O trabalho do sexo

(António Guerreiro, in Público, 17/06/2022)

António Guerreiro

O sexo e o estado do tempo são os assuntos que mais tagarelice produzem. Michel Foucault chegou mesmo a considerar que a especificidade da época é a de uma multiplicação da conversa sobre a sexualidade. Quando a conversa sobre sexo chega ao capítulo da prostituição, instala-se um embaraço, um constrangimento.

Certamente embaraçado e constrangido, o Parlamento debateu a regulamentação da prostituição. Desconheço os termos do debate e nem teria dado por ele se não tivesse lido um texto interessante e bem informado sobre o assunto de Daniel Oliveira, no Expresso da semana passada. O artigo chama-se “Trabalhadoras e trabalhadores do sexo, uni-vos!”, um título enfático e de grandes evocações, que remete para uma concepção bem antiga que o artigo, felizmente, não corrobora: a de um laço consubstancial entre prostituição e luta de classes. Segundo esse entendimento, devia-se imputar à organização das condições de trabalho e de produção pela classe dominante não apenas a situação das prostitutas, mas também da própria prostituição. Decorre daqui que numa sociedade sem classes a mais velha profissão do mundo desapareceria por si própria.

Não foi inspirado no Manifesto Comunista que surgiu em França, em 2009, um pioneiro Sindicato do Trabalho Sexual (STRASS, nome que evoca a palavra alemã para “rua”, Straße), uma continuidade da associação “As Putas”, fundada por militantes vindas do Act Up, bem treinadas nas acções de agit-prop. A palavra “puta” é usada com gáudio por Morgane Merteuil, uma rapariga parisiense, com formação universitária (um master em literatura), que escolheu como pseudónimo o nome de uma proto-feminista, a libertina Madame de Merteuil do romance de Laclos, As Ligações Perigosas. Morgane Merteuil , autora do livro Libérez le féminisme (2012), aplicou-se a denunciar, enquanto foi secretária-geral e porta-voz do sindicato, de 2011 a 2016, a “putofobia” e o abolicionismo, isto é, a posição que consiste em querer abolir a prostituição com o argumento de que ela não é desejável para as pessoas que a praticam e, consequentemente, a emancipação dessas pessoas só seria alcançada sob a condição de elas se emanciparem da prostituição.

A reivindicação da prostituição como “trabalho sexual” (e, portanto, requerendo uma defesa sindical organizada) não é no entanto uma originalidade do STRASS. Vem dos Estados Unidos e, numa entrevista, Morgane Merteuil traça-lhe a origem: em 1978, Carol Leigh, prostituta e militante feminista americana, forjou a noção de sex work. Este neologismo, conta Morgane Merteuil, utilizou-o Carol Leigh pela primeira vez por ocasião de uma conferência feminista em que ela devia falar sobre “indústria de exploração do sexo”. Considerando que era um título desprestigiante das trabalhadoras e dos trabalhadores do sexo, propôs que falaria da “indústria do trabalho do sexo”. O neologismo rompia com o modo tradicional de entender a prostituição, enquanto condição ligada a características individuais e morais. E assim as reivindicações de ordem laboral, servidas por este novo conceito, tornaram-se uma luta importante.

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Mas por mais que se reduza a prostituição a um trabalho, há sempre um resto muito importante que permanece irredutível, impossível de eliminar. Laurent de Sutter, um filósofo belga, dandy, provocador, praticante de uma pop-filosofia muito inteligente, desenvolveu essa “questão” num livro intitulado Métaphysique de la putain (2012). Neste seu breve tratado sobre a “metafísica da puta” — a puta como revelador da “verdade” —, Laurent de Sutter usa um corpus que vai da Lulu, de A Caixa de Pandora, de Wedkind (que Alban Berg adaptou para uma ópera), passando pela “femme coquette” de Godard (e todas as putas do cinema de Godard) e pela visita que Bloom, no Ulisses de Joyce, faz ao bordel de Mrs. Cohen. Não se esquece também Laurent de Sutter de citar Baudelaire, em Fusées, quando pergunta “O que é a arte?” e responde a seguir: “Prostituição”.

Sim, para Baudelaire o artista da vida moderna era aquele que acedia à condição de puta. Não era puta porque se vendia, vendia-se porque era puta.

O nosso João César Monteiro levou o baudelairiano preceito às últimas consequências e proclamou numa célebre cena de Vai e Vem, frente à Assembleia da República, depois de explicar a uma amiga de longa data a “intrincada tecnologia de ponta” do “brochim”: “A velha puta pode enfim sorrir”. E sobe a escadaria da Assembleia.



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23 pensamentos sobre “O trabalho do sexo

  1. Tenho uma amiga com metade da minha idade que se prostitui. Nada contra, nem ela faz de vítima da sociedade. Escolheu esta profissão, tem um corpo e uma cara muito atraentes, tinha tudo para ser uma escort de luxo e ganhar bom dinheiro ( aliás, já foi ). O problema dela é ser muito ansiosa e descontrolada, principalmente quando bebe. E, quando começa a beber, já não é capaz de parar. Já se descontrolou à minha frente e só o respeito e amizade que tenho por ela me impediram de lhe dar duas estaladas. Já teve uma data de problemas, foi agredida várias, foi roubada e foi presa. Outro dia, na Alemanha, cortaram-lhe a cara. Ela diz que a culpa é dos outros, mas já lhe tentei fazer ver que não é possível que haja uma conspiração do “mundo mau” para lhe fazer mal. Mas ela, quando eu lhe faço ver que o descontrolo não é aceitável diz que “a estou a julgar”. Não a julgo nada, ela até já me contou episódios com clientes. Infelizmente, sinto que vai acabar mal e é uma pena, mas nada posso fazer além de a tentar “acalmar”.

  2. É trabalho a actividade de uma pessoa na caixa de um supermercado? Por irrelevante que seja, há ali um skill e a satisfação de uma necessidade. Sendo a “prostituição” a profissão mais velha do mundo, há ali uma capacidade (vendida) e a satisfação (comprada) de uma necessidade. As aspas na prostituição servem para chamar a atenção para um abuso. Numa sociedade de classes, qualquer assalariado se prostitui, tem de vender a outrém a sua força de trabalho para viver. Uma puta faz o seu trabalho como qualquer outro necessitado, apenas recorrendo a outros skills e a outros orgãos do corpo humano. O trabalho sexual está impregnado de um preconceito proveniente da cultura repressiva própria de uma sociedade de classes. É precisamente o aspecto repressivo que o torna tão atraente para as diferentes formas de cultura. Ora a cultura burguesa, com as suas hipocrisias patológicas, está sempre a ver onde pode introduzir tabus e diabolizações para desse modo atingir um maior valor acrescentado. Uma sociedade livre é uma sociedade de homens e mulheres satisfeitos. Também com a sua sexualidade.

    • Não posso manifestar a minha concordância com este comentário, por mais bem intencionado que possa ser.

      Não encaro a problemática do trabalho sexual como um tabu ou uma desmoralização que precisa de ser corrigida pela via da nossa mentalidade progressista.

      Trabalho sexual é degradante, ponto final. É um ataque e um insulto à dignidade de qualquer ser humano – salvo se for algo expressamente procurado por alguém, mas sejamos honestos: ninguém vai à procura de se prostituir a não ser que não tenha mais nenhuma alternativa na vida.

      De facto, a prostituição é um sintoma da sociedade capitalista que tão bem despreza e que indica apenas que, mediante uma pobreza extrema ou falta de condições de trabalho ou dignidade de emprego, o melhor a fazer é vender o corpo.

      Desculpe, mas isto para mim é uma pura aberração, comparável apenas ao desmembramento de um país vibrante como a Líbia para o tornar num entreposto de tráfico humano e de exploração de mulheres, entre outros.

      Trabalhar numa caixa de supermercado, por mais monótono ou repetitivo que seja, ou ainda que resulte num embrutecimento e bestialização de um ser humano, acaba por ser menos degradante do que trabalho sexual.

      Trabalho sexual é violação consentida. É exploração de alguém que se deixa explorar porque não tem outras perspectivas na vida. E é autorizar o prosseguimento da sociedade nos trâmites que o capitalismo impõe que se resumem assim: se queres trabalhar, trabalhas nas minhas condições. Se não queres trabalhar nas minhas condições, tem duas opções: ou mortes à fome e deixas a tua família morrer, ou vendes o teu corpo.

      Isto, para mim, é extorsão.

      Assim sendo, não é a branquear a prostituição, ou até aquilo que é o negócio pornográfico, que vamos fazer avançar ou progredir a sociedade. E pensar assim não é um tabu, de forma alguma. É o reconhecimento de que a dignidade humana pauta-se por uma série de valores e que, sem querer estigmatizar seja quem for que se veja forçado a tal, o trabalho sexual não tem um laivo que seja de dignidade.

      Para fazermos avançar a sociedade verdadeiramente, deveria ser criada a consciência de que algo como a prostituição até prejudica aqueles que a procuram, uma vez que deturpa completamente a noção de relacionamento sexual natural entre seres humanos, e rebaixa este ao ponto de uma mera transação comercial estéril, dando, assim, importância e uma relevância exacerbada ao mesmo sistema que queremos criticar (capitalismo) quando esse sistema transforma um trabalho ordinário como caixa de supermercado numa exploração e degradação de valores humanos básicos.

      Prostituição pode ser antiga como a Sé de Braga, mas não a torna mais humanista e respeitadora da dignidade humana daqueles que se vêem forçados a empregar a sua energia criativa dessa forma, resultado de um sistema anti-humano.

      Crie uma sociedade decente, onde se respeitem verdadeiramente e cabalmente os direitos individuais de cada ser humano e veja se há alguém que quer vender o seu corpo.

      Se, depois disto tudo, ainda não estiver devidamente convencido, pense no seguinte: acha correto que uma pessoa mate, roube, explore ou engane pessoas de maneira a ganhar dinheiro que o deixa numa posição confortável na vida ? O senhor gostaria de trabalhar, e matar-se física e psicologicamente no processo, só para ter uns quantos milhares de euros e poder comprar seja o que for de forma despreocupada ?

      Então porquê achar que vender o seu corpo porque há procura e necessidade e oferta de um serviço no qual se lucra bastante é algo normal ou natural ?

      Se critica o capitalismo, critica a prostituição, porque capitalismo e prostituição são uma e a mesma coisa e não é a reconhecer a prostituição como um trabalho digno que se vai ultrapassar o capitalismo ou criar uma sociedade mais consciente.

      Isto até acaba por ser uma apologia do capitalismo em si e um reconhecimento do meritório que é a indignidade de todos os sistemas capitalistas que forçam as pessoas a este tipo de atos ou situações, porque capitalismo não permite melhor do que condições precárias de trabalho que levam as pessoas à prostituição…

      Já para não dizer que afirmar que, por uma situação (caixa de supermercado) ser degradante e equivalente a prostituição, agora o trabalho sexual é algo normal!

      Então combate-se degradação com mais degradação ??

      Isso, para mim, é propaganda de Liberalismo Americano que tem a função de desviar a atenção do mais importante: capitalismo é degradação e resulta em prostituição.

    • Já para não dizer que a satisfação sexual não se encontra na prostituição, mas em relações humanas íntegras e genuínas…

  3. Em vez de se discutirem ou não os méritos de trabalho sexual, que tal discutir-se a extradição de Assange que foi aprovada por Priti Patel, Secretária de Estado para os Assuntos Internos do Reino Unido ? Hum ?

    Em vez de discutirmos a sordidez de uma degradação discutem-se os méritos de uma outra degradação, que mais não são do que o resultado de um sistema ignominioso ?

    Já agora, já que somos tão liberais, porque não discutir o facto da prostituição andar dominada pelo género feminino e não haver um mercado suficientemente abrangente para empregados do género masculino ?

    Será que a propaganda é tal que já nos rebaixamos a isto ? E é que nem tem nada a ver com moralidade, mas com o facto de nenhum comentador que aqui anda ter vontade de dar o rabo por uns quantos euros à hora!!!

    Desculpem-me a linguagem, mas isto é um absurdo.

    Como é que se criticam condições de trabalho de caixa de supermercado, mas designa-se a prostituição como um trabalho, decente, normal e que não constitui uma ofensa a qualquer um de nós que nem imagina o que é ter de oferecer o seu corpo para viver ?

    É que, caso não tenham reparado, dar aulas, ser lixeiro, trabalhar num escritório, ser bancário, ser empregado de mesa, jardineiro, agricultor ou técnico de informática não tem nada a ver com ter que dar aquilo que vos é mais caro e privado para satisfazer as necessidades de estranhos que, nuns casos, não têm a capacidade de procurar relações normais (ou não foram ensinados e isso é culpa do sistema social que estigmatiza as pessoas quanto à sua aparência ou forma de ser e não as ensina a relacionarem-se com humanos e a serem confiantes em quem são), ou são uns tarados, ou são uns ricalhaços da Foz ou de Cascais que têm dinheiro para gastar e, portanto, compram um mulher para ela lhes dar a satisfação de se sentirem muito machos durante umas horas!!!!

    Agora, ser contra este tipo de degradação cultural, civilizacional ou social é tratar a prostituição como um tabu ou uma desmoralização ???

    Aqui, chamem-me burguês à vontade, mas não alinho com ninguém.

    • Como a Priti Patel é uma puta, está-se a discutir uma “trabalhadora” do sexo: fode o Assange, fode os imigrantes, só não se fode é a ela ! 🙁

  4. É muito romântico dizer que a prostituição é um trabalho normal como qualquer outro, onde se usam apenas outros órgãos, mas ninguém aqui se prostitui – mesmo que trabalhem num escritório ou noutro espaço com condições desumanas -, portanto, para quê falar de coisas de que nenhum de nós tem noção ?

    Sim, eu também não a tenho, mas nenhum de nós alguma vez pensou até agora: “sabem que mais? Vou prostituir-me! Ser empregado num sistema capitalista já é degradante, portanto vou levar no c* para ganhar o meu salário!”

    Francamente. Isto não é ser-se avançado.

    E, mesmo trabalhando em condições desumanas ou injustas, nunca consideraram a prostituição, pois não ??

    Alguma vez perguntaram a um ou uma caixa de supermercado: “olha, trabalhas das 7h até às 17h todos os dias por 900 euros por mês. Já pensaste ir para a prostituição ? Pagam bem!”

    Isto é estigmatizar as prostitutas ? Isto é criar um tabu ?

    Isto é ganhar juízo!

    • O que não significa retirar a liberdade das pessoas fazerem o que bem lhes apetece ou estigmatizá-las porque o fazem.

      Mas significa, isso sim, que é preciso compreender como é que as coisas surgem, porque é que elas surgem e quem é que fez com que elas surgissem em primeiro lugar.

      Quando formos capazes de criar uma sociedade verdadeiramente fundada no princípio de Igualdade (equidade) e onde haja um verdadeiro respeito pelo ser humano que está ao nosso lado, pela sua aparência, pela sua personalidade, pelos seus gostos, opiniões, pelas suas escolhas pessoais, pelo seu valor enquanto trabalhador e enquanto alguém que merece as mesmas condições de desenvolvimento intelectual, pessoal e humano de qualquer outra pessoa, então aí poderemos ver se, no fim de contas, a prostituição vai continuar a ser uma necessidade que precise de ser colmatada com a oferta de serviços, assim como se é algo perfeitamente normal ou não e que existe independentemente das condições degradantes a que a inexistência de sistemas sociais força as pessoas…

      Ai, não me venham falar da Holanda, que é um verdadeiro sistema liberal, em que as pessoas nem sequer têm poupanças e passam a vida a fazer empréstimos para pagarem a sua vida de consumo excessivo. É um país muito liberal, mas o liberalismo nunca representou o bem, a liberdade ou o respeito por direitos humanos.

      Se assim fosse, porque é que não votamos todos na Iniciativa Liberal nas próximas eleições ?

  5. Já para não falar na questão das acompanhantes de luxo que, se queremos ser verdadeiramente consistentes com aquilo que apregoamos, são o perfeito e inequívoco sinal e símbolo de uma sociedade machista que classifica as mulheres como sendo objetos para serem consumidos por homens que têm o dinheiro e a possibilidade de comprar os serviços de alguém que é explorado para satisfazer os desejos e taras sexuais de um corretor de bolsa consultor financeiro que não sabe relacionar-se com mulheres de outra forma que não seja COMPRANDO O SEU AFETO.

    Isto é normal ? Depois vimos falar de capitalismo e sociedades patriarciais e tudo e mais alguma coisa…

    Será que estamos loucos ao ponto de não nos apercebermos das contradições em que nos metemos quando queremos ser demasiado virtusosos e probos ao ponto de dizermos que uma pessoa tem o direito de vender o corpo para satisfazer as necessidades sexuais dos mesmos “PaTrIaRcAs” que criticamos nas costas e em manifestações LGBT ??

    Tem o direito de vender o corpo ? Tem, mas ninguém no seu perfeito juízo, e que esteja integrado numa sociedade decente e que respeite valores humanos básicos, vai fazer uma coisa dessas.

    Mas continuem a falar da Liberdade de fazer isto e aquilo.

    Lembrem-se: quando vos falam de liberdade é para vos manipular a aceitar situações degradantes que são covenientes aos poderes instituídos. É a mesma justificação empregue para a Liberalização total da economia, que resulta em condições precárias de trabalho, que resulta em extorsão dos trabalhadores, que resulta em pessoas que vão prostituir-se como forma de ganharem o seu pão ao fim do mês.

    Piotr Kropotkine, no seu livro “A Moral Anarquista”, apresenta brevemente a sua conceção de moral, contrária à moral religiosa, jurídica e estatal/governamental que integra cada sociedade humana.

    Ele defende que os seres humanos, enquanto organismos biológicos semelhantes a formigas, a aves, a pardais e outros, possuem um sentimento moral inato do qual instituições de poder se aproveitam de forma a controlar e manipular a opinião pública e de forma a fazer alinhar essa opinião com os interesses dos senhores que governam as sociedades em cada época histórica.

    Este sentimento moral baseia-se no princípio de “não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti” e defende que este sentimento encontra o seu congénere em manifestações de apoio social no reino animal que acabam por ser o principal impulsionador que determina a sobrevivência de uma espécie.

    Não é a lutar uns com os outros que a espécie evolui. Obivamente que, dessa forma, a espécie aniquilava-se. Ele observou até que, em qualquer das espécies animais supramencionadas, aqueles que se aproveitavam dos recursos em benefício próprio acabavam por ser excluídos da comunidade ou tratados de forma pior que qualquer outra espécie inimiga.

    Este sentimento existe na espécie humana e, conclui ele, o benefício próprio acaba por estar intimamente ligado com o benefício da comunidade e da espécie que se integra. Quando vemos uma criança a ser espancada por um adulto, vamos imediatamente em seu auxílio. Quando sabemos que alguém foi assassinado por um Jack the Ripper, sentimos um grande desprezo por essa pessoa e seríamos capazes de a matar para defender a espécie e a comunidade.

    Da mesma forma, qualquer um de nós, em situações de grande dificuldade, estaria mais do que pronto a abdicar de certos privilégios em prol de alguém mais frágil.

    Não quer dizer que este sentimento funcione a toda a hora e que não haja maldade no mundo. Significa apenas que essa capacidade está latente no nosso íntimo como resultado de milhões de anos de atos de antepassados que concretizavam atos de auxílio e apoio às suas comunidades que ficaram conservados na nossa identidade e consciência biológica e histórica. Mas a escolha relativamente à forma como procedemos está sempre ao nosso alcance mediante a já mencionada máxima.

    Agora, tendo em conta a máxima “não vou agir com os outros de uma forma que eu não gostasse que os outros agissem comigo”, ninguém no seu perfeito juízo diz que a prostituição é algo normal ou aceitável. Eu não me imagino a prostituir-me de forma alguma, portanto não o imagino para mais ninguém e não o desejo para mais ninguém deste mundo.

    Não significa que vá interferir de maneira a obstar que alguém faça o que bem lhe apetece, da mesma forma que não considero essa pessoa mais ou menos moral. Mas sei que, se alguma coisa é indigna para mim e uma afronta e um ultraje ao meu valor enquanto ser humano, então também o deve ser para qualquer outra pessoa, porque eu não sou diferente de ninguém que habite este planeta.

    Se eu não quero estar numa posição em que seja forçado a virar-me para a prostituição que, em si, é um sintoma de degradação social, também não quero que outros estejam nessa posição. Contudo, volto a repetir, não impeço ou julgo ninguém que decida fazer isso de livre vontade.

  6. António Guerreiro (AG) fala – e muito bem – de embaraço e constrangimento quando se fala da prostituição. As protagonistas do trabalho sexual não sentirão esse embaraço e constrangimento. Ninguém a não ser elas, no fim de contas trata-se da sua vida, corpo e interesses, poderá pôr melhor o problema concreto e vivo em cima da mesa. Sem a alusão cábula e patética ao “uni-vos!” marxista dos grandes especialistas do costume e aos falsos moralismos dos consumidores dos valores hipócritas da sociedade burguesa.
    As putas e o seu trabalho são uma realidade social tão concreta como as caixas de supermercado e seu trabalho o são. Só as putas podem confrontar os governantes com as condições do seu trabalho, exigir regulamentação, acompanhamento e protecção. Para seu bem e dos seus clientes. AG fala de „um resto muito importante que permanece irredutível, impossível de eliminar.“ Todos os tabus e diabolizações têm um resto muito importante. É desse resíduo, sedimento, uma essência, que se extraem as grandes obras de arte. A História está cheia de grandes putas, a Bíblia está cheia delas, elas são o sal da Terra.

    • Absolutamente de acordo.

      A única coisa que pretendi evidenciar é que o trabalho enquanto prostituta tem causas e, se queremos designar-nos como pessoas verdadeiramente progressistas e que respeitam valores humanos, não podemos considerar isso como algo tão normal como uma caixa de supermercado ou lixeiro. Eu não considero, pelo menos.

      Aceito plenamente que discorde da minha perspectiva.

      Se quiserem regulamentar a prostituição – vindo essa iniciativa das trabalhadoras da área como indica -, e se quiserem melhorar as condições de vida, estão mais do que à vontade. Mas não venham criticar as patriarquias ou o machismo na sociedade quando a prostituição é a encarnação mais bruta e evidente dessa patriarquia ou machismo, como muito bem diz, há milénios.

      E não é por existirem prostitutas na Bíblia que torna a posição em que estão mais agradável ou humanista, só porque fazem o que lhes apetece com o seu corpo.

      Isso é um apelo à autoridade que não serve de argumento para justificar a criação de uma “indústria” dessas. Só porque existem essas coisas na Bíblia, não significa que agora eu vá cortar a mão de quem me roube, ou que vá apedrejar uma mulher que me foi “infiel”, não é ? Da mesma forma, não vou condenar a homossexualidade porque ela é considerada como pecado na Bíblia. Da mesma forma, o sexo (e, olhe, o pensamento) de todo o tipo é considerado pecado.

      A bíblia não é boa base para uma discussão racional sobre qualquer tema, e a moral religiosa é tão problemática…

      Os religiosos (clérigos e sociedade secular) gostam muito dos pobres, mas só cuidam deles com caridade, ao invés de determinarem o porquê e procurarem acabar com a pobreza. Mas passam a vida condoídos com os pobres.

      Da mesma forma, também andamos comovidos com as prostitutas e as mulheres que são heroínas e figuras históricas que se prostituíam. Porquê ?

      Reitero que, na minha humilde opinião, seria bom averiguar (quem sabe até empiricamente através de estudos científicos realizados por pessoas idóneas) o porquê da necessidade da prostituição nas sociedades modernas (ou seja, o porquê de homens ou outras pessoas necessitarem de recorrer à prostituição), o porquê das mulheres se sujeitarem a isso, as razões que as conduziram a essa área, de que forma é que a prostituição tem maior relevância em sociedades mais ou menos avançadas dum ponto de vista de direitos humanos, direitos de trabalho, boas condições e qualidade de vida, desenvolvimento económico, intelectual, cultural, assim como o grau de (in)tolerância na sociedade contra as mulheres, etc.

      A questão é que tal estudo não deveria ser entendido como uma forma de considerar a prostituição uma doença ou seja o que for. Que ridículo. Simplesmente, compreender o porquê da sua existência. E, para se encetar tal estudo, não é preciso que a iniciativa venha dessas trabalhadoras, embora fosse necessária a sua autorização para as entrevistar e tudo o mais.

      De resto, continuem a regulamentar a prostituição sem qualquer tipo de problema da minha parte. Não tenho nada que me manifestar nesse sentido, nem a favor, nem contra essa, ou o tipo ou as condições da regulação. Noto apenas que isso, de acordo com o seu raciocínio inicial, é o mesmo que regular capitalismo.

      Agora, eu procuro ser consistente no que apregoo.

      Se critico machismo e a objetificação das mulheres na sociedade contemporânea, condeno a prostituição como a instituição degradante e abjecta que é. Não as pessoas que, por uma ou outra razão, e, preferencialmente, sem serem coagidas a tal, tomam parte nela. O que é bem diferente.

      Seria o mesmo que criticar um caixa de supermercado que se sujeita a trabalhar para um capitalista.

      De resto, não andamos a dizer que é o direito das pessoas cometerem suícido sem mais nem menos.

      Antes de dizer mais alguma coisa, deixe-me acrescentar o seguinte: não estou a tecer qualquer tipo de juízo de valor em relação à prostituição (no sentido de certo ou errado), nem quanto ao mérito de ser exercida ou não.

      E, por mais que certo tipo de debate relativo às condições de trabalho – e a medidas concretas com vista a melhorar as condições das trabalhadoras – deva ser iniciado pelas mesmas, o debate na sociedade, por outro lado, acerca da instituição “prostituição” deve vigorar livremente, mesmo que incialmente não procure interferir diretamente com aquilo que é a instituição.

      Até a palavra instituição é uma palavra curiosa: significa algo que está instituído, estabelecido, mas porquê ?

      Quanto ao suicídio: uma pessoa tem o direito de se matar, mas nós fazemos tudo para que isso não aconteça. Porquê ? E esta situação distingue-se, por exemplo, da questão da eutanásia (que eu apoio sem hesitações), mas o suicídio também é motivado por um sofrimento, que, nalguns casos, não é possível atenuar.

      Nesse sentido, porquê impedir as pessoas de se suicidarem ? O que eu não acho que se equipare de forma alguma com a eutanásia, uma vez que esta é aplicada em situações de doenças crónicas ou estados terminais em que a morte é uma mercê, ao passo que tal nem sempre é garantido em casos clínicos de depressão – no sentido em que pode haver cura (não a questão da mercê).

      Nesse sentido, porquê a liberdade num caso e não no outro ? (Agora regresso à questão prostituição/suicídio.)

      A prostituição, para mim, é algo tão estranho como o suicídio. Claro que, numa situação particular, uma pessoa é impelida a cometê-lo, mas procuramos sempre analisar as causas e procurar atenuar os efeitos para qual tal não se passe.

      Então porque não avaliar as causas da prostituição de maneira a atenuar os seus efeitos, ainda por cima tendo em consideração o facto de que existe há milhares de anos!

      Creio que, se vamos discutir algo, mais vale discuti-lo e analisá-lo com rigor, desde o princípio das causas até ao último dos efeitos e determinar se há alguma coisa na qual a sociedade como um todo deva intervir ou não.

      E nem sequer falo de determinar se a prostituição deva ser considerada como uma patologia (o que é um absurdo), mas alguma coisa tem de existir por detrás desta atividade que faz com que possamos afirmar que ela pertence à espécie humana como algo instituído nos nossos hábitos desde sempre.

      Se assim não for, estamos automaticamente a criar um tabu e a não discutir verdadeiramente a prostituição como algo que deve ser analisado para determinar se há algo que deva ser corrigido (ou não, e ficamos com essa informação), e não ficarmos apenas ao nível do melhorar das condições de trabalho.

      O que, em si, parece-me francamente superficial se não for empreendido um esforço para se compreender o que leva a tal. Se nos focamos apenas na melhoria das condições de trabalho e não compreendemos porque é que há necessidade de se recorrer à prostituição em primeiro lugar, é negligente da nossa parte.

      Cumprimentos!

      • Tenho que dizer algo extremamente importante: não advogo de forma alguma que uma pessoa recorra ao suicídio seja em que circunstâncias for.

        Creio precisamente o contrário, e ninguém deve entender nada do que aqui escrevi como um incitamento a seja o que for.

        Havendo alguma situação de maior fragilidade ou abatimento, é imperativo procurar o apoio de ajuda profissional.

        Infelizmente, tenho uma tendência de me perder em discursos pródigos e a discorrer sobre coisas relativamente abstratas e em grandes estruturas argumentativas que me levam a falar de tudo e mais alguma coisa!

        Enfim, a vida é bela e preciosa e não afrouxa nunca!

      • Não lamentes, ó Nize, o teu estado;
        Puta tem sido muita gente boa;
        Putissimas fidalgas tem Lisboa,
        Milhões de vezes putas teem reinado:

        Dido foi puta, e puta d’um soldado;
        Cleopatra por puta alcança a c’roa;
        Tu, Lucrecia, com toda a tua proa,

        O teu conno não passa por honrado:

        Essa da Russia imperatriz famosa,
        Que inda ha pouco morreu (diz a Gazeta)
        Entre mil porras expirou vaidosa:

        Todas no mundo dão a sua greta:
        Não fiques pois, ó Nize, duvidosa
        Que isso de virgo e honra é tudo peta.

        Bocage

  7. Sr. José Lúcio,

    Compreendo perfeitamente o que Bocage diz nesse poema, mas não percebi com que intenção é que o senhor o referiu.

    Independentemente disso, eu farei um comentário acerca desse poema.

    Repare que Bocage, antes de mais, viveu no séc. XVIII – isto já diz muito.

    Por um lado, aquilo que está bem explícito no poema é uma tentativa da parte do autor de defender as “prostitutas” em oposição a mulheres de classes sociais elevadas que, em muitos casos, se serviram da sua aparência física ou qualidades de Circe (referência a Camões) – encantatórias e de sedução, portanto – para alcançarem ou manterem essas posições elevadas.

    Por outro lado, eu nunca falei de “virgo e honra”, mas sim de direitos e dignidade humana – o que é diferente, porque uma coisa é fingir que somos todos puros por esta ou aquela razão e outra é defender a nossa dignidade intrínseca e inextricável da nossa condição enquanto seres humanos.

    Ora, esta situação exposta pelo nosso Bocage tem algo a ver com as prostitutas contemporâneas ? Pessoas que, em muitos casos, são vítimas de tráfico humano, que são forçadas a trabalhar na indústria pornográfica ou entraram na prostituição e no trabalho sexual por serem vítimas de abuso sexual que alterou a clareza psicológica da pessoa que se propõe a dedicar-se a este tipo de indústria e profissão ?

    Repare que eu refiro nalguns comentários que não tenho problema com a prostituição, desde que seja uma escolha da própria pessoa, sem que tenha sido coagida a tal seja por que circunstâncias forem!

    Tem alguma coisa a ver com o poema de Bocage no qual ele procura que as pessoas não estigmatizem as mulheres que pertencem a classes sociais mais baixas e que se prostituem em detrimento das “misses” que só estão nas posições em que estão porque precisamente foram promíscuas ?

    Agora, regulação, direitos das trabalhadoras e tudo o resto, é uma conversa diferente à qual eu não me oponho de forma alguma.

    Mas, considerando ainda a senhora Morgane Meurteil mencionada no artigo, basear a questão da prostituição na experiência de uma ex-aluna de literatura que dá mais a impressão de se manifestar, não no sentido de defender verdadeiramente as mulheres que trabalham no ramo, mas as suas próprias ideias que parecem ter como intuito provar alguma coisa contra a “Burguesia”, os “patriarcas” e ainda outros slogans ou soundbites que são tão correntes na atualidade, não me parece uma boa forma de conduzir qualquer debate seja sobre o que for.

    De facto, pode ser prostituta e eu posso desconhecer muita coisa acerca dela (até pode incluir-se nas situações de pessoas que foram abusadas ou tiveram experiências inconvenientes, resultando na necessidade de se prostituir e colmatar vazios psicológicos – deixo um vídeo: https://m.youtube.com/watch?v=iTh-Crp1aQs – ou até ter tomado uma decisão consciente, agir na plena posse das duas faculdades, sem ser influenciada seja pelo que for e estar a pugnar por direitos de trabalho, contra os quais eu não tenho nada), mas isso é razão para se dizer que a prostituição é toda baseada na experiência da senhora Morgane ?

    Ou que a prostituição deve ser vista apenas de acordo com a visão dessa senhora ?

    Se eu estivesse a manifestar-me a favor da abolição da prostituição, seria uma coisa.

    Mas não estou. Muito pelo contrário. Porque acabar com a prostituição não acaba com a objetificação da mulher, com a exploração dela, com a proliferação de situações de abusos sexuais na sociedade, entre muitas outras situações.

    É tudo o que tenho a dizer.

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