A falta de médicos e os submarinos alemães

(Francisco Louçã, in Expresso, 09/07/2021)

A falta de médicos não se deve ao inconveniente da deslocação para o interior ou à inércia. 709 mil das 1058 mil pessoas sem médico de família vivem na capital. Faltam porque não há.


Um estudo revelou esta semana que o número de pessoas sem médico de família voltou a passar o milhão, o que não acontecia desde há cinco anos. Aliás, o tema foi então um centro da luta política, dado que o Governo eleito em 2015 tinha assegurado que haveria médico de família para cada pessoa sem falta até 2017, um compromisso importante e que revelava a sua preocupação com o reforço dos centros de saúde. Promessa solene, contas feitas, fracasso total. Nunca terá havido menos do que 700 mil pessoas sem médico de família e agora a situação piorou.

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Como seria de esperar, a pandemia agravou a dificuldade, dado que exigiu muito mais do Serviço Nacional de Saúde, em condições de acesso mais difíceis. Entre março do ano passado e fevereiro de 2021, o número de consultas médicas presenciais nos centros de saúde terá diminuído em 46%, ou menos nove milhões de consultas, se bem que uma parte desse atendimento tenha prosseguido por via remota. No entanto, sempre que a consulta exige o contacto direto com os doentes, essa redução agrava os riscos de saúde. Esse impacto dificilmente podia ser minorado, nas condições em que pouco se sabia da doença e era preciso impor medidas prudenciais. Mas o desinteresse dos governos pelas condições estruturais do SNS agravaram uma fragilidade fundamental, que agora derrapou para números pesados.

A razão para a falta de médicos nos centros de saúde não é o inconveniente da deslocação para o interior, ou a inércia dos próprios profissionais. De facto, 709 mil das 1058 mil pessoas que não têm médico de família vivem na área de Lisboa e vale do Tejo. É na capital que faltam mais médicos. E faltam porque não há. Como se antecipava, este ano e no ano passado temos um pico de aposentações e os novos concursos ficam meio desertos, dado que os incentivos e a carreira assegurada a estes profissionais de há muito que não correspondem às necessidades do SNS. Já se sabia disso tudo.

Assim, é na gestão das capacidades profissionais que se revela a maior falha dos ministérios da Saúde (ou das Finanças, para ser justo não há ministra da Saúde que não saiba como resolver o problema). A evolução do número de médicos no SNS demonstra-o: ao longo de 2020, quando a pandemia explodiu, o serviço público foi sempre perdendo capacidade e em dezembro havia já menos 945 médicos do que em janeiro (foram recrutados alguns milhares de enfermeiras, mas ainda temos um rácio inferior ao da média europeia). Todo o ano de 2020, quando foram precisos mais profissionais para enfrentar o fluxo de doentes covid, foi um desastre, deixou-se andar. Entraram depois, só em janeiro, quase dois mil médicos que tinham terminado a licenciatura no verão anterior, iniciando então os seus estágios de especialidade. Entretanto, até maio já perdemos mais 400 médicos, tanto para a aposentação como para o privado. Todos os anos é assim e vai continuar a ser mês após mês. As promessas de novos concursos são entretenimento político.

A reforma estrutural que se impõe, e o nome aplica-se aqui, é de há muito conhecida: ir buscar médicos ao privado, oferecendo boas condições profissionais e criando carreiras com exclusividade que sejam a base do SNS. E, agora que vem uma “chuva de milhões” dos dinheiros europeus, como se diz, o Governo anunciou que a decisão sobre exclusividade é adiada. Será no dia de São Nunca, depois do almoço, para ser mais exato.


A maldição dos submarinos alemães

Quando foram vendidos submarinos alemães a Portugal, à Grécia e à Coreia do Sul, as evidências de corrupção incomodaram a agenda política de cada país e nos casos mais afortunados chegaram à barra dos tribunais.

Entre nós foi decidido arquivar o caso, bastou que na Alemanha houvesse quem fosse condenado por corromper autoridades portuguesas, era escusado incomodar os outros beneficiários do esquema.

Agora, a maldição dos submarinos alemães volta a assombrar a Europa, com a venda de seis unidades de Tipo 214 à Turquia.

O negócio já tinha sido assinado há uma dúzia de anos, mas o primeiro submarino chega brevemente e o Governo da Grécia reagiu violentamente, pedindo um embargo de venda de armas ao seu rival estratégico, o que foi liminarmente recusado. O contrato vale cerca de um quinto do total das exportações de armas alemãs numa década — é uma razão forte. E como a Grécia compra ­aviões franceses e duplica este ano os gastos militares (mas ainda assim são metade dos da Turquia), o negócio é bom para muitas potências.

O Governo turco sabe que dispõe de carta branca, Merkel protege a venda dos submarinos. Além disso, Erdogan até pode comprar ao mesmo tempo armas à Rússia, mas, como faz parte da NATO e constitui a sua frente no leste do Mediterrâneo, e para lá é terra incógnita depois da derrota da aliança no Afeganistão, é inimputável. Bem pode ameaçar, que até é pago para isso. A União Europeia já desembolsou seis mil milhões de euros pela contenção de refugiados e, na cimeira que devia ter discutido o embargo de armas, decidiu reforçar a dotação para Erdogan em mais três mil milhões. O Presidente turco faz o que quer, a Alemanha fica com uma parte do lucro, tudo corre bem. A NATO aguenta a guerra intestina entre pretensos aliados, a Síria sofre as incursões turcas, Chipre continua dividido… O que é que isto tem de anormal?


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5 pensamentos sobre “A falta de médicos e os submarinos alemães

  1. Então como explica o facto de uma grande parte das população mais afluente optar por nunca ir aos Centros de Saúde/USF nem aos hospitais do SNS, exprimindo opiniões negativas sem nunca os frequentar, como aliás faz em relação a qualquer serviço público? Conta-os como não tendo médico de família? Tem razão. Mas não tem a ver com a falta de médicos.

    • Então como explica o facto de uma grande parte das população mais afluente optar por nunca ir aos Centros de Saúde/USF nem aos hospitais do SNS,

      Caro António.
      É só ir ao hospitais e logo vê a grande parte da população em fila para consulta e operações. Eu sou utente do SNS e só me dou mal com os tempos de espera.
      Pergunta: O António trabalha no Correio da Manha? Eu sei, está sem til !

  2. “chuva de milhões” da UE ?

    Mas vai sobrar alguma coisa depois das habituais roubalheiras dos empresários tugas ?

    Talvez dê para fazer uma rotundas para satisfazer alguns politicos.

  3. (…) o SNS é o esplendor desta revolução. Sempre denegrida pelos arautos ao serviço dos interesses que se foram (re)constituíndo pós 25 de Abril.

    O demais que se ergue pós revolução ficou na empolgante retórica a que as formalidades dos códigos dão letra. E esta liberdade, que existe, mas que contenta, sobretudo, e até quando, a falta objectiva de condições de vida que se aguenta na precariedade.

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