A encruzilhada da esquerda

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 07/05/2021)

Miguel Sousa Tavares

Não me preocupa o impasse da direita portuguesa, a sua estagnação eleitoral e a sua incapacidade letárgica de abrir caminhos alternativos. Nem sequer sei se a tão contestada (pela esquerda) convenção do MEL já aconteceu ou não e nem percebo que importância tem isso. O que me preocupa é a esquerda. Claro que teoricamente, e a bem de uma democracia saudável, seria desejável que houvesse sempre latente uma alternativa de poder à direita, mas ela acontecerá no dia em que a direita e o centro-direita em Portugal encontrarem a fórmula e as pessoas certas para a encarnar. Até lá, e porque estamos ainda longe disso, o que me preocupa é como a esquerda exerce o poder e, sobretudo, que não desperdice oportunidades de aprender com as lições do passado, de servir as pessoas, de se ocupar de resolver os seus problemas concretos — numa palavra, de governar para o bem comum. Cem dias de Administração Biden nos Estados Unidos foram suficientemente eloquentes para que a esquerda portuguesa, e em particular o PS, meditem naquilo que pode ser feito, com muito menos preconceitos ideológicos e muito menos submissão a agendas da moda e muito mais avanços onde interessa. Enfrentando uma oposição política e social infinitamente mais acirrada do que aqui, Joe Biden traçou um caminho claro e a direito, assente naquilo que é a restauração do património de valores universais da esquerda: direitos humanos, compromisso absoluto com o combate às alterações climáticas, política externa guiada por princípios de democracia, solidariedade e não ingerência, combate à crise económica com cheques-família sem intermediação do Estado e redistribuição fiscal para combater as desigualdades (mas, atenção, ao contrário do que a malta economista do BE nas nossas universidades públicas aponta como exemplo sem indicar números, Biden, tal como a socialista Jacinda Ardern, da Nova Zelândia, pretende subir a taxa máxima de IRS, que abrange rendimentos acima de 480 mil euros por ano, de 37% para 39,6% — enquanto, entre nós, é de 48% para quem ganha mais de 80 mil e de 45% para quem ganha mais de 40 mil).

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Para não dizerem que não falei de flores, começo por dar dois exemplos de medidas que o Governo anunciou ter em estudo recentemente e que me parecem verdadeiras medidas de esquerda, justas e inclusivas. Uma é a introdução automática (sem que os seus beneficiários tenham de a pedir) de internet de banda larga, gratuita, nos lares das famílias mais desfavorecidas. Outra é o estabelecimento de uma quota de acesso ao ensino superior, independentemente de testes de admissão, a favor de minorias étnicas e sociais. Aqui, aliás, até vou mais longe, defendendo que deveria igualmente haver uma quota semelhante, obrigatória, nos estabelecimentos de ensino primário e secundário privados. Estas são medidas úteis e de efeitos visíveis, pensadas para além da espuma ideológica em voga, dos tribalismos a servir e da simples inveja de classe, que vêm a par do desejo de castigar o mérito e o sucesso individual, comum a uma certa direita de nostalgia salazarista.

Não é por acaso, aliás, que não poucas vezes e em não poucas áreas encontramos essa direita nostálgica e esta esquerda punitiva em caminhos coincidentes que, se olharmos com atenção, desembocaram sempre num mesmo local: o triunfo do Estado e a ruína do país. Um bom exemplo disso é o episódio protagonizado pela ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública (!), lembrando-se de atribuir um edifício dos serviços que tutela a estudantes universitários filhos de funcionários públicos. Decerto sem ponderar bem as reminiscências do seu gesto, Alexandra Leitão, longe de qualquer acto de modernização do Estado, estava sim a recuperar a velha práctica salazarista de fazer dos funcionários públicos os protegidos do regime — e isto depois de já o terem sido ostensivamente no processo de vacinação. Pior ainda foi quando disse ter sido mal compreendida e se quis explicar, dizendo que, como o edifício era do Estado, só podia ser utilizado pelo Estado. Ou seja: é deles. O Estado é deles, os edifícios do Estado são deles, não são nossos. É como um clube privado, mas pago com o dinheiro de todos. Será apenas um fait-divers, mas é elucidativo de como este Governo de várias esquerdas é um navio com um piloto ao leme e vários imediatos, cada um folgando ou caçando as velas conforme os ventos que lhe interessa apanhar. Os inomináveis desastres do Novo Banco e da TAP — fruto da facção estatizante da esquerda no poder (e também da direita populista, em parte do que toca ao NB) — aí estão para nos lembrar por muitos anos a vir e muitos impostos a pagar o preço que custa governar para satisfazer dogmas ideológicos da adolescência.

Ao contrário, a vergonha sem nome do que se passa no Perímetro de Rega do Mira e no Perímetro de Rega do Alqueva aí estão para nos mostrar o que sucede quando a esquerda se distrai do que é essencial — por preguiça, por diletância, porque não vem nas redes sociais ou não se manifesta nas ruas. Resumindo, porque já aqui escrevi abundantemente sobre isto: naquelas duas áreas, em zonas que são nuns casos de Reserva Agrícola Nacional, noutros de Reserva Ecológica e noutros de Rede Natura 2000 e até de Parque Natural, empresas, grande parte delas estrangeiras, subsidiadas pelos nossos impostos, praticam uma indústria agrícola agressora do ambiente em todos os sentidos, altamente consumidora de água e contaminadora química dos solos, destruidora da paisagem e dos ecossistemas. E, para tal, empregam, quase todas, uma mão-de-obra proveniente da Ásia, pagos miseravelmente, explorados por intermediários mafiosos e vivendo em contentores de aço e em condições que, hipocritamente, só agora o Governo diz ter descoberto serem “desumanas”. Mas esta vergonha dura há anos, com conhecimento de todos, com denúncias várias e perante o silêncio de todos com responsabilidades políticas, a começar pelo Governo e pelos partidos de esquerda e centrais sindicais.

Onde estiveram, em todos estes anos, os ecologistas partidários, os anticolonialistas contra o passado, os anti-racistas militantes? Querem derrubar estátuas e aceitam contentores com seres humanos lá dentro? Discutem (e acho bem) as regras do teletrabalho mas não se incomodam com homens a trabalhar 12 horas por dia, sem proteccão social alguma e a viveram aos 16 em cada contentor? E porquê? Porque não se manifestam? Porque não são portugueses? Porque não são suficientemente escuros?

Socorro-me do Fernando Assis Pacheco: “Eu quero o dia claro sobre as gentes da minha terra/ o pensamento claro devorando-me a cabeça.” Eis aqui uma agenda eternamente moderna para a esquerda: a justiça possível para tantos quanto possível; e um pensamento claro para determinar as políticas necessárias para tal. E isso passa por governar fora da agenda das redes sociais, das modas, das tribos e do politicamente correcto que invade o pensamento consentido e a comunicação social. Passa por não ter medo de fazer aquilo em que se acredita estar certo — não em cada momento, mas sempre, como princípio de actuação. Por exemplo e para terminar: acreditar que a defesa do Estado de Direito é um dos pilares fundamentais da defesa da liberdade e da democracia, a par da defesa de uma imprensa livre e responsável. E a liberdade e a democracia são onde tudo começa, são património inalienável da esquerda, em todas as épocas e contra todas as modas ou clamores populares. Defender o Estado de Direito passa por defender coisas essenciais como a presunção de inocência de todos os acusados, o seu direito a contraditório e a um julgamento imparcial em tribunal e não na rua ou nos jornais, e a defender isto sempre, mesmo contra a rua, contra a imprensa, contra a urgência de julgar e condenar. Porque, no fim da história, a subversão do Estado de Direito e a subversão das regras de um jornalismo livre e responsável é um objectivo planeado pela extrema-direita: sobre as cinzas de ambos esses pilares de uma sociedade democrática, eles reclamarão, como sempre, a vinda de um caudilho salvador da pátria.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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2 pensamentos sobre “A encruzilhada da esquerda

  1. Deste fulano, até as lágrimas de crocodilo são tóxicas. O joe é pela “solidariedade e não ingerência? Cuba: «não é uma prioridade rever as [240] novas sanções impostas pelo trumpismo. Venezuela: o interlocutor continua a ser o metedó que já nem deputado é e a guerra hibrida é para continuar (https://actualidad.rt.com/actualidad/391457-joe-biden-america-latina-relaciones). Siria: mais tropas e material bélico transportadas para dentro do país à revelia do legitimo governo do país. Colômbia: onde a policia já matou 14 manifestantes em duas semanas e já foram assassinados 79 ativistas socias desde janeiro … nem uma declaraçãozinha. Solidariedade? Sim, com a colômbia, usrael, arábia saudita e quejandos. (não) Ingerência? Sim, em todos os países que não lhes comprem armas. E quer o fulano uma esquerda como a do joe, olha se quisesse uma direita…

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