A grande denegação

(António Guerreiro, in Público, 11/02/2022)

António Guerreiro

O estado de denegação é gritante e até obsceno, mas até agora, na esfera pública, ninguém tinha erguido a voz a denunciá-lo. Fê-lo Viriato Soromenho-Marques, professor universitário, ligado há muitos anos, civicamente e em termos de conhecimento científico e reflexão filosófica, às questões do ambiente e da ecologia: “Chegou a ser escandaloso, o conceito de crescimento ocupou o palco como se estivéssemos no século XIX”. Estas palavras, proferiu-as ele numa conferência na Academia das Ciências (segundo uma notícia da Lusa que o PÚBLICO online reproduziu na passada segunda-feira), referindo-se à campanha eleitoral.

Assim foi, de facto. E, no entanto, o país (e não apenas este: a Espanha está na mesma, o sul de França também, a Itália idem, para não irmos mais longe) estava — e continua — a viver do Minho ao Algarve uma seca extrema. Só o calendário nos diz que é Inverno. Desta vez, nem os radicais urbanos que olham a meteorologia a partir do guarda-fato e das banais contingências quotidianas podem ignorar o desastre em expansão. Enquanto a Terra aquece e se acelera a um ritmo vertiginoso a sexta extinção em massa (poderá a humanidade sobreviver sem os “serviços” biológicos prestados pelo mundo dos seres vivos que a sustenta?), o discurso político da campanha, como já era antes e continuará a ser depois, não se desviou um milímetro das consabidas discussões sobre economia, recuperação, crescimento, etc. Escandalosa é esta denegação: todo o edifício económico, seja ele visto mais à esquerda ou mais à direita, mais virado para a produção da riqueza ou para a sua distribuição, anuncia-se hoje como um desastre programado. Esta evidência já nem precisa de ser apreendida por aturadas investigações científicas, está bem patente e só fechando os olhos é que é possível não vê-la.

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Fechar os olhos é precisamente o que fazem os responsáveis políticos de todo o mundo, que vivem no estado de denegação (leia-se, sobre isto, Living in Denial: Climate Change, Emotions and Everiday Life, de Kari-Mari Norgaard). O tempo em que a denegação era motivada pela ideia de que a própria ciência estava a criar um embuste, de que não havia provas científicas de que estava a acontecer um ecocídio ou, pelo menos, de que ele não era engendrado pelas actividades humanas — esse tempo já passou. Agora, parece que já toda a gente se convenceu de que a ameaça de colapso não é uma invenção, de que as alterações climáticas se estão a ampliar a uma enorme velocidade e de que o território inabitável não pára de crescer (Inverno após Inverno, Verão após Verão, chegam as confirmações). Mas a universalização desta evidência originou uma outra categoria de denegação, aquela que em inglês se chama implicatory denial: existe a consciência de que as alterações climáticas são uma realidade, com efeitos que podem levar à extinção da espécie humana, mas tudo prossegue como se nada fosse. E o “tudo” compreende os programas políticos, as actividades económicas, a organização da vida quotidiana e profissional.

Como se explica que tenhamos já a experiência vivida dos impactos das mudanças climáticas e, no entanto, isso tenha um efeito quase nulo nos comportamentos e decisões dos poderes políticos, que se mantêm em denegação? É fácil de explicar: são tão fortes as palas ideológicas que o olhar não muda de direcção. Era precisamente para obrigá-los a seguir sempre em frente que se punham palas nos cabrestos dos burros.

Outro efeito das palas ideológicas: elas põem-nos à espera de que a tecnologia nos salve.

Uma dos temas mais discutidos nesta campanha eleitoral, trazido ao palco por mediação de um novo partido político, a Iniciativa Liberal, foi o liberalismo. A discussão foi exclusivamente ideológica e demonstrativa do regime de denegação em que vivem uns e outros. Nas circunstâncias actuais o liberalismo económico já não precisa de ser combatido no campo ideológico: o colapso ecológico-climático está prestes a encarregar-se de enterrar os seus laboriosos empreendimentos, a tolher os seus impulsos, a escarnecer dos bons ofícios do mérito. Sejamos aliás correctos: tais impulsos e empreendimentos, mesmo quando ideologicamente criticados, nunca deixaram de ser seguidos na sua lógica, em todas as latitudes político-ideológicas. A denegação é de largo espectro e afecta também o regime de temporalidade: não há nada excepto o presente.



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Um pensamento sobre “A grande denegação

  1. Uma realidade que precisa de resposta rápida a todos os níveis quando se fala de crescimento não se fala que tem de ser sustentável como em tudo na vida ,mas pergunto não será tempo de o governo apostar em centrais de dessanalizacao como em Israel são coisas que demoram tempo a construir antes que seja tarde demais.

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