Porque é que a guerra civil dentro dos partidos é endémica?

(Pacheco Pereira, in Público, 04/12/2021)

Pacheco Pereira

No próprio dia da vitória, bastava ouvir com atenção os comentários dos opositores de Rio para perceber que tudo ia continuar quase na mesma.


Como sabem nunca acreditei em qualquer processo de “pacificação” interna nos partidos após momentos em que a guerra civil interior define vencedores e vencidos. Nem quando Rio teve bons resultados nas autárquicas, nem quando venceu Rangel. No próprio dia da vitória, bastava ouvir com atenção os comentários dos seus opositores para perceber que tudo ia continuar quase na mesma. Havia muita raiva e muito lugar-comum de circunstância, mas estava já tudo a esperar pelo dia seguinte.

Porquê? Por uma razão mortífera para a vida partidária: cada vez mais assumem lugares de relevo nas estruturas partidárias pessoas cuja única actividade e profissão é obtida pela influência interior nos partidos, e cujas carreiras não dependem um átomo da sua influência e prestígio social, seja cultural, seja profissional, seja político. Peguem nas listas de deputados da legislatura cessante e façam um teste para ver se alguém sabe quem são e o que fizeram de útil para a sociedade. Salvo raras excepções e, cada vez menos de legislatura a legislatura, o resultado é próximo de zero. Alguns berram muito nas redes sociais, mas, fora disso, nada. São funcionários políticos cujas preocupações dominantes são o emprego, a carreira e as promoções. Nem ideologia, nem política e muito menos o país. Esta composição nos grandes partidos com votos para chegar ao poder é nociva para a democracia.

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Isto é válido para o PSD, como o é para o PS, pelas características que são comuns aos dois partidos: serem grandes eleitoralmente, a dimensão conta, e terem por isso mesmo acesso a “bens” significativos do poder para distribuir. É por isso que esta análise não se aplica ao PCP, que tem outra cultura política, nem ao CDS, que é cada vez mais um muito pequeno partido, nem ao Chega, que é o único partido em Portugal que se alimenta de um populismo antidemocrático. Isso não significa que sejam todos eles imunes a muitos dos efeitos perversos que se manifestam nos grandes partidos – só que a dimensão dos “bens” não chega para moldar de forma significativa os mecanismos interiores.

Veja-se o caso do PSD. As listas de deputados são um dos “bens” mais relevantes para distribuir e, do mesmo modo que já foram um motivo central para a disputa Rio-Rangel, vão continuar a sê-lo mesmo depois da vitória de Rio. E a disputa será ainda mais acesa, porque um candidato que ganhou contra o aparelho terá de lidar com o mesmo aparelho na elaboração e aprovação das listas. Os efeitos perversos vêem-se em duas não-atitudes: nenhum responsável distrital ou concelhio que comprometeu a sua estrutura abusivamente no apoio a um candidato que perdeu assume responsabilidades pela sua atitude e se demite. A demissão seria normal, porque, queira-se ou não, falou-se abusivamente em nome dos militantes e isso significa uma crise de legitimidade. Pelo contrário, nem pensar, abrenúncio.

A esta atitude soma-se que ainda não se ouviu ninguém, dos que estavam sempre a repetir que a “estratégia estava errada”, dizer esta simples frase: como não concordo com a estratégia, não quero permanecer deputado a defender uma opção em que não acredito e que entendo ser má para o partido e para o país. Não penso que seja preciso qualquer especial heroicidade para fazer isto, nem que seja um drama. Eu próprio fiz isto mais do que uma vez, uma das quais para recusar o muito desejado lugar no Parlamento Europeu, porque discordava da aliança que Barroso quis fazer com Portas…

Os efeitos destes processos são devastadores para os grandes partidos: abrem caminho para a corrupção – interesses de carreira chamam outros interesses –, afastam dos partidos gente competente (é mau que os partidos não tenham no seu interior os conhecimentos técnicos associados à consciência política e fiquem dependentes de “independentes”), e deixam de ser atractivos para todos os que têm prestígio social adquirido por mérito, fora do mundo partidário, com vida própria e liberdade para entrar e sair. Tudo isto reforça ainda mais o fosso entre a representação política e a sociedade.

Este não é um problema escolhido, nem conjuntural, mas sim estrutural. A forma como evoluiu o sistema partidário em Portugal, com quase 50 anos de democracia, deu origem a esta situação que é um efeito da oligarquização dos partidos, processo conhecido e estudado na ciência política. O que torna ainda mais grave nos dias de hoje esta oligarquização conflitual é que ela se insere num contexto de uma ecologia crítica para a democracia, ou seja, as perversões no PS e no PSD ferem a saúde da democracia de forma a acentuar a sua crise e desgaste, que nunca foi tão perigoso, porque vem de dentro.

Numa democracia em que as mediações são a base que a distingue da demagogia, a crise dos principais partidos políticos corrói na sua base a representação. Aqueles que acham muita graça a estas guerras, e as vêem como “lutas de galos”, que repetem a curiosidade pelo “sangue” que alimenta a comunicação social – e que ainda não percebeu que esta crise é da mesma natureza da que atravessa –, estão a brincar com o fogo. É fácil atirar contra o Chega bruto, o de Ventura, mas achar graça ao Chega sofisticado do Observador. O fogo que destrói a democracia já está a arder.


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4 pensamentos sobre “Porque é que a guerra civil dentro dos partidos é endémica?

  1. I partiti politici si dividono in grandi e piccoli. I grandi mentono e rubano. I piccoli desiderano soprattutto di crescere E. de Straznik

    É claro que a classe política tende a ser uma casta que se pretende superior; e só o é como fruto da manipulação das leis e dos cofres públicos onde se pretende abastecer.

    O mandarinato sabe que basta manter-se obediente ao chefe para em poucos anos montar um negócio, ter um cargo empresarial e garantir uma tença para o resto da vida

    O concubinato entre os media e a classe política é evidente. Os primeiros precisam de notícias (?), mesmo que sejam irrelevâncias ou parvoíces; e a classe política precisa de publicidade para mostrar à plebe, as suas muitas qualidades e os esforços que desenvolvem para benefício do povo. E assim se perpetua a mentira que esconde o saque

    É com ar de sacrificado, de benevolente amigo do povo que Costa aumenta o salário mínimo para uns fabulosos 705 euros… quando o seu equivalente espanhol se situa nos 1054 euros.

    Ontem deparei-me com algo que divulgo há muitos anos, sem qualquer impacto na imprensa ou um pio vindo dos partidos ditos de esquerda – a dívida para com a Segurança Social dos chamados empresários. A ministra Mendes Godinho talvez conheça; e, devia ter vergonha na cara dizer que a sustentabilidade da Segurança Social deve ser “um dos grandes debate nos próximos tempos”. Não sei se é totalmente ignorante na matéria ou se pretende mandar uma “boca” em tempos de pré-carnaval eleitoral

    Mas vale a pena mostrar a todos a gestão PS/PSD; mais frontalmente, o valor ROUBADO aos trabalhadores deste país. Os valores que se seguem constam da Conta da Segurança Social e referem-se à soma das dívidas das empresas (curto, médio/longo prazo) (em milhões de euros)
    2007 – 3332.8; 2008 – 4226.3; 2009 – 5447.7; 2010 – 6528.4; 2011-7721.5; 2012 – 9074.0;
    2013 – 10553.5; 2014 – 10941.3; 2015 – 11432.4; 2016 – 11566.8; 2017 – 11923.0;
    2018 – 12193.6; 2019 – 11987.5

    Uma curiosidade. Há poucos anos, o valor em dívida correspondia ao total anual das pensões do regime geral da SS.

    Bibliografia na ligação abaixo (entre outros sob o tema, que estudo há mais de 15 anos, perante o ensurdecedor silêncio da chamada esquerda (?)

    https://grazia-tanta.blogspot.com/2020/12/seguranca-social-vitima-de-uma-burla.html

    VL

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