(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 22/11/2021)

A novela dos Açores durou quatro dias. O que agora assistimos já é mesmo regional, desautorizado que foi o líder do partido. Quase tudo o que envolva a palavra de André Ventura tem a validade de um pacote de leite açoriano aberto e fora do frigorifico. Mas desta vez o líder da extrema-direita pode ter deixado uma mensagem demasiado marcante até para os seus eleitores, habitualmente distraídos.
A cronologia é curta. No meio da contenda interna do PSD, Rui Rio abriu as portas à viabilização de um governo do PS porque espera que o PS faça o mesmo caso o PSD ganhe e só tenha maioria com o Chega. Socorrendo-se das fanfarronices de Ventura, Rio recordou que o Chega só apoia um governo se tiver ministros – ainda só tem um deputado e já exige a Justiça, a Administração Interna, a Agricultura e a Segurança Social. E que, com ele, isso não acontecerá. O problema estava, portanto, resolvido.
Perante isto (e foi mesmo isto, e nada nos Açores, que espoletou a reação do Chega), a fome de André Ventura por atenção mediática falou mais alto e decidiu ser ele próprio a ilustrar o argumento de Rio, dando aos eleitores de direita um vislumbre do que seria a direita a depender do Chega: em vez dos seis anos que a esquerda esteve no poder, nem a um ano chegaria. André Ventura veio dizer que, sendo assim, “um líder que diz que é incompatível o apoio do Chega não pode pedir apoio do Chega nem a nível regional, autárquico ou local”. Porque Ventura aposta na amnésia dos seus eleitores para reinventar argumentos todos os dias, é importante sublinhar que esta foi a razão primeira e central para a ameaça.
Dias depois, o deputado que sobra ao Chega nos Açores – o outro já debandou – deu a entender que não acataria as “instruções” (foi este o termo usado pelo líder nacional do partido) que vinham de Lisboa, porque não é um “totó” e um “fantoche”. No sábado confirmou-o. Pode ficar tudo como estava se o governo dos Açores ceder a umas quantas exigências locais. Agora Ventura finge que a questão central era o cumprimento do acordo nos Açores. Confia que ninguém se lembre que a razão primeira para a instrução “fortemente definitiva” que deu ao Chega dos Açores foi essencialmente nacional. E essas não se alteraram nem vão alterar.
Para ajudar à festa, o deputado que se afastou do Chega há uns meses pode votar contra o Orçamento, por se opor a uma proposta do seu antigo partido. E, com uma candura comovente, confessa que quer eleições antecipadas para afastar o seu antigo aliado, “um Zé Ninguém da política”. Quem se mete com aquele partido é levado na voragem do seu ambiente interno, tão tóxico como o que quer impor ao país. Ao contrário do que alguns pensam, o amadorismo na política não traz com ele mais pureza, mas uma mesquinhez mais crua e indisfarçada.
Porque é que isto não é mais um episódio, dos muitos em que Ventura diz, desdiz, volta a desdizer, até todos se perderem no meio? Porque os portugueses estão especialmente atentos às alianças que os partidos tencionam fazer depois das eleições. E a imagem que deu aos eleitores de direita foi que não contarão com ele para uma solução que afaste o PS da influência do poder. Isto valerá pouco para o eleitor de protesto difuso, vale muito para o eleitor de direita descontente com o PSD e o CDS (que se não estivesse dedicado a autodestruir-se aproveitaria este erro de palmatória do seu concorrente) ou que espera que o Chega ajude a desequilibrar mais a balança para a direita.
Nada disto é comparável com a crise nacional. Não é comparável, porque o rompimento à esquerda acontece depois de seis anos de governo do PS – a segunda solução minoritária mais longa da nossa democracia e o primeiro-ministro mais tempo no poder desde o 25 de Abril, quase empatado com Guterres e Sócrates –, não ao fim de menos de um ano, como se passou nos Açores. Nenhum dos partidos de esquerda fecha entendimentos para o futuro, mesmo que com outras modalidades. Não é, como à direita, um interdito. Porque, ao contrário do que alguma direita gosta de dizer, as realidades não são simétricas – BE e PCP não apresentam propostas, no Parlamento, que ponham em causa valores fundamentais para o Estado de Direito democrático. E os motivos de desentendimento foram de substância, não umas declarações de um líder sobre acordos noutras paragens. Tão de substância como foram os da IL-Açores, quando exigiu menos investimento público. Os do Chega foram inventados à última da hora.
As instruções não acatadas de Ventura são, como é evidente, um ataque sem precedentes à autonomia. Nunca nenhum líder partidário se atreveu a tanto. Mas o Chega é um partido de um homem só e esse homem vive em Lisboa.
Não sei se André Ventura se atirou para fora de pé e foi desautorizado pelo deputado açoriano do Chega; se se apercebeu do disparate que estava a fazer e recuou com a ajuda de José Pacheco; ou se tudo isto foi uma encenação para ganhar uns dias de espaço mediático. Sei que foi um erro. Para além da mensagem de inutilidade que envia para o eleitorado de direita, passa uma imagem de falta de autoridade dentro do Chega. A voz grossa que faz para as televisões não chega para controlar o partido quando está em causa o lugar ao sol de cada militante – ao fim de poucas semanas, já perdeu a vereadora no concelho onde ele próprio foi candidato à Assembleia Municipal. A fortaleza de onde vocifera contra o “sistema” tem paredes de pladur. José Pacheco sabia que se fizesse cair o Governo regressaria ao lugar obscuro que tinha quando era uma figura de vigésima linha no CDS-Açores.
Ventura resolveu um problema a Paulo Rangel mas, acima de tudo, a Rui Rio. Se o Chega não conta para a direita, a direita não tem de clarificar nada na sua relação com o Chega. Seja quem for que ganhe o PSD, basta-lhe dizer que votar no Chega é deixar o PSD dependente do PS, caso ganhe as eleições.
Fica claro tudo o que Rui Rio devia ter feito há um ano, quando se formou o novo governo dos Açores. Podia ter-se manifestado contra o acordo e deixado ao PSD-Açores a resolução do problema. Ou podia ter ajudado o PSD-Açores a obrigar os dois deputados eleitos pelo Chega a escolherem entre a viabilização de um governo e novas eleições, seis meses depois, perdendo os seus lugares. O calcanhar de Aquiles do Chega é este mesmo: os oportunistas que seguem Ventura nunca trocarão um lugar por um princípio. É aprender a jogar com isso até os eleitores também o perceberem.