A farda

(Daniel Oliveira, in Expresso, 09/07/2021)

Imaginem que, chegado a um centro com grandes filas, o político responsável pela vacinação se justificava com a falta de pontualidade dos técnicos e acrescentava: “colinho dá a mamã em casa”. O que diriam bastonários, oposição e comentadores? Foi a 9 de junho, no centro de vacinação de Monte Abraão. Recordo a data porque estive, na véspera, ao almoço, três horas à espera de receber a primeira toma num outro centro, na cidade de Lisboa (repetiu-se na segunda dose). Acontece em alguns lugares, quando abrem novas vagas de autoagendamento. A espera vale a pena, os profissionais e voluntários são de uma dedicação exemplar e a vacinação é um sucesso. Mas o episódio, que levaria ao massacre de qualquer político, foi mais um grande momento mediático para Gouveia e Melo. As reportagens no Monte Abraão foram excelentes, com o vice-almirante a pôr o centro de vacinação na ordem e a fazer esquecer as filas noutros pontos do país, nesses dias.

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A boa imprensa começou no dia em que tomou posse. Ainda nem se tinha instalado e os fura-filas desapareceram. Voltaram porque um caso envolveu uma apresentadora de televisão. Como há 216 inquéritos-crime a vacinações indevidas, sabemos que continuaram. Deixaram é de interessar. Quando aconteciam com Francisco Ramos, o facto de o Ministério Público os investigar valia raspas. O que interessava era saber se iam receber a segunda dose. Com Gouveia e Melo, seguem-se os mesmos procedimentos e o que faz falta é um vice-almirante em cada esquina. É verdade que Francisco Ramos teve uma declaração infeliz sobre os eleitores de Ventura. Mas quando Gouveia e Melo, militar no ativo, ofendeu os britânicos e disse que o país precisava de ser endireitado, relativizou-se. E bem. No dia em que Ramos se demitiu, Portugal era, com falta de vacinas, o quinto país da UE em que mais pessoas tinham recebido pelo menos uma dose, proporcionalmente. Estivemos quase sempre acima da média, antes e depois. Mas era impensável dizer que a vacinação corria bem. Com Gouveia e Melo continuamos no pelotão da frente. Mas os fura-filas deixaram de ser tema e é impensável fazer críticas.

Pode passar a ideia de que tenho má opinião do vice-almirante. Pelo contrário, ela é excelente. É muito competente e as falhas a que assistimos são inevitáveis quando se vacina mais de 1,5% dos portugueses por dia, um feito assombroso. Passa serenidade e autoridade, tem bons resultados e sentido político, evidente pelo uso do camuflado e pelas várias entrevistas pessoais que deu. Apesar de os ofuscar, tem sabido trabalhar com o SNS e as autarquias, principais obreiros deste esforço. A minha crítica não é para ele, é para o jornalismo. A farda põe muita gente em sentido. E o escrutínio que antes era um massacre recolheu obedientemente à caserna. “Sou alto, visto uniforme, tenho voz de comando e sou assertivo”, disse o vice-almirante numa entrevista onde nem uma pergunta difícil lhe foi feita. Usa essas vantagens para o deixarem trabalhar. Francisco Ramos era político e o jornalismo acha que só escrutina políticos, contribuindo para um desgaste desigual.

É por isso que ficámos surpreendidos com Tancos, o Tribunal da Relação de Lisboa, o BES ou a Raríssimas, que só ganharam centralidade quando envolveram políticos. António Costa sabia que se livrava de polémicas se escolhesse um militar. O perigo para a democracia está em nós, quando interiorizamos o desprezo pelos políticos e uma farda é o que sobra para o Estado ter autoridade. Pior: para a autoridade do Estado nem ser questionada.


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4 pensamentos sobre “A farda

  1. Este anormal é mais um daqueles que despreza as forças da autoridade e as forças armadas, um “pacifista” que não se importaria de colher os frutos da liberdade e da democrcia sendo objetor de consciência desde que houvesse outros “malvados” e “belicosos” a matar e a morrer em vez dele. Enfim, mais um “corajoso” da treta.

  2. Depreendo do seu articulado comentário que alguém que, de forma mais ou menos velada, exibe um total desprezo por tudo o que cheire a autoridade/segurança/defesa ao mesmo tempo que usufrui destes serviços será um exemplo de cidadania, certo…

    Olhe, de certeza que o seu amigo das barbas e da indicação fácil, caso houvesse uma guerra à antiga, na qual Portugal fosse invadido por uma nação estrangeira, por exemplo, seria dos primeiros a abalar para as Tanger e as Paris deste mundo, invocando o seu “pacifismo” e “humanismo”, enquanto os outros cá ficavam a matar e morrer para depois ele voltar, com a maior cara de pau, a criticar os outros que por ele morreram e a usufruir do bem bom.

    Lá para escrever e ser valentão na tv e nas redes sociais tem ele muito jeito. Ao ter as habituais reações epidérmicas sempre que se fala em militares, só revela ser um dos muitos apreciadores dos saborosos “almoços grátis”…

    • (…) mas qual foi a inverdade que DO escreveu ??? “que a farda e os militares impõe respeitinho aos jornalista da treta, que para a notícia a qualquer preço, perseguem e inflacionam qualquer “erro” ou medida menos assertiva de alguns políticos, e desgastam a sua imagem ??? Prática, próxima do canibalismo informativo, que potencia e desgasta da imagem dos políticos, que se cola à classe, corroendo a Democracia, e promovendo o autoritarismo.

      E não é verdade??? Mesmo reconhecendo o bom trabalho da task force e de Gouveia de Melo ???

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