(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 01/04/2022)

No pós-guerra, Churchill foi visitar a sua querida inimiga lady Astor na Côte d’Azur. Viajou de comboio, chegou muito bem-disposto e exclamou para a sua anfitriã: “Sabe uma coisa extraordinária? Vim desde Londres com as minhas malas e sem valet de chambre e… não me aconteceu nada!” Coisa extraordinária também, estivemos quatro meses sem Governo e sem Parlamento e não aconteceu nada e ninguém deu por nada: não consta que nenhum assunto importante tenha ficado por resolver, que a economia ou as finanças públicas tenham andado para trás, antes pelo contrário, que alguma inadiável reforma tenha ficado pendente ou que os portugueses tenham sentido a falta dos sempre entusiasmantes debates políticos na Assembleia. Esta constatação deveria preocupar-nos, na medida em que parece demonstrar quanto a vida democrática e a governação democrática de um país dispensam o jogo político que lhe vem sempre associado. Tal como sucedia em Itália nos anos 80 do século passado, em que os Governos caíam como estrelas cadentes e os únicos períodos de governação tranquila e profícua eram quando não havia Governo e o país ficava entregue a directores-gerais de carreira, também aqui e agora, embora não se tendo chegado tão longe (pois sempre havia um Governo de gestão), a sensação foi a mesma: a de que a anormalidade democrática é a mais adequada forma de governo. O que é uma sensação perigosa, sedutora a curto prazo, venenosa a longo prazo.

Mas estes 115 dias de normalidade suspensa poderiam ter, pelo menos, a vantagem de servir para meditar sobre a inutilidade de tantos jogos florais e debates espúrios em que os políticos gostam de se enredar a si próprios, confundindo isso com uma carreira política, com o exercício do serviço público ou, simplesmente, com a única forma de fazer política. Afinal, como pudemos ver, nada era urgente nem havia pressa alguma, em lado algum. Nem o PSD ou o CDS, cada um lutando por uma forma diferente de sobrevivência, mostraram qualquer urgência em escolher novo líder, pois que nesta fase da vida ainda querem primeiro discutir o que são e onde é que se querem situar. O BE não conseguiu ainda emergir do coma em que mergulhou depois da tareia eleitoral de 31 de Janeiro e pressente-se que é um caldeirão que tenta não explodir à luz do dia. E o PCP, igualmente cambaleante, ainda tentava levantar a cabeça quando lhe caiu em cima a invasão russa da Ucrânia e, na atrapalhação de ter de pensar depressa, o partido voltou a não conseguir deixar de ver a Rússia de hoje como a herdeira da URSS de ontem — o que desencadeou contra si uma onda de ataques, para mim incompreensíveis, dos que antes defendiam a ‘geringonça’ e só agora parecem ter descoberto que este PCP nunca deixou de ser um devoto do leninismo e da União Soviética. E até a versão mínima da Assembleia da República — a Comissão Permanente —, outras vezes tão interventiva, desta vez nada mais encontrou para fazer em dois meses do que tentar convidar Zelensky para também os videomotivar, como vem fazendo com vários outros Parlamentos por esse mundo fora. Imagine-se a cena: o Presidente ucraniano, com a sua T-shirt militar, a arengar a uma dúzia de deputados portugueses, dizendo-lhes que Putin era Salazar e o Exército ucraniano o MFA…

Enfim, com dois meses para preparar um elenco governativo “mais pequeno, enxuto e eficiente”, António Costa apresentou ao país um decalque do Secretariado Nacional do Partido Socialista, sem nenhuma cara nova e todas as antigas e apenas dois ministros a menos (uma das quais não conteve o seu despeito por ter ficado de fora, informando quem não tivesse reparado que a sua vocação era a de governar). Há dois ou três “independentes”, um dos quais, Costa Silva, é um pensador, autor do PRR e especialista em energia e mercados energéticos, mas deram-lhe a pasta das empresas, sem a energia nem a gestão do PRR. Ao que consta por oposição de Marcelo, o gaffeur João Gomes Cravinho saiu da Defesa e foi para os Negócios Estrangeiros, pasta adequada para o perfil. Para o Ambiente, para suceder ao balão de ar Matos Fernandes, avançou Duarte Cordeiro, o coordenador da campanha eleitoral vitoriosa de Costa e seu ex-número 2 na CML, onde jamais dei conta de que o ambiente fosse uma preocupação — como, aliás, na campanha eleitoral, no programa ou no historial do PS. E para secretário de Estado da coisa foi João Galamba, passando a acumular com a Energia, e que, bem ou mal, já traz consigo um contencioso com os ambientalistas sobre a exploração do lítio. Na Agricultura mantém-se outra dirigente de topo do PS, Maria do Céu Antunes, um desastre completo, a senhora que tem entusiasticamente patrocinado toda a agricultura superintensiva e predadora, que, perante as ameaças de secas sistemáticas, engendrou um plano para duplicar o regadio na área do Alqueva, que em Fevereiro, antes das chuvas imprevistas que vieram moderar temporariamente a situação de catástrofe iminente, a única coisa que tinha para dizer é que já tinha pedido mais dinheiro a Bruxelas, confundindo política agrícola com distribuição de dinheiro aos protegidos da CAP. Esta é a ministra que usa o dinheiro dos contribuintes e de Bruxelas para financiar a superindústria agrícola do Alqueva e das estufas alentejanas a favor de estrangeiros, com água barata e a rodos, ao mesmo tempo que deixa cair para metade durante o seu mandato a autossuficiência alimentar do país em cereais e que destrói as hipóteses de sobrevivência do que resta dos pequenos agricultores que ainda tentam subsistir, sem água e sem apoios. Ela e as suas políticas contribuem de forma paulatina e decisiva para a destruição da paisagem, da agricultura sustentável e do ambiente e para o despovoamento do interior. Enquanto depois os seus camaradas das concelhias e distritais reclamam a regionalização como única forma de pôr fim aos males causados e reclamam do “centralismo” da composição do Governo, não querendo entender que o mal não está em os governantes serem de Lisboa e não de Bragança, mas em serem irremediavelmente provincianos de pensamento.
Será este um Governo de um país que continua a acreditar que se pode desenvolver vendendo até à exaustão tudo o que lhe é essencial — a paisagem, a terra, a água e a sua própria identidade — ou um Governo que, com todas as condições para tal, será capaz do rasgo e da ousadia de pensar adiante e diferente?
Então o Governo é mau? Pois, não sei responder. Tem gente de qualidade, obviamente — alguns já com provas dadas na governação, outros cá fora. Não acho relevante que seja mais “político” ou mais “tecnocrático” e absolutamente irrelevante que seja mais ou menos equilibrado entre sexos ou orientações sexuais — um tema que consome páginas e páginas de dissertação das colunistas ditas “políticas”. A mim, e julgo que a quase todos nós, a única coisa que me interessa é saber se cada um é competente na sua área e se o Governo o é como um todo. Não me preocupa se lá estão todos os putativos sucessores ou sucessoras de António Costa e representadas todas as sensibilidades do PS. É-me indiferente, por exemplo, que Pedro Nuno Santos represente a esquerda do PS, o que eu quero saber é como vai ele resolver o buraco negro da TAP e quando é que, depois de tanta conversa sobre a “ferrovia”, tanto estudo, tanta comissão e tanta resistência em deixar entrar a iniciativa privada, ganharemos um minuto que seja a menos a andar de comboio entre Braga e Faro — sabendo que após um ano de abertura do transporte ferroviário aos privados em Espanha, por decisão de um Governo PSOE/Podemos, há muito mais comboios a circular, para mais destinos, mais rápidos, mais baratos e com 50% a mais de passageiros.
O que me interessa é saber se este é apenas mais um Governo para gerir a conjuntura, com um horizonte de quatro anos, virado para a Função Pública e para o favor público e a despesa pública, ou finalmente um Governo que estará preocupado em tentar entender por que razão a Roménia vai ser o sexto país europeu, entrado na UE 20 anos depois de nós, a ultrapassar-nos em PIB per capita (a Roménia, meu Deus, que há 40 anos era um país quase medieval!). Um Governo de um país que continua a acreditar que se pode desenvolver vendendo até à exaustão tudo o que lhe é essencial — a paisagem, a terra, a água e a sua própria identidade — ou um Governo que, com todas as condições para tal, será capaz do rasgo e da ousadia de pensar adiante e diferente.
PS. Ficámos a dever ao almirante Gouveia e Melo (a quem já muito devíamos) a mais exemplar definição de quais devem ser os valores de umas Forças Armadas ao serviço do país e da democracia, ao contrário da cultura de desresponsabilização que costuma ser a regra dentro da instituição militar. E também ficámos a dever a Augusto Santos Silva uma simples e linear distinção entre o patriotismo, que é saudável, e o nacionalismo, que é o seu veneno.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
«ou finalmente um Governo que estará preocupado em tentar entender por que razão a Roménia vai ser o sexto país europeu, entrado na UE 20 anos depois de nós, a ultrapassar-nos em PIB per capita»
O Miguel diz que sabe (pois tem muita mania e pouca razão nestes assuntos), mas eu sei que o Miguel não sabe.
O governo faz de conta que não sabe (pois a verdade é-lhe incómoda), mas eu sei que sabe.
E eu, do pouco que sei sobre este assunto, devo-o aos textos que leio publicados pelos economistas do LadrõesDeBicicleta com factos e gráficos bem explicados sobre a realidade do país, ou a livros de pessoas como João Ferreira do Amaral, ou lá fora pessoas como Joseph Stiglitz. Ou seja, Esquerda, Direita, e um Prémio Nobel, todos explicam o problema económico-monetário de Portugal cheios de convergência.
Assim, a 1ª resposta à pergunta do Miguel é: a Zona Euro.
Todos os países que ultrapassaram Portugal em PIB per capita nestas duas décadas de Euro, ou têm moeda própria, ou entraram mais tarde e a tempo de não sofrerem com os desequilíbrios da moeda, e de terem praticamente só vivido dentro do Euro após o início do Quantitative Easing do BCE.
Países com moeda própria, tiveram políticas de pleno emprego, mais investimento público, e maior competitividade nas exportações e maior equilíbrio a gerir importações. Portugal deixou de ter isso há 20 anos. Daí que seja incómodo aos mais Europeístas defensores da moeda única reconhecer esta realidade, pois mesmo sabendo dela, ser-lhes-ia mais difícil admitir que estiveram 20 anos errados. O país, entretanto, que se lixe na estagflação, endividamento, e envelhecimento, ou seja, os 3 pilares que nos condenam à morte lenta.
A 2ª resposta à pergunta do Miguel chama-se: o establishment (oligarquia + políticos por si desviados).
Enquanto os países do leste aprenderam com os erros dos que aderiram antes, e usaram (e ainda usam) os fundos europeus da melhor maneira, e têm mais proximidade com o motor da Europa (a Alemanha), em Portugal o que aconteceu foi a natural periferia (situação geográfica que só a Jangada de Pedra de Saramago conseguiu corrigir no imaginário) aliada ao facto de Portugal (e a Grécia) terem sido os países que aderiram antes e cometeram todos os erros: muitos fundos desperdiçados, mal usados, sempre a ajudar os mesmos empresários, a financiar sectores não transacionáveis, e obtidos em troca de uma desindustrialização e de reformas laborais anti-sindicatos ou anti-direitos. No fundo, a liberalização da economia em tudo o de mau que o NeoLiberalismo tem, sem nunca se ter feito o pouco de bom que o Liberalismo económico pode ter.
Mais uma vez, o governo do PS sabe, mas nunca o dirá, pois admitir o facto seria admitir que está errado há 30 anos, que nesse período deixou de ser um partido de Esquerda, e que participou em todos esses erros estratégicos e negociatas de mão dada com o partido laranja.
E o Miguel pensa que sabe, mas não sabe, pois se soubesse, não escreveria tantos textos a defender o Euro e uma ainda maior Liberalização. Mas no caso dele não é só falta de conhecimento, é também uma certa incoerência derivada do seu paleio gasto de marialva com pouco tacto para a realidade do povo. Reparem que ele se queixa que se andou a vender o país, mas depois queixa-se também da TAP que custa muito a manter, e propõe a privatização/liberalização da ferrovia. Só lhe posso responder isto: privatizar/liberalizar (ainda mais) em nome da defesa de políticas ou sectores estratégicos, é como ter sexo em nome da abstinência… Manter o offshore da Madeira para alegadamente isso ajudar ao crescimento PIB per capita, é como regar com areia e sal para ajudar ao crescimento das plantas… E manter Portugal no Euro em nome da democracia e desenvolvimento, é como tirar as rodas do carro em andamento em nome de chegar ao destino com os passageiros em segurança.
O futuro de Portugal vai fazer-se com moeda própria, sem o offshore da Madeira, com re-nacionalizações de sectores estratégicos e monopólios naturais, re-industrialização e proteccionismo, e com uma política de pleno emprego e investimento público com o objectivo (já descrito por Pedro Nuno Santos, mas como já estou vacinado, sei que vindo de um boy do PS é só paleio para segurar o eleitorado de Esquerda e impedir que ele vote em quem o representa verdadeiramente) de fazer as reformas que o país precisa mesmo: as reformas estruturais no sentido da Social-Democracia, de preferência seguindo os bons exemplos Nórdicos. E eu sei que ou fazemos este caminho, ou não fazemos caminho nenhum. Pois se mantivermos o caminho da integração acéfala, da anti-democracia do €uro, do fanatismo da liberalização e do “deixa andar pois o establishment desemerda-se e o povo é que paga”, após a morte lenta do país, segue-se o velório: um país só de 6 milhões de habitantes, pobres e endividados, e sem gente nova suficiente para pagar as pensões dos 3 milhões de velhos. Ou seja, um Estado falhado, onde o pouco que vai mexendo é a “economia da Florida”, ou seja, um país de turismo e venda de casas para reformados vindos de outras origens.