram o momento mais que perfeito para garantir uma grande bilheteria a algo que não teria tanta repercussão em outras condições. É impressionante como os jornais da mídia hegemônica europeia e estadunidense teceram enormes elogios ao filme. Cannes, obviamente, ajudou a criar um sentimento de unificação patriótica e de valorização da ação individual que o filme certamente vende.
Não é a primeira vez e nem será a última que o prestígio do Festival de Cannes será usado propositalmente como ferramenta de propaganda política para disfarçar as nefastas intenções imperialistas dos países da OTAN. Essa conduta é reiterada. Em 2011, por exemplo, uma séria polêmica identitária envolveu o cineasta dinamarquês Lars von Trier que, na ocasião, apresentava seu filme Melancolia.
Era a coletiva de imprensa e, em um dado momento, ao ser questionado sobre estética nazista, Lars von Trier começou a dizer um monte de bobagens e, ao final, encerrou a resposta com esta frase sarcástica: “Ok, I´m a nazi”. O que se seguiu foi um escândalo de escala global e, como o esgoto cultural pós-moderno demanda, o cancelamento do diretor, que foi declarado persona non grata pelo Festival de Cannes e um nazista por toda imprensa internacional.
Lars von Trier protestou, pediu desculpas e, em 2013, lançou uma obra-prima chamada Ninfomaníaca: uma resposta à histeria contra a liberdade de expressão, especialmente a inflamada pela pequena-burguesia que se diz de esquerda, certamente consumidora dos filmes que são exibidos em Cannes. (Escrevi longamente sobre este episódio na minha tese de doutorado intitulada Ninfomaníaca, de Lars von Trier: narrar em tempos perversos).
E assim chegamos ao Festival de Cannes de 2022 que não teve vergonha de promover o nazismo de verdade e fomentar uma estúpida propaganda de guerra imperialista.
Com esse gesto, a burguesia que controla esses símbolos culturais europeus nos obriga a misturar ficção e realidade como se fossem uma coisa só: Vladimir Zelenski tentando imitar Tom Cruise é a mais pura definição de estética nazi do século XXI. É uma expressão cultural definida como pastiche pós-moderno que apenas escancara a decadência vertiginosa desta mesma burguesia que está armada, infelizmente, com muitas e concretas bombas atómicas.
Outras leituras
- Para ler minha tese Ninfomaníaca: narrar em tempos perversos, visite este link.
- Escrevi uma reflexão sobre identitarismo e liberdade de expressão no artigo Ninfomaníaca, de Lars von Trier, e os limites da liberdade de expressão.
- Uma reflexão minha sobre o uso do Memorial de Auschwitz como propaganda de guerra está no texto A luta contra o nazismo em tempos de guerra, no Diário da Causa Operária.
Caros senhores da Estatua de Sal, vou dar-vos uma novidade que vos vai abalar o espírito, mas que alguém tem de vos dar. Continuam a agitar no ar essas acusações de “X é nazi!!”, “Y é nazi!!”, “Z é nazi!!”, mas isso já não surte efeito algum nos leitores. Vocês já banalizaram tanto o argumento ad Hitlerum (vão à Wikipedia ver o significado), que isso já não significa nada. Já ninguém se emociona com isso.
Claro, diz bem. O mal é eles andarem por aí, serem cada vez mais e já ninguém se incomodar. Os judeus quando iam para os campos de concentração, muitos deles iam a tocar bandolim julgando que iam para um local festivo. Assim está você e muitos outros.
Tanto esquerdismo doentio, leva a um desacreditamento das afirmações expostas. A direita existe e terá sempre uma justificação que, aqui, não é minimamente exposta, para se estabelecer um contraditório, uma defesa. Mas isso não interessará ao ‘escrevinhado’r, que assina a peça…
“Nazis” a dar com um pau. “Já não surte efeito”, “banalizaram”, “não significa nada”, “ninguém se emociona”.
Como eu o sinto! Olho em volta e falta-me o Adolf, o penteado, o bigodinho. Ou, ao menos, o gesto teatral, a voz histérica. Ou, ao menos, uma pequenina cruz suástica espetada no reverso da lapela para mostrar discretamente aos iniciados, escandalizados com o atrevimento dos russos em se defenderem dos avanços da Aliança Militarista; em vez de lhe agradecer a democracia e os direitos humanos. Quão ingratas essas “hordas das estepes”! (J. Goebbels).
Como eu me aborreço com essa repetição monótona de uma palavra vazia e murcha! Olho para o que resta da antiga virilidade ariana e vejo um velhinho senil americano, óculos de sol, confuso das ideias, um inglês louro esgedelhado de riso alarve na festa, ou um germano desorientado no Reichstag a adivinhar putinistas nas frinchas das portas. Só um, um único, um norueguês, erecto, nórdico, 300 mil homens num estalar de dedos. Contra as “hordas das estepes”! (J. Gebbels)
Faltam-me as imagens, é o que é! Sem os nazis dos filmes de Hollywood, na sua farda impecável e botas de cano alto, a empurrar judeus para vagões e a chacinar soviéticos, não há nazismo que resista. Digam-me o que disserem, o nazismo não existe. A não ser que me queiram convencer que um presidente senil, um presidente palhaço, um prime minister esguedelhado, um Kanzler assustado com a sua própria sombra, são agora os novos nazis. Ah…ah…ah… ah!
Os nazis de Hollywood, criados para que ficássemos com uma certa ideia arreigada do nazismo, são apenas a imagem pobre, acabada, decantada, cristalizada, do que foi. Como um esqueleto sugere a imagem da morte, sem ser a morte.
O nazismo é o terror vivido dia a dia e o medo de quem o sente. A qualidade e intensidade do terror define a qualidade e a intensidade do medo. O nazismo é o terror por excelência para impôr o medo máximo.
O terror em Cannes esteve presente na apresentação plasmada do presidente clown ucraniano e no medo da plateia de não aplaudir de pé as suas baboseiras. O terror continuou na apresentação de um filme americano financiado pelo Pentágono a sugerir confiança…. porque o medo é já omnipresente. O terror é o medo do vizinho do lado…. pode ser um denunciante!
As palavras são sempre pobres e escassas para traduzir o que sentimos. Palavras são estereotipos criados a partir de vivências velhas, colhidas na História. Para as vivências novas ainda não temos palavras novas. Tudo o que temos são farrapos de imagens, estereotipos, ideias memorizadas e para isso palavras velhas a que nos agarrámos para os poder nomear.
O nazismo é work in progress. A força do seu terror está no nosso medo. O seu ruído é o nosso silêncio. A sua expansão vive da nossa recusa. O seu efeito vive do nosso apagamento, a sua importância da nossa banalização, o seu significado do nosso encolher de ombros.
O velho terror nacionalista, militarista, racista, está de volta. Neste novo tempo, como ainda não tem formas acabadas, é difícil defini-lo, dar-lhe um nome. Dámos-lhe um nome velho, nazismo. Tão errados não estaremos.
Excelente comentário. Vou transformar em artigo!