O Ocidente, a NATO e a China

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 04/07/2022)

Um novo mundo!

O documento que saiu da cimeira da NATO de Madrid coloca a questão central da definição do “Ocidente”, que é a referência à entidade ao serviço de cujos interesse a aliança militar age; e dos valores ocidentais, aquilo que constitui o núcleo que identifica e distingue os ocidentais dos outros grandes grupos políticos, militares e económicos.

Contém uma frase decisiva, que os líderes europeus deviam esclarecer. O comunicado salienta enfaticamente: “as ambições e políticas coercitivas da República Popular da China desafiam nossos interesses, segurança e valores”.

Presume-se que os valores são os valores ocidentais. Seria importante para os cidadãos dos Estados que fazem parte da NATO, os que vão pagar as consequências destas afirmações, saber quais são para a “cúpula” da NATO representada pelo seu secretário-geral os “nossos valores” e até o que entende NATO por Ocidente.

Estes comunicados são do tipo dos textos bíblicos, exigem uma exegese, porque deliberadamente partem de afirmações que consideram dogmas, logo fora de qualquer crítica ou dúvida, ou até de confrontação com a razão. A partir de construções, nunca explicitadas, desenvolvem uma doutrina que serve para justificar interesses, que se transformam em valores.

Temos de nos entender sobre aquilo que pagamos e em última instancia nos pode obrigar a lutar e a morrer.

Originalmente a expressão Ocidente indicava a separação do Império Romano entre a parte ocidental latina e a parte oriental, dominada pelos gregos. O cisma do cristianismo de 1054 também reforçou e causou diferenças determinantes na estrutura social, nas formas dominantes de poder . Por exemplo, a Rússia e a Bulgária foram convertidas a partir de Constantinopla e faziam parte do “Oriente” (há poucos anos a Bulgária foi transferida para o Ocidente com a entrada na NATO e a Rússia foi expulsa da Europa, para onde entraram os Estados Unidos e o Canadá, antigas colónias inglesas, mas já não as antigas colónias espanholas e portuguesas da América — a NATO é uma criação anglo-saxónica!).

Existem várias definições para o Ocidente, a clássica assente na religião e cultura, uma outra que remete para as potências dominantes desde a época colonial, a da dos países da NATO durante a guerra fria, a que se juntaram os que têm suas raízes históricas e culturais ligadas à Europa, a Austrália e a Nova Zelândia, antigas colónias inglesas, mas até o Japão e a Coreia, e ainda Israel.

Durante a Guerra Fria, a expressão “Mundo Ocidental” referia de maneira muito genérica os países capitalistas desenvolvidos. Aceitando como boa esta “geografia” de mundo ocidental, chega-se à conclusão que o principal valor do “Ocidente” é o lucro, e que o modo de atuar do Ocidente agir no mundo para defender os seus interesses é o da conquista de outros territórios em todo o globo e da exploração dos seus povos e riquezas.

Podemos situar o “modo de estar” do Ocidente, nas Cruzadas, no início do segundo milénio e a sua estratégia desenvolveu-se até ao presente com a expansão e conquista de outros continentes a partir do século XV, com a colonização daí resultante do continente americano e de África, e o colonialismo fruto da revolução industrial.

O Ocidente foi o centro do poder do mundo e se há um acordo sobre a sua identidade é a de no Ocidente os valores corresponderem aos interesses e vice-versa. O catolicismo, ou cristianismo romano, criara com as cruzadas a primeira grande empresa expansionista do Ocidente e a concentração do poder com a demagógica invocação de valores de justiça e bondade, sempre violados na prática. Será a matriz de atuação do Ocidente no futuro.

O grande cisma do Ocidente, a Reforma e a Contra-Reforma resultam dos interesses de grupos nacionais se assenhorearem do poder de acumular as riquezas comuns e o poder, em confronto com o papado católico. O nacionalismo do rei Eduardo VIII, que criou a igreja anglicana e o dos príncipes alemães, que apoiaram Lutero, são um belo exemplo de conjugação de interesses e valores que caraterizam o Ocidente, o Ocidente a que se refere o comunicado da NATO e que esta estende segundo os seus interesses, invocando a ameaça dos interesses de outros que, ao longo de mais de seiscentos anos (da viagem de Marco Polo) nunca ameaçaram o Ocidente, o que já não pode ser afirmado pelo Ocidente.

Presumo que o senhor Jens Stoltenberg tem uma ideia do que o seu Ocidente é, e do que é o Ocidente para a sua NATO. Convinha que nos elucidasse.

É que este comunicado marca uma viragem decisiva no interior do Ocidente, protagonizado pela NATO, pelo menos nos cartazes: A concentração do poder numa única entidade, os Estados Unidos. A União Europeia, de novo com a Grã Bretanha (que saiu sem pagar a conta e entrou pela porta do fundo, pela mão do chefe do gangue da rua da taberna), a Austrália e a Nova Zelândia, mais Israel, são agora uma aliança global sob comando completo dos Estados Unidos. E comando completo significa uma moeda e um exército únicos, uma política de confronto com os outros espaços para manutenção de um domínio ameaçado. A NATO passou a ser um exército imperial à escala planetária para garantir acesso a matérias primas e para manter o controlo da emissão e circulação da moeda de troca internacional.

O secretário da NATO tem alguma explicação a fornecer aos “ocidentais” sobre esta nova atribuição de funções, sobre esta expansão do negócio com abertura de frentes em todos os mares e continentes?

É curioso que quanto às ameaças da China, esta não tenha retaliado quando o Ocidente chegou ao seu território e inviabilizado a Rota da Seda, cuja versão atualizada o Ocidente quer agora torpedear e destruir! Outros tempos!

O comunicado da NATO saído da cimeira de Madrid tem uma tradução: Para a cabeça do império NATO a China passou a ser o grande competidor, que ameaça os interesses dos Estados Unidos e logo os valores porque se rege.

Também fica implícito na exigência de aumento da cota dos membros da NATO até 2% para compra de armamento que estes novos sistemas de armas não se destinam a defender a Europa, nem os valores ocidentais, mas sim os interesses dos Estados Unidos no Mundo e em particular no Pacífico.

O comunicado da NATO tem ainda uma outra leitura, que os líderes europeus deviam ser chamados a explicar: os Estados Unidos, depois de terem criado condições para provocar a guerra na Ucrânia, depois de terem envolvido a Europa nela, preparam-se para envolver a Europa, em nome do Ocidente e da NATO, num conflito com a China no Oceano Pacífico?

É isto?

Por fim, quando o seráfico secretário-geral da NATO fala em ameaças ao Ocidente resultantes da invasão russa da Ucrânia está a ludibriar os cidadãos europeus, que não têm que ser instruídos em análises de situações de combate. O exército russo está desde Fevereiro a tentar conquistar uma faixa de cerca de 150 quilómetros num movimento para ocidente. A Rússia dispõe de muito limitada capacidade de projeção de forças a grande distância, tem muito poucos porta-aviões, por exemplo, que são os sistema típico de forças atacantes e dos impérios globais — caso da Inglaterra até à II Guerra Mundial.

É evidente para qualquer oficial de estado-maior, mesmo de uma pequena unidade, que as Forças Armadas russas não têm capacidade para construir e colocar em movimento um rolo compressor que passe sobre a Polónia, a Alemanha, a França, a Espanha e chegue ao Atlântico!

A política da NATO saída da cimeira de Madrid, com o pomposo título de “Novo Conceito Estratégico” assenta nesta falaciosa premissa!

O que os líderes europeus se comprometeram foi a aumentar as despesas para pagar armas dos EUA, da Austrália, da Nova Zelândia, do Japão contra a China!


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4 pensamentos sobre “O Ocidente, a NATO e a China

  1. Carlos Matos Gomes, por lapso, indica Eduardo VIII como fundador da Igreja Anglicana, querendo dizer Henrique VIII.

  2. Na verdade, os EUA perceberam o poder da bomba atómica para impor as suas narrativas democráticas ao mundo, transformando o Japão de um inimigo feroz num cordeiro manso e obediente: o aliado estratégico perfeito… Poderia ter funcionado contra a Rússia e a China, se estes não tivessem demonstrado as suas próprias forças nucleares. Lembrem-se que antes de Satan 2, teria sido preciso muito mais para subjugar estes poderes militares. Os EUA estavam um pouco atrasados com a bomba H. Assim, previram desintegrar a URSS através de um embargo económico, e estabelecer uma zona tampão sacrificial: toda a Europa de facto! que funcionou porque lutaram por eles e os enriqueceram comprando armas e agora comprando petróleo e gás. Mas a arma nuclear russa pode chegar aos EUA a partir dos seus submarinos e chegar ao seu destino em apenas alguns minutos. É uma loucura pensar que podemos subjugar o mundo pela força. Se a Nato está a ficar mais forte, acha que a Rússia e a China não o conseguem fazer? Os BRICS estão lá para contrariar o embargo económico. Podem passar sem o dólar, a tecnologia americana e a sua influência permanente no mundo. Xi Jing Pin e muitos outros “tiranos” compreenderam que o domínio geopolítico requer o domínio de uma política expansionista pacifista. E é isto que têm feito desde a sua ascensão económica onde quer que os EUA tenham semeado a morte, a ruína e o vazio. Tendo emergido da opressão, a China serve de exemplo para a modernização dos países. Isto explica a sua presença em Cuba, Nicarágua, Argentina… África, Ásia Central e Médio Oriente.

    Sim, ameaça a hegemonia americana, mas vê a Europa como um poderoso parceiro económico e não como um inimigo político. Mas se a Europa quiser ser beligerante contra ela, a China não terá outra escolha senão isolar-se dela e acelerar o comércio com outros países que, naturalmente, não têm razões para a temer. A Europa terá tudo a perder com a defesa dos interesses hegemónicos dos EUA. Começa-se a compreender isto, mas sente-se fraco militarmente contra a Rússia e a China, especialmente se os meios de comunicação social estão a fazer ouvir a demagogia americana em todos os seus canais.

    A nível geopolítico, os estados membros da UE não têm um conflito real com a porcelana. Ao contrário dos EUA, cada um deles está de um lado do oceano Pacífico. A ascensão da porcelana ao poder é um grande obstáculo às suas práticas hegemónicas. mas não os, europeus, os nossos sistemas e estruturas económicas são complementares com a porcelana. Só podemos beneficiar de uma boa relação sino-europeia. Embora ainda haja muitas pessoas pobres na China, o número total de pessoas de classe média na China excede largamente o dos EUA. é na China que se encontram os mercados para os nossos produtos.

    A guerra na Ucrânia é um “feliz acidente” para os Estados Unidos, uma vez que indirectamente trava a crescente relação económica da Europa com a China. Os americanos já não podiam suportar esta situação e estão a tentar redireccionar algumas das trocas e parcerias da UE para os EUA.

    Lembro a muita boa “gente” que mostre um pouco mais de objectividade, honestidade intelectual e profissionalismo nas suas intervenções: “Aquele que inicia uma guerra é condenável, mas ele ou aqueles que a tornam inevitável são ainda mais condenáveis e devem ser firmemente denunciados porque têm uma enorme responsabilidade”. Deve nomear aqueles que o tornaram inevitável, ou seja, os membros da NATO, especialmente da América, europa a menos que tenha medo de ser ostracizado e amordaçado pelos criminosos multi-recidivistas que nos governam no Ocidente santomenseiro e pregador. A grande maioria dos países deste planeta rejeita agora o imperialismo bélico deste Ocidente que, sob o pretexto de ajudar os opositores, esmaga sob as bombas, pilha e despoja nações soberanas por razões não reconhecidas, mas acima de tudo não declaradas, tendo estes crimes contra a humanidade causado centenas de milhares de mortos, sacrificado gerações e inúmeras destruições ao longo das últimas três décadas.

    Não foi Putin quem quis testar a NATO, foi a Ucrânia, sob indicação dos Estados Unidos que não pôde aceitar a chegada de Nord Stream 2 em função, que anunciou a sua intenção de pedir para entrar na NATO, o que era inaceitável para a Rússia, Putin até nem sequer teria reagido às más práticas cometidas em Donbass. Pelo contrário, conhecemos os agressores. Eles tiveram azar, finalmente o sul da Ucrânia será um despojo de guerra para a Rússia, não sei como os americanos não se engasgarão com isso. Quanto à divisão, já foi feita, os americanos estão a arrastar as democracias para um tumulto do qual só conseguirão escapar através do fogo das guerras. Dito de outra forma, é a queda do Império Americano e as suas consequências.

    Os objectivos da Nato, tal como declarados em Espanha, são a Rússia, o terrorismo e a China. Mas a realidade é bem diferente, os americanos querem enfraquecer a europa e pôr fim ao projecto de um exército europeu, eles ocuparão militarmente a Europa. Os americanos querem uma guerra de atrito na Ucrânia que dure ao longo do tempo para pôr a Rússia de joelhos, fazem declarações à integridade territorial da Ucrânia, esperam que as repúblicas russas se levantem e abandonem a federação, e assim balcanizar a Rússia e a Ucrânia, e finalmente vassalizar toda a Europa. Uma vez feito isto, para atacar a grande peça que é a China. A europa não tem escolha, já não é independente, e mesmo que abandone a NATO, já perdeu toda a sua influência no mundo e já não é credível.

  3. Como sempre é um prazer ler os seus textos.
    Se me permite uma pequena correção: o rei inglês foi Henrique VIII e não Eduardo.

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