Rússia / Ucrânia – 3

(Carlos Esperança, 02/03/2022)

“Devem ouvir-se igualmente ambas as partes” – (Demóstones, in Oração da Coroa, 330 a.c.)

Não, não estou com os invasores contra os invadidos, no Iraque ou na Ucrânia, onde os mais fracos foram invadidos pelos mais fortes, e lutarei contra o unanimismo vesgo que nos conduziu à falta de liberdade e ao histerismo belicista.

Os media parecem-se, cada vez mais, com os da ditadura salazarista, o Sr. Milhazes é o Ferreira da Costa, «Aqui, Luanda, rádio Moscovo não fala verdade», e JRS, o Artur Agostinho a anunciar eufórico a voz do dono «Portugueses, temos o Santa Maria entre nós».

Agora, depois de termos esquecido que «os sinos da velha Goa e as bombardas de Diu serão sempre portugueses», assistimos à violenta propaganda onde se esmagam as vozes discordantes. É o maior ataque à liberdade de expressão depois do derrube da ditadura.

A invasão da Ucrânia foi uma condenável e condenada tragédia, e o unanimismo da UE uma desgraça. Do R.U., Boris Johnson comanda a histeria belicista que fez esquecer as suas traquinices festivas, que o afastariam do cargo. Da União Europeia, onde me sinto um federalista convicto, ainda agora, esperava a moderação do não alinhamento acéfalo com interesses do complexo militar-industrial dos EUA. Esperança baldada.

A Ucrânia nasceu onde a História a condena a fronteiras de geografia variável, com um governo que, à semelhança de todos os países que sofreram a violência soviética, Rússia incluída, exacerba o nacionalismo, com o racismo, homofobia e russofobia a porem em causa os direitos humanos.

Quando a liberdade de expressão é seriamente condicionada, a verdade única imposta, e a defesa da guerra passa a opção legítima, urge defender a Paz, e dizer Não.

Defenderei o aprofundamento económico, social e político da UE, sem o qual se esvazia a democracia, sem trocar a liberdade de expressão e o pluralismo por qualquer amanhã, por mais musical que se apresente, ou pela liberdade de esmagar os mais fracos.

Combater o pensamento único é uma manifestação de cidadania, uma questão de honra, a exigência democrática que obriga à defesa dos adversários. A ditadura devia ter sido uma vacina eficaz e sem prazo de validade. E não foi, como se vê.

Fiel aos valores da democracia representativa e ao seu aprofundamento, recuso modelos caducados e as utopias que inspiram. O século XX deu-nos as democracias e as tiranias, e produziu os mais obscuros sistemas e as mais tenebrosas abjeções.

Não avalizo novas aventuras totalitárias, seja qual for o pretexto, qualquer que seja o quadrante. Num momento de comoção seletiva, ao serviço da agenda belicista da Nato, hei de gritar «Sim à Paz, Não à Guerra», sem esquecer o povo mártir da Ucrânia.

Deixo, para reflexão, a advertência de Mário Soares, em 11 de setembro de 2008. Ver o texto de Mário Soares aqui.


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2 pensamentos sobre “Rússia / Ucrânia – 3

  1. Perfeitamente de acordo em que se analise, censure e condene a política externa dos EUA e a acção da NATO nas últimas décadas. Contudo, creio que neste momento o que está fundamentalmente em causa é a invasão e a guerra declarada a um estado soberano, com um cortejo de vítimas e de destruição que nos convoca a condenar sem apelo nem agravo o líder da Rússia. Creio, também, que a honestidade intelectual e o amor à verdade obrigam a que se questione inapelavelmente a natureza do regime político instituído na Rússia por Putin, que persegue, envenena e encarcera adversários políticos, ao passo que o actual presidente da Ucrânia subiu ao poder mediante eleições livres e democráticas.
    Quanto à citação do Mário Soares, estou convencido de que neste momento, lá onde estiver, o seu espírito estará identificado com as considerações que aqui deixo explícitas ao invés de passar em revista os últimos episódios do historial da NATO.

  2. O autor cita Mário Soares e um artigo da sua autoria, de 2008, em que ele critica asperamente as intervenções da NATO, que eu também censuro e condeno sem rebuço. Mas não se deu ao cuidado de lembrar que o mesmo Mário Soares disse noutra altura que o Putin era “um homem perigoso”. Intuição política não faltava ao Mário Soares, e neste momento temo que este conflito possa degenerar-se numa escalada incontrolável, dado que não concebo que o mundo possa deixar as armas ensarilhadas enquanto o povo ucraniano lutar até ao fim pela liberdade da sua pátria. É que se trata de um país europeu de dimensão semelhante à França em território e população.
    Sim, pode justificar-se ir à génese remota dos acontecimentos históricos, mas o que não se pode é deixar de priorizar neste momento a condenação veemente desta guerra infligida à Ucrânia, ainda mais quando o país invasor é liderado por um déspota cujo perfil mental em nada destoa dos que no século XX ensanguentaram o mundo.

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