A arte do fingimento

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 10/06/2022)

Miguel Sousa Tavares

A hotelaria teve muito tempo para se preparar para a tão desejada retoma do turismo, sabendo que, quando ela viesse, era essen­cial ter conseguido substituir as dezenas de milhares de trabalhadores que entretanto, com a pandemia e a falta de trabalho, haviam emigrado para outros sectores ou outras paragens. Todavia, poucos hotéis e restaurantes o fizeram, aproveitando o tempo de paragem e aprendendo com as lições da pandemia. A grande maioria acreditou que, uma vez retomado o negócio, os trabalhadores sazonais voltariam a aparecer ou a regressar, como sempre haviam feito, e sem necessidade de melhorar as suas condições laborais ou remuneratórias. Correu-lhes mal a aposta: hoje, com o mercado de trabalho à beira do que os economistas definem como o “pleno emprego”, esses trabalhadores — precários por natureza e mal pagos por tradição — encontraram melhores colocações noutros lados e a fazer outras coisas e não estão dispostos a voltar, ainda por cima para trabalhar mais e pelo mesmo salário. Por outro lado, ciente de que não tinha condições para prestar um melhor serviço e tentando também antecipar-se aos mercados concorrenciais na retoma, o sector empresarial do turismo manteve os preços baixos — o que, levando em conta os prejuízos acumulados de dois anos de pandemia, não lhe permite agora aumentar salários.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Instalou-se, assim, um círculo vicio­so perfeito, que, no início da época alta, aliado ainda ao caos dos aeroportos e à subida imparável da inflação, faz antever um Verão de puro descontrolo e leva os empresários à beira do pânico. No Algarve, nesta altura do ano, não há praticamente um estabelecimento comercial que não tenha um cartaz à porta a pedir um ajudante de cozinha, um empregado de mesa, um motorista, e por aí fora. E quando por milagre conseguem contratar alguém, um mês depois o vizinho do lado rouba-lhes o empregado ou este desiste por excesso de trabalho. Em desespero de causa, as associações patronais tentam convencer o Governo a aprovar à pressa uma legislação de trabalho e de imigração excepcional, a que chamam “via verde”, para trazer 45 mil trabalhadores em falta dos PALOP, das Filipinas, da Moldávia, de Marrocos, do Usbequistão, da Geórgia, da Lua, se possível. A mesma solução aplicada à agricultura superintensiva no perímetro de rega de Alqueva ou nas estufas do litoral alentejano é a solução que eles vêem para salvar este Verão. Porém, além dos inevitáveis problemas que já conhecemos de exploração de mão-de-obra barata em condições sub-humanas, que ninguém controla, das redes de tráfico estabelecidas, dos contentores como dormitórios e outras vergonhas, é evidente que isto não será solução alguma. Apanhar azeitonas ou framboesas não é o mesmo que preparar quartos de hotel ou ajudar a cozinhar refeições: não se formam trabalhadores de hotelaria numa semana, para mais sem falar a língua do país ou a dos clientes.

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Mas o essencial da questão está para lá disso, ultrapassa em muito o problema do próximo Verão e não será obviamente solucionado com a imigração em massa e em urgência de profissionais de hotelaria instantâneos vindos das estepes do Usbequistão ou das montanhas filipinas. A questão tem que ver com a contínua degradação da qualidade do turismo oferecido por Portugal à conta da aposta cega no turismo de massas. O crescimento desenfreado do número de hotéis, de aldeamentos turísticos e de restaurantes, muitas vezes sem o mínimo de qualidade admissível, está destinado, inevitavelmente, a tornar o sector insustentável. Eu, pessoalmente, estava convencido de que a coisa iria rebentar, no Algarve e no litoral alentejano, pela falta de água e pela ruptura da capacidade de resposta de diversas outras infra-estruturas essenciais — para não falar já da sobreocupação das praias, um factor crítico para quem quase só vende sol e mar. Afinal, começou a rebentar pela falta de pessoal, mas, mais breve do que tarde, as outras razões de ruptura surgirão à superfície sem disfarces possíveis. E então não terá sido por falta de avisos e de sinais de alerta que este tipo de turismo demencial se suicidou na praia.

2 De cada vez que Rui Moreira resolve testar a seriedade da tão apregoada vontade descentralizadora do Governo — seja a propósito da transferência para o Porto de uma empresa pública, seja no tratamento dado ao Porto pela TAP, seja no pacote financeiro que deverá acompanhar a transferência de competências nas áreas da educação ou saúde para as autarquias —, o resultado é esbarrar num muro de silêncios, hipocrisias, palavras vãs. Com este ou outro Governo, a vontade real de descentralizar é nenhuma. Ficam-se pelas CCDR, que mais não são do que uma instância de distribuição de lugares pelos dois partidos de poder tradicionais e um disfarce para fingir que estão a descentralizar.

Na verdade, como eu sempre pensei e aqui escrevi, só há duas hipóteses para explicar isto: ou não querem mesmo abrir mão de qualquer poder a favor da periferia ou estão a fazer tudo para que, em desespero de causa, uma maioria de portugueses, conformada ou desesperada, acabe a exigir a regionalização como única forma de resolver o assunto. Quando, confrontada com o problema sério levantado por Rui Moreira, a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, não tem nada de concreto a dizer a não ser declarar-se regionalista e não excluir uma revisão cirúrgica da Constituição para facilitar a regionalização, está tudo dito: isto é mesmo uma conspiração silenciosa. Só não percebo uma coisa: estes regionalistas, que querem descentralizar sem transferir dinheiro, como fariam se houvesse regiões?

3 Por absoluta falta de interesse, não fui ler o tal texto de Cavaco Silva de elogio a si próprio. Mas, obviamente, não me passaram ao lado citações dele e do essencial que escreveu, bem como inúmeros comentários que suscitou. Francamente, escapa-me tanto interesse. Independentemente do juízo que se faça sobre os dez anos de governação de Cavaco, já todos temos uma ideia feita sobre eles, já todos sabemos o que o próprio pensa sobre eles e já todos sabemos também que, de cada vez que ele resolve falar, é para recordar esses anos e auto-elogiar-se. Onde está o interesse de voltar a ouvi-lo a repetir-se? Alguém como Cavaco Silva, que aspira a um lugar no presente como ‘senador’ acima do turbilhão dos dias ou a um lugar na história como transformador de qualquer coisa, quando intervém não é para se auto-elogiar e falar sempre do “seu tempo”: é para dar ideias para o futuro, ver além das conjunturas e para lá das disputas do momento. Para exibir, simultaneamente, sabedoria e juventude de espírito, que é o oposto daquilo que Cavaco exibe.

4 Nada jamais poderá fazer de um pequeno homem um grande estadista. Boris Johnson é aquele político que no dia da votação do ‘Brexit’ tinha dois discursos preparados para reclamar vitória fosse qual fosse o resultado. É aquele primeiro-ministro que, depois de pôr 80 milhões de ingleses em rigoroso confinamento, perdoou ao seu chefe de gabinete ter violado as regras; que, depois de ter proibido quaisquer ajuntamentos de mais de três pessoas e todas da mesma família, consentiu e participou em festas privadas de dezenas de colaboradores de Downing Street em pleno confinamento; que, quando isso constou ter acontecido, começou por negar os factos, depois negou ter participado nas festas, depois disse que iria esperar pelos resultados de um inquérito independente e, quando o inquérito o denunciou como mentiroso, inclusive publicando fotografias suas a brindar com champanhe nas tais festas, pediu desculpa e recusou demitir-se.

E, finalmente, quando, incomodados com tanta falta de vergonha, um grupo de deputados do seu próprio partido levou a votos a sua demissão, ele disse-lhes que nessa mesma manhã tinha falado ao telefone com Zelensky, que ia enviar mísseis de logo alcance para combater os russos e que também ia descer impostos — se, por amor de Deus, não o despedissem. Uma tão grande nação com um homem tão pequeno à frente dos seus destinos! Não admira que a rainha ande com problemas de saúde.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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Um pensamento sobre “A arte do fingimento

  1. A uberização da economia Portuguesa empobrece a população activa, reduzindo o seu poder de compra. Isto vem dos EUA, sob o comando de Obama, um chamado democrata!

    Este desastre económico é o resultado da incapacidade das elites de governar este país com bom senso, com pouca ajuda de uma administração omnipotente que se refugiou, certamente a ser paga apesar de tudo.

    É evidente que este sistema está a cavar a cova onde vai ser enterrado e é mesmo estupidamente suicida. Podem as empresas prosperar se as pessoas não puderem consumir o que produzem? No entanto, com a cumplicidade dos governos que são seguidores do sistema neoliberal, estão a trabalhar arduamente para impor salários mais baixos, a privatização dos lucros e a nacionalização das perdas, em suma, o empobrecimento generalizado da diversidade das classes trabalhadoras e a precarização generalizada das classes médias, destruindo todos os serviços públicos vitais que permitiram a toda a população ter condições de vida aceitáveis com um mínimo de segurança intergeracional (hospitais, serviços sociais, educação nacional, segurança de emprego graças a um tecido industrial preservado, etc.). E a maioria continua a acreditar e a apoiar este sistema predatório. Acreditar que todos estão mais rentistas e a salvo das necessidades em Portugal. Acreditar que não temos nada com que nos preocupar para o futuro dos nossos filhos e netos! Chorar com repugnância e desespero.

    O muro da realidade está a aproximar-se perigosamente. E é provável que se revele muito mau, uma vez que muito poucas pessoas em Portugal têm uma compreensão da economia.
    Para a maioria dos Portugueses, há pessoas muito ricas e pessoas que estão a lutar (nem sequer estou a falar dos muito pobres). Portanto, é simples, basta tirar aos ricos para que as pessoas deixem de lutar. A noção de “criação de riqueza” ou mesmo a simples diferença entre um stock e um fluxo são completamente desconhecidos para a maioria da população .
    Devemos, portanto, esperar, nos próximos anos ou talvez mesmo meses, a emergência de uma situação ao estilo venezuelano, a única “visão” que o povo será capaz de compreender. O caos que se seguirá poderá então levar ao grande disparate.

    Esta crise sanitária convém a demasiadas pessoas (uma minoria de facto, as nossas elites e os nossos políticos), continuo convencido de que eles não têm vontade de cuidar de nós e de lutar realmente contra a pandemia, estão de facto a organizar a escassez e camas hospitalares e agora vacinas. Em breve haverá falta de empregos e todos terão de se contentar com um rendimento constituído por benefícios sociais e governamentais. Estaremos à sua mercê pior do que os servos. E no entanto, existem soluções simples. É lamentável que estejamos a confiar o nosso futuro e o dos nossos filhos .

    Não se esqueçam que estas pessoas nunca foram seleccionadas pelas suas capacidades no mundo real, mas porque passaram um concurso e/ou são membros de um partido.

    O consumidor vê as suas despesas aumentarem consideravelmente, e como resultado as suas margens diminuem, o que a longo prazo pode levá-la a baixar os seus custos de produção, reduzir a sua mão-de-obra ou outras soluções para assegurar a sua sobrevivência. Neste caso, não consigo ver qualquer aumento nos salários.
    Estamos num círculo vicioso, tanto mais que, como assinala, somos confrontados com a concorrência europeia ou extra-europeia onde os salários não estão necessariamente alinhados com os do nosso “belo país” quer sejam mais altos ou mais baixos. Não podemos negar que por vezes existe uma disparidade significativa que, na minha opinião, não favorece a redução do desemprego ou o crescimento que dele depende.

    A questão não é portanto, para resumir, como ou porquê “trabalhar mais tempo, ou mais inteligentemente para ganhar mais”, mas sim como no futuro imediato preencher a lacuna deixada pela redução de mais de metade da população activa em 30 anos, para assegurar as pensões dos idosos que contribuíram eles próprios para os reformados de ontem.
    Um vasto assunto, pode dizer-se. Concordo! Estou totalmente desapontado, até mesmo enojado, por ver esta onda sem sentido de licitações puramente eleitorais de todos os lados, o que não faz sentido lógico neste novo mundo onde a tecnologia e a inteligência artificial estão a prevalecer sobre os humanos – um mundo onde só o lucro conta!

    Como podemos conseguir sobreviver com menos de um SMN para para quase reformados, idosos, incapazes de assumir um segundo emprego, com uma inflação líquida e, sobretudo, com um preço da energia que duplicou ,e ainda vai quadriplicar
    Estou interessado em ler ideias.

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