(José Pacheco Pereira, in Público, 17/07/2021)

1. Carlos Blanco de Morais (C.B.M.) retoma no PÚBLICO duas teses típicas da direita radical, ambas com a linguagem agressiva também habitual, quase uma marca da casa, e com a sempre presente vitimização. Uma é a tese trumpiana do combate à cancel culture e a outra a tese da hegemonia “asfixiante” da “extrema-esquerda” em Portugal:
“Uma intolerância sulfurosa ganhou o espaço público através de uma rede inorgânica de pivots televisivos, jornalistas de causas, humoristas militantes, comentadores encartados e redes sociais substitutivas da “Câmara Corporativa” de Sócrates. Políticos, magistrados, académicos e figuras públicas que desafiem os novos padrões de correção, assentes na nova filosofia pública, são heréticos e merecem as ‘chuvas ácidas’ que lhes oxidam a reputação, com a colagem de rótulos, simplistas, mas eficazes.”
2. Confesso que não percebo em que país ele e os seus vivem, ou melhor, percebo. Acharem que existe em Portugal, em 2021, uma ditadura da “extrema-esquerda” conduzida pelo PS, em conluio com o PCP e o BE, e ocultada por uma manipulação brutal da comunicação social, comprada com “almoços grátis”, devia ser considerado do domínio da paranóia política. Mas, que se tenha de dizer o óbvio, já é consideravelmente.
3. Numa variante da tese da ditadura actual do PS, que considera Costa uma imitação de Nicolás Maduro e Portugal igual à Venezuela, no texto de C.B.M. perpassa uma avaliação da “extrema-esquerda” ultrapoderosa: “Graças à sua sobre-representação nos media e aos laços que criou com setores da esquerda radical socialista e com comentadores ‘bon chic bon genre’ do liberalismo progressista” – ou seja, toda a gente menos ele e eles. Não há meio-termo, ou se é militante contra a “ditadura” ou idiota útil.
4. A tese é parecida com a de Diogo Pacheco de Amorim sobre a necessidade de uma “guerra cultural”, mas C.B.M. faz um upgrade, trata-se agora de uma guerra contra “uma agenda político-cultural com pretensões a filosofia pública de Estado”. Esta caracterização é bem conhecida: o mal está numa “filosofia centrada na desconstrução meticulosa dos valores da sociedade existente, com aspiração a ‘marco civilizacional’ e a ‘dogma de fé’, sendo implacável com os apóstatas que dela divergem”. Deixando a vitimização habitual no final da frase, traduzindo, o que ele diz é que há um ataque àquilo que no passado se chamavam os “valores ocidentais”, agora descritos como “valores da sociedade existente”, com a pretensão de os substituir por outra “civilização”, presume-se que a do bolchevismo cultural triunfante. “Civilização” versus “civilização” – estamos nos anos 30, a cruz de Cristo contra a foice e o martelo.
5. C.B.M. refere-se a alguns fenómenos realmente existentes, só que ao exagerar e colocá-los num contexto de conflito “civilizacional”, muda-lhes o carácter. Quando se pergunta que “civilização” é preciso defender, a resposta é sinistra. O ataque ao “politicamente correcto”, que realmente existe, passa para uma amálgama e uma demonização de tudo o que não seja a direita radical que defende. Esse ataque serve para justificar Bolsonaro e Trump, a sempre presente defesa do “músculo”, no passado de Pinochet, recentemente do “meio militar brasileiro [que se] pauta por modelos de organização eficazes”, uma referência que só pode remeter para a ditadura militar brasileira, e repetindo o catálogo habitual dos inimigos, até incluindo os ataques ao “financiador”.
Pode-se perguntar a estes próceres da direita radical: se há hoje uma ditadura dos socialistas, por que razão as Forças Armadas não “libertam” os portugueses do jugo da “extrema-esquerda”?
6. É verdade que há uma hegemonia da esquerda em certas áreas das ciências humanas nas universidades, e na comunicação social. De novo, não foram eles que deram por isso, até eu próprio escrevi sobre o assunto. Mas há razões históricas para que isso aconteça. Quando estive na universidade, a história e filosofia paravam na Revolução Francesa e em Hegel (exclusive). E as ciências sociais, como a sociologia, eram proibidas antes do 25 de Abril como disciplinas académicas de pleno direito. Mas, deixa-se em silêncio que a composição política das universidades varia muito de área para área – por exemplo, no direito e na economia há um peso significativo da direita, o que não lhes suscita preocupação. São, pelos vistos, dominados pela pura “ciência”.
7. Quanto à comunicação social, foi igualmente verdade que havia uma simpatia acrítica pelo BE, mas é muito semelhante à que existe hoje, por exemplo, com a Iniciativa Liberal. Repararam no “foi”? É que esta é uma situação que está a mudar muito e rapidamente. A partir da imprensa económica, do Observador, do fact check escolhido a dedo, e da impregnação das redacções por jornalistas vindos de áreas da direita, a que se soma o financiamento de grupos de interesse, fundações e think tanks, a composição das redacções e os produtos finais têm hoje uma presença considerável desta direita radical. Este é um processo que começou com a hegemonia da TINA como “discurso único” no tempo da troika, que foi a linha dominante em todos os órgãos de comunicação social.
8. C.B.M. indigna-se com a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, integrando-a numa ofensiva contra a liberdade de expressão vinda das esquerdas. Mais uma vez, há um pequeno problema: é que a direita ou votou a lei, ou foi-lhe indiferente, abstendo-se como fizeram o Chega e a IL. Se há matéria em que todos os espectros da direita não têm qualquer autoridade é esta. São ultra-sensíveis àquilo que chamam “liberdade económica” e bastante indiferentes à liberdade política. Não haveria polémica com esta lei se não fossem vários artigos no PÚBLICO, um dos quais meu.
9. Só quem não leia C.B.M. e o traduza, fiel ao conteúdo, é que não percebe como em todos os casos está sempre presente o ideário antidemocrático do grupo do Futuro Presente, e um ataque à ordem constitucional, como o que o levou no passado a contestar as decisões do Tribunal Constitucional que limitaram o governo da troika-Passos-Portas, defendendo que um “estado de necessidade financeira” devia ser introduzido na Constituição, condicionando as decisões dos juízes em matérias de direitos sociais, ou, de um modo geral, um princípio repressivo, a “maneira forte” como, a seu pretexto, escreveu Vasco Pulido Valente. Uma frase de C.B.M. precursora do Chega diz tudo:
“Salta à vista a debilidade dos governos e a incapacidade das forças da ordem em lidar com os motins, em boa parte graças a um sistema legal e judiciário hipergarantista, mais preocupado em deter polícias que reprimem amotinados, do que em punir estes últimos.”
10. No entretanto, vai-se normalizando o cerco. O que é que significa quererem perseguir um deputado por “ofensa aos símbolos nacionais”? O que é que significa haver um “problema” com os professores “esquerdistas”, identificados nome a nome, por um participante na Academia do Chega? Ou apelar à desobediência cívica durante a pandemia, contra a “ditadura” das vacinas e do Certificado de Vacinação? Ou à recusa às aulas de Educação Cívica (se fosse a Mocidade Portuguesa vá que não vá…)? Ou quererem fazer um expurgo ideológico dos programas escolares à moda da Polónia ou da Hungria? A grande diferença actual é que discursos que estavam acantonados na extrema-direita passaram para o “mainstream” da direita. Há um efeito de permeabilidade crescente a posições, teorias e falsidades que estavam até agora circunscritas a certos sectores da extrema-direita, mas estão a migrar para a direita radical.
11. Qual é o problema de intervenções como a de Diogo Pacheco de Amorim, ou do artigo do PÚBLICO de Carlos Blanco de Morais? Não é o facto de existirem, estão no seu pleno direito e a sua liberdade de expressão não precisa de autorização de ninguém. Muito menos é o seu conteúdo de per si, num caso e noutro sem nenhuma novidade – é a sua “circunstância”, no contexto dos dias de hoje.
12. Hoje, este tipo de discurso político exerce um duplo efeito, de trivialização do ataque à democracia e ao 25 de Abril, e de reforço de um argumentário tribal, que os faz sair das margens onde estavam para um campo muito mais vasto. Se repararem, eu evito classificar a direita radical de extrema-direita, porque não é a mesma coisa, mas comunicam entre si cada vez mais.
A grande diferença actual é que discursos que estavam acantonados na extrema-direita passaram para o mainstream da direita. Há um efeito de permeabilidade crescente a posições, teorias e falsidades que estavam até agora circunscritas a certos sectores da extrema-direita, mas estão a migrar para a direita radical.
13. Houve sempre quem tivesse saudades da Mocidade Portuguesa e dos seus “valores”, ou quem achasse que o 25 de Abril foi o resultado de uma estratégia soviética, ou quem louvasse a ditadura e as suas virtudes económicas em contraste com a democracia, quem fosse machista e misógino, quem fosse homofóbico, quem fosse racista e xenófobo, mas estava num local obscuro falando para a sua corte. E não estou a falar de quem “passasse por ser” tudo isto, era quem era mesmo. A parafernália com que se decoravam limitava a sua influência, como acontecia com o então “homem das luvas pretas”. A questão hoje é que alguém anda a educar muitos ouvidos para esta canção. E não são inocentes úteis. É gente que sabe muito bem o que quer. O problema deles é que também há gente que sabe muito bem o que não quer.
Historiador
É verdade. A extrema direita radical é full of shit.
Mas não podemos esquecer quem os está a fazer subir.
A extrema esqiuerda radical, também full of shit, está há décadas a incendiar e extremar a politica chamando fascista, racista e machista a toda a gente.
O povo está a ficar saturado de tanto insulto e é isso que está a levar muita gente a ouvir os bostinhas do Observador e do Chega – que naturalmente se aproveitam disso com todo o gosto.
Nisto incluo eleitorado tradicional do PCP desconcertado por ser incluido nos “privilegiados colonialistas que têm de ser mortos” apenas pela cor da pele ou terem a cultura ocidental comum a todo o povo português.
Teoria da conspiração fake puxa teoria da conspiração fake e agora temos de um.lado.os fakes de esquerda a vender a imagem do Portugal democrático.como uma espécie de III Reich que persegue as minorias.
E do outro os fakes de direita a dizer que Portugal é uma ditadura socialista.
Francamente não sei quem é o mais merdoso mas sei que os dois lados são uma granda merda.
Concordo em absoluto com o texto do JPP e com o comentário do Pedro. Infelizmente, o bom senso há muito que deixou estas paragens – o fim do pacto social, o minguar das classes médias e a ditadura serão, com muita pena minha, uma certeza a médio prazo.
Uma séria realidade que tem vindo a ganhar espaço e visibilidade na sociedade e relevância mediática no dia dia, diabolizando todo o tempo democrático e as conquistas alcançadas pela grande maioria das populações, que eram as mais analfabetas e pobres da Europa….enfim, reemerge agora gente passadista e a querer de volta os tempos em que só alguns tinham direito à MESA e EDUCAÇÃO. O povo terá que dar a resposta adequada a estes neo-fascistas. PARABÉNS, Pacheco Pereira pela coragem em combater estes algozes, que a troco da liberdade que a democracia lhes dá, eles procuram agora instalar o agrilhoamento intelectual e de expressão para os outros.
Concordo com o que o Pedro diz. Sem ser preciso provar com factos que ele está certo mas basta olhar para a aldeia de Santo Aleixo e outros locais do Alentejo bastiões do PCP para perceber o salto para o Chega. Se os povos não fossem fáceis de enganar os nazis não tinham chegado ao poder.
Os meus parabéns ao Pacheco Pereira pelos excelentes artigos que têm publicado no PUBLICO onde contesta, com argumentação sólida, a ofensiva da direita radical sobre o ataque à democracia portuguesa, que no entender da direita alt-right portuguesa, é realizada pela esquerda comandada por esse perigoso “comunista” chamado António Costa.
A este propósito, lembrei-me do sociólogo político americano e importante estudioso contemporâneo na área dos estudos democráticos, Larry Jay Diamond que salienta, num dos seus últimos ensaios, os três pilares fundamentais em que assenta um sistema democrático de governo.
“O primeiro pilar é a soberania popular – o governo do povo. A democracia exige que o povo possa escolher e substituir os seus governantes através de eleições regulares, livres e justas.”
O segundo pilar da democracia liberal, no entender de Diamond é a “liberdade”, consubstanciada na existência de um “sistema plenamente democrático garante de uma forte protecção à liberdade de expressão, à imprensa, ao direito de associação e de reunião”.
Finalmente, o terceiro pilar é “o império da lei” que “defende e reforça os outros dois”, ao garantir que “os procedimentos democráticos são aplicados de forma imparcial por uma Justiça independente e outros órgãos de regulação, capazes de controlar o abuso do poder”.
A citação é longa, mas parece-me oportuna, no meio deste confuso debate que vivemos no nosso país sobre a “democracia e os seus inimigos”, porque se olharmos à luz dos critérios definidos por Diamond, chegamos facilmente à conclusão que a nossa democracia os cumpre a todos.
Quanto ao primeiro pilar o da “soberania popular”, penso que é unanime que o voto é totalmente livre, e que não está em causa a escolha e substituição dos seus governantes através de eleições regulares, livres e justas.
No tocante ao segundo pilar da democracia, o da “garantia de uma forte protecção à liberdade de expressão, ao direito de associação e de reunião”, estes últimos estão garantidos, a comunicação social é totalmente livre, ao ponto de aqueles que acusam o poder instituído (o PS) de estar a destruir a democracia, o fazem quotidianamente nesses mesmos meios, da imprensa escrita às televisões.
Finalmente, o terceiro pilar, “o império da lei”, é forçoso concluir que o poder judicial é independente do poder político. Basta ver a sucessão de processos abertos contra os chamados poderosos, sejam políticos, empresários ou do futebol, para perceber que assim é. Não confundir esta independência com a crítica pública ao comportamento dos actores do sistema judiciário – em democracia não há instituições imunes à crítica –, que é o meio através do qual são sujeitos ao escrutínio democrático, embora infelizmente nem sempre os magistrados judiciais e do Ministério Público o tolerem.
Nenhuma democracia é perfeita. Mas, desde que assente nos três pilares enunciados por Diamond, a democracia contém em si os mecanismos, através do sistema de freios e contrapesos, para garantir que nenhum dos três ramos do poder – legislativo, executivo e judiciário – se torne dominante e se sobreponha aos limites e controles de cada poder.
Dito isto, o que me parece mais preocupante – para não dizer “perigoso” para o sistema democrático português – é a crescente insistência com que a direita (e já não só a extrema direita) acusa o Governo de António Costa de estar a “sufocar” ou a “ameaçar” a democracia, considerando-o o princípio e o fim de todos os males de que o país padece.
O Governo socialista é, naturalmente, o primeiro responsável por aquilo que tem corrido bem ou mal em Portugal (que os portugueses em próximas eleições não deixarão de julgar) em função das decisões que tem tomado.
Mas daí até acusá-lo de pôr em causa a democracia vai um salto tão grande que pode acabar numa queda fatal para a direita que o dá!
Bom comentário!