Querido, come a sopa

(José Gameiro, in Expresso, 16/07/2021)

José Gameiro

Era verão, apesar do ar condicionado, a sala estava um pouco abafada, mas nem ela podia ter adivinhado, antes de entrar, nem me pareceu ser a forma mais discreta de ir vestida para uma consulta. Devia ter uns 50 anos, mais tarde espantei-me com os seus 64 — os homens gostam muito de dizer que as mulheres já estão velhas, depois dos 50, mas são bem enganados — não posso dizer que estivesse com uma minissaia, mas também não era muito comprida… Mas era bem justa.

Uma blusa em V, com o vértice bastante baixo, e uns sapatos de salto com pelo menos 12 centímetros compunham uma senhora, para quem apetecia olhar, mas, no contexto em que me encontrava, aprendi, desde há muito, a controlar a incidência dos feixes óticos, para não pensarem que a minha neutralidade fica posta em causa.

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“Senhor doutor, deixe-me primeiro fazer uma introdução à minha vinda cá. Tenho uma vida normal, se é que alguém tem, mas quero dizer com isto que cresci, tirei o meu curso, sou arquiteta, gosto muito do que faço, tenho dois filhos, já três netos. Há uns quatro anos a minha vida deu uma volta. O meu casamento já não estava muito bem, sabe como é, cada um para seu lado, o meu ex-marido fazia a sua vida e acabei por fazer a minha. Mas também não é por isto que cá venho. Separámo-nos bem, sem dramas, continuamos muito próximos enquanto pais e avós, até falo bem com a namorada dele e parece gostar do meu namorado. Veja lá senhor doutor, eu que dizia a toda a gente que estava muito bem sozinha, apaixonei-me, aos 60 anos.”

Foi aqui que percebi que tinha sido “enganado” pelo meu machismo e preconceito. A senhora era bem mais velha do que os meus olhos tinham avaliado. Não sei porquê, em associação livre, surgiu-me no pensamento a Brigitte Macron, mas a história não tinha nada a ver… Continuou: “Quando me separei precisava de estar sozinha e fui viajar. Meti-me no carro, adoro guiar e fui estrada fora, sem destino. Os meus filhos ainda tentaram travar-me, que era perigoso, uma mulher sozinha, são mais conservadores que eu. Olhe, veja bem, à entrada de Itália, ali perto de Génova, numa área de serviço, encontrei o homem com quem agora vivo.”

Parecia que estava a adivinhar os meus pensamentos. “Mas não pense que é um camionista de longo curso. Um português que tinha ido ver a filha a Itália. Um pouco mais novo que eu, foi funcionário da ONU toda a vida, sabe como é, não fazem muito, reformam-se cedo e com belas maquias. Agora pouco trabalha, umas pequenas consultorias internacionais. Ao fim de pouco tempo veio viver para Portugal e juntámo-nos, voltar a casar não quero.”

Percebi que tínhamos chegado ao ponto mais difícil da consulta. Calou-se uns segundos, respeitei, esbocei um leve sorriso a que os psis chamam empático e esperei.

“Tenho de lhe falar da minha intimidade, não é fácil, mas cá vai. Pensava que tinha tido uma vida sexual muito boa e tive, mas com o Pedro, vou-lhe chamar assim, descobri e senti coisas que nunca tinha sentido. Os primeiros tempos foram de algum deslumbramento, eu sei que tinha estado “em pousio” uns anos, mas nós sabemos muito bem distinguir o bom, do muito bom. Mas já não vou para nova e todos os dias, por vezes mais do que uma vez, cansa. O raio do homem não pára. Ainda pensei que andava a tomar esses comprimidos que os homens tomam quando envelhecem, mas não encontrei nada. E, sabe, o que era muito bom, está a tornar-se uma chatice.”

Já falou com ele, perguntei. “Já, várias vezes. Os primeiros dias resulta, mas depois volta a insistir, diz que é o muito amor que sente por mim. E tenho medo que a nossa relação se estrague.” Pensei, mas não disse, tretas de homem. “Vim falar consigo porque uma amiga minha teve um problema parecido e um colega seu ajudou-a a resolver. Parece que vocês conhecem umas gotas que acalmam os homens.” Fiz-me desentendido e ela também. “Podia ser tão simples, bastava eu dizer-lhe, querido come a sopa.”


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5 pensamentos sobre “Querido, come a sopa

  1. Interessante esta penetração do discurso do feminismo radical num texto que não tem nada a ver.

    Então é preconceito machista pensar que uma mulher é mais nova do que realmente é !

    Bem, eu pareço mais novo do que sou e todas as mulheres que não sabem a minha idade assim o pensam.

    Estarei a ser vitima de preconceito feminista ?

    Ou será que as pessoas com uma certa idade costumam ter uma certa aparência e quem não aparenta, como eu e a tal senhora, é a excepção que foge à norma ?

    Porque raio é que constatar isso será machismo, ou fascismo ou o raio que o parta ?

    São estas conversas de radicais de merda que estragam causas que até são boas.

    • Caro Cógito.

      Sim, esta coisa de ver fascistas, racistas e machistas em todo o lado está a queimar a esquerda.

      Agora até pensar que uma mulher que aparenta 50 anos possa ter 50 anos é machismo!!!!!

      Se aparentasse 70 e alguém julgasse que tinha 70 no mínimo era revisionismo social fascista de base patriarcal.

      Deve haver alguma teoria neo-marxista a explicar isso. Afinal essas teorias existem aos centos e à pazada, a preço de saldo, a “interpretar” que tudo e mais um par de botas é fascismo, patriacalismo e zzzzzz. Não escapa nada.

  2. Um tipo que quer forçar a mulher a coisar a toda a hora; a mulher em demanda de uma poção para lhe pôr na sopa. . Qual machismo, feminismo, marxismo cultural …. só mesmo numa sociedade que esqueceu os clássicos. Meus senhores, isto faz parte de uma adaptação moderna dos contos dos irmāos Grimm.

  3. (…) Nesta história não há lugar para nenhuns dos ismos ideológicos.

    O Homem tem uma libido que exige refrega para a sua satisfação sexual.

    Ela não aguenta, tanto “amor” Que use o truque clássico da dor de cabeça.

    Os Homens a maior parte das vezes, sabem o que significa e aguardam, por uma outra vez.

    Fácil, para ela. Desagradável, para nós.

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