O partido que só por obrigação se leva aos salões

(José Pacheco Pereira, in Público, 27/11/2021)

Pacheco Pereira

Num texto de Ciência Política escrito há muitos anos, Durão Barroso dizia que o programa do PSD incluía o programa escrito e o não escrito, e que este último era a própria história do partido. A conjugação destes dois moldes não é unívoca e não escapa à ambivalência da prática concreta do partido, que se deslocava para o centro-direita ou para o centro-esquerda em momentos distintos da sua actuação. Mas, seja qual for o valor destas designações posicionais, o local central era o ponto de referência a partir do qual o partido estava ancorado.

Historicamente, enquanto a influência dos fundadores permaneceu, o PSD nunca se dizia de direita e também não se dizia de esquerda, mesmo quando Cavaco Silva o classificou como o partido da “esquerda moderna”. Dizia-se social-democrata, classificação que o próprio Cavaco Silva usou várias vezes para contrapor ao “liberalismo clássico” do CDS. Exactamente nestes termos.

Isso não significa que o PSD não se deslocasse para a direita, em particular nas presidenciais com Soares Carneiro e Freitas do Amaral, candidaturas confrontacionais com Eanes e Soares, a primeira das quais centrada na luta de Sá Carneiro pelo afastamento do poder dos militares na vida política, a segunda claramente de direita versus esquerda, mesmo que a direita de Freitas seja, no radicalismo dos dias de hoje, considerada quase de esquerda. No entanto, nessas eleições de 1985/86, foi a primeira volta de Soares, derrotando os últimos restos de esquerdismo basista e do socialismo militar justicialista com o apoio do PCP, que foi relevante em termos políticos.

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Como em vários aspectos da governação da AD (por exemplo, a entrega de terras a camponeses), o período de Cavaco Silva também não pode, como apressadamente se faz, classificar-se como de direita. A parte inicial da sua maioria absoluta foi dominada pelo esforço de reformas que permitissem dar sentido à integração europeia, como, por exemplo, na fiscalidade. Cavaco Silva, que era um eurocéptico, evoluiu para um europeísmo, em grande parte pela convicção de que não havia forças endógenas que permitissem mudanças significativas, e era necessário que se fossem buscar forças exógenas para reformar Portugal.

Mas, na sua acção política, Cavaco Silva introduziu na agenda política a questão ambiental que já vinha de governos anteriores do PSD, fez uma política apelidada de “neofontista” de obras públicas e terminou a sua actuação com o Plano de Erradicação de Barracas. A sua política de Defesa e Negócios Estrangeiros manteve o tradicional consenso com o PS. Insisto, no radicalismo de direita actual estas políticas seriam consideradas estatistas, socializantes, esbanjadoras.

A verdadeira alteração de fundo da tradição e identidade política do PSD deu-se no período do Governo Passos-Portas-troika. A operação de lavagem desses anos, que está em curso, considera que as medidas mais controversas desse Governo se devem à situação de bancarrota e às pressões da troika, e foram tomadas por obrigação e não por vontade.

É pura e simplesmente falso, e todo esse período está manipulado na sua história desde as próprias circunstâncias do chumbo do PEC IV até ao facto de a maioria das medidas tomadas serem, ou iniciativa do próprio Governo, que queria “ir além da troika”, ou resultado do descalabro financeiro pós-Sócrates. Basta ver a sequência de eventos do próprio ano de 2011, quando as primeiras medidas de austeridade, anunciadas como sendo excepcionais e não repetíveis, depois se tornaram a norma. E no fim não foi o Governo que nos libertou da troika – foi um conjunto de conveniências políticas europeias que permitiu que se escondesse por debaixo do tapete a crise da banca, que ainda hoje pagamos. Não foi o Governo de Passos que nos libertou da troika, foi um conjunto de conveniências políticas europeias, que permitiu que se escondesse por debaixo do tapete a crise da banca, que ainda pagamos.

O Governo de Passos-Portas-troika e as suas medidas têm uma correspondência com várias declarações públicas do primeiro-ministro, com as sucessivas propostas inconstitucionais e com a  encomenda falhada de um projecto de revisão constitucional a um homem vindo da extrema-direita, Paulo Teixeira Pinto. Toda a filosofia desenvolvida nesses anos foi assente no princípio de que os portugueses viviam “acima das suas posses”, no anátema contra os mais velhos, na ideia da “justiça geracional” e no ataque à função pública enquanto instrumento de mobilidade social. A expressão hoje tão utilizada do “elevador social” era tabu, porque o alvo da austeridade foram as classes médias-baixas, designação sinistra, mas exacta.

No momento em que o espectro do “passismo” regressa, apoiando um líder de transição, para depois vir o produto genuíno ou um seu clone, a ecologia dentro do PSD nunca esteve tão dependente de forças externas. Só por ilusão se pode acreditar que vêm só de dentro do PSD as forças que querem mudar a identidade do partido para o tornar a cabeça de uma frente de direita.

Acaso pensam que o lobby que se encontra no Observador, nos think tanks de fundações e grupos de interesses, nas colunas de opinião de vários órgãos de comunicação social sente simpatia pelo PSD? É não os conhecer. Acham o PSD um partido medíocre, com demasiada gente “de baixo”, instável, que não se leva aos salões a não ser por obrigação. Acham tudo isto, mas precisam dele.

Historiador


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