(António Guerreiro, in Público, 17/06/2022)

O sexo e o estado do tempo são os assuntos que mais tagarelice produzem. Michel Foucault chegou mesmo a considerar que a especificidade da época é a de uma multiplicação da conversa sobre a sexualidade. Quando a conversa sobre sexo chega ao capítulo da prostituição, instala-se um embaraço, um constrangimento.
Certamente embaraçado e constrangido, o Parlamento debateu a regulamentação da prostituição. Desconheço os termos do debate e nem teria dado por ele se não tivesse lido um texto interessante e bem informado sobre o assunto de Daniel Oliveira, no Expresso da semana passada. O artigo chama-se “Trabalhadoras e trabalhadores do sexo, uni-vos!”, um título enfático e de grandes evocações, que remete para uma concepção bem antiga que o artigo, felizmente, não corrobora: a de um laço consubstancial entre prostituição e luta de classes. Segundo esse entendimento, devia-se imputar à organização das condições de trabalho e de produção pela classe dominante não apenas a situação das prostitutas, mas também da própria prostituição. Decorre daqui que numa sociedade sem classes a mais velha profissão do mundo desapareceria por si própria.
Não foi inspirado no Manifesto Comunista que surgiu em França, em 2009, um pioneiro Sindicato do Trabalho Sexual (STRASS, nome que evoca a palavra alemã para “rua”, Straße), uma continuidade da associação “As Putas”, fundada por militantes vindas do Act Up, bem treinadas nas acções de agit-prop. A palavra “puta” é usada com gáudio por Morgane Merteuil, uma rapariga parisiense, com formação universitária (um master em literatura), que escolheu como pseudónimo o nome de uma proto-feminista, a libertina Madame de Merteuil do romance de Laclos, As Ligações Perigosas. Morgane Merteuil , autora do livro Libérez le féminisme (2012), aplicou-se a denunciar, enquanto foi secretária-geral e porta-voz do sindicato, de 2011 a 2016, a “putofobia” e o abolicionismo, isto é, a posição que consiste em querer abolir a prostituição com o argumento de que ela não é desejável para as pessoas que a praticam e, consequentemente, a emancipação dessas pessoas só seria alcançada sob a condição de elas se emanciparem da prostituição.
A reivindicação da prostituição como “trabalho sexual” (e, portanto, requerendo uma defesa sindical organizada) não é no entanto uma originalidade do STRASS. Vem dos Estados Unidos e, numa entrevista, Morgane Merteuil traça-lhe a origem: em 1978, Carol Leigh, prostituta e militante feminista americana, forjou a noção de sex work. Este neologismo, conta Morgane Merteuil, utilizou-o Carol Leigh pela primeira vez por ocasião de uma conferência feminista em que ela devia falar sobre “indústria de exploração do sexo”. Considerando que era um título desprestigiante das trabalhadoras e dos trabalhadores do sexo, propôs que falaria da “indústria do trabalho do sexo”. O neologismo rompia com o modo tradicional de entender a prostituição, enquanto condição ligada a características individuais e morais. E assim as reivindicações de ordem laboral, servidas por este novo conceito, tornaram-se uma luta importante.
Mas por mais que se reduza a prostituição a um trabalho, há sempre um resto muito importante que permanece irredutível, impossível de eliminar. Laurent de Sutter, um filósofo belga, dandy, provocador, praticante de uma pop-filosofia muito inteligente, desenvolveu essa “questão” num livro intitulado Métaphysique de la putain (2012). Neste seu breve tratado sobre a “metafísica da puta” — a puta como revelador da “verdade” —, Laurent de Sutter usa um corpus que vai da Lulu, de A Caixa de Pandora, de Wedkind (que Alban Berg adaptou para uma ópera), passando pela “femme coquette” de Godard (e todas as putas do cinema de Godard) e pela visita que Bloom, no Ulisses de Joyce, faz ao bordel de Mrs. Cohen. Não se esquece também Laurent de Sutter de citar Baudelaire, em Fusées, quando pergunta “O que é a arte?” e responde a seguir: “Prostituição”.
Sim, para Baudelaire o artista da vida moderna era aquele que acedia à condição de puta. Não era puta porque se vendia, vendia-se porque era puta.
O nosso João César Monteiro levou o baudelairiano preceito às últimas consequências e proclamou numa célebre cena de Vai e Vem, frente à Assembleia da República, depois de explicar a uma amiga de longa data a “intrincada tecnologia de ponta” do “brochim”: “A velha puta pode enfim sorrir”. E sobe a escadaria da Assembleia.
