(Maria Velho da Costa, in Cravo, 1976)

(Este texto é de 1976 mas, em grande medida – e apesar de muitos avanços ocorridos -, a realidade que ele retrata continua a ser a realidade de hoje, no que toca à situação das mulheres.
Texto que transforma um realismo de matizes fortes num belíssimo grito de libertação.
É, pois, o contributo da Estátua, para este Dia Internacional da Mulher. O texto pode ser ouvido no vídeo abaixo, numa leitura conjunta do saudoso Mário Viegas e de Lia Gama.
Estátua de Sal, 08/03/2021)
Elas vão à parteira que lhes diz que já vai adiantado. Elas alargam o cós das saias. Elas choram a vomitar na pia. Elas limpam a pia. Elas talham cueiros. Elas passam fitilhos de seda no melhor babeiro. Elas andam descalças que os pés já não cabem no calçado. Elas urram. Elas untam o mamilo gretado com um dedal de manteiga. Elas cantam baixinho a meio da noite a niná-lo para que o homem não acorde. Elas raspam as fezes das fraldas com uma colher romba. Elas lavam. Elas carregam ao colo. Elas tiram o peito para fora debaixo de um sobreiro. Elas apuram o ouvido no escuro para ver se a gaiata na cama ao lado com os irmãos não dá por aquilo. Elas assoam. Elas lavam joelhos com água morna. Elas cortam calções e bibes de riscado. Elas mordem os beiços e torcem as mãos, a jorna perdida se o febrão não desce. Elas lavam os lençois com urina. Elas abrem a risca do cabelo, elas entrançam. Elas compram a lousa e o lápis e a pasta de cartão. Elas limpam rabos. Elas guardam uma madeixita entre dois trapos de gaze. Elas talham um vestido de fioco para uma boneca de papelão escondida debaixo da cama. Elas lavam as cuecas borradas do primeiro sémen, do primeiro salário, da recruta. Elas pedem fiado popeline da melhor para a camisa que hão-de levar para a França, para Lisboa. Elas vão à estação chorosas. Elas vêm trazer um borrego à primeira barraca e ao primeiro neto. Elas poupam no eléctrico para um carrinho de corda.
Coisas que elas dizem:
— Se mexes aí, corto-ta.
— Isso não são coisas de menina.
— O meu homem não quer.
— Estuda, que se tiveres um empregozinho sempre é uma ajuda.
— A mulher quer-se é em casa.
— Isto já vai do destino de cada um.
— Deus não quiz.
— Mas o senhor padre disse-me que assim não.
— Dá um beijinho à senhora que é tão boazinha para a gente.
— Você sabe que eu não sou dessas.
— Estás a dar cabo do teu futuro com uns e com outros.
— Deixa-te disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito.
— Comprei uns jeans bestiais, pá.
— Sempre dá para uma televisão daquelas novas.
— Cada um no seu lugar.
— Julgas que ele depois casa contigo?
— Sempre há-de haver pobres e ricos.
— Se tu gostasses de mim não andavas com aquela cabra a gastar o nosso.
— Põe o comer ao teu irmão que está a fazer os trabalhos.
— Sempre é homem.
Elas olham para o espelho muito tempo. Elas choram. Elas suspiram por um rapaz aloirado, por duas travessas para o cabelo cravejadas de pedrinhas, um anel com pérola. Elam limpam com algodão húmido as dobras da vagina da menina pensando, coitadinha. Elas escondem os panos sujos de sangue carregadas de uma grande tristeza sem razão. Elas sonham três noites a fio com um homem que só viram de relance à porta do café. Elas trazem no saco das compras uma pequena caixa de plástico que serve para pintar a borda dos olhos de azul. Elas inventam histórias de comadres como quem aventura. Elas compram às escondidas cadernos de romances em fotografias. Elas namoram muito. Elas namoram pouco. Elas não dormem a pensar em pequenas cortinas com folhos. Elas arrancam os primeiros cabelos brancos com uma pinça comprada na drogaria. Elas gritam a despropósito e agarram-se aos filhos acabados de sovar. Elas andam na vida sem a mãe saber, por mais três vestidos e um par de botas. Elas pagam a letra da moto ao que lhes bate. Elas não falam dessas coisas. Elas chamam de noite nomes que não vêm. Elas ficam absortas com a mola da roupa entre os dentes a olhar o gato sentado no telhado entre as sardinheiras. Elas queriam outra coisa.
Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Interessante.
E tudo o que venha do grande Mário Viegas é bom.
Mas um bocadito de viés e ultrapassado.
Hoje cada vez mais homens fazem a lida da casa, cuidam dos filhos e até vivem sozinhos.
Mesmo os homens casados não são necessariamente acordados já com o café à espera feito pela esposa – Até já vi o contrário muitas vezes.
~ Quanto a serem umas grandes revolucionárias… TRETA.
As mulheres costumam ser muito mais conservadoras do que os homens.
Foi por isso que a primeira república nunca lhes deu direito de voto.
Quem deu o direito de voto às mulheres foi o Salazar.
Foi também o salazarismo que permitiu pela primeira vez a eleição de deputadas, logo nos anos 30.
Por falar nisso foi também durante o salazarismo que pela primeira vez houve deputados negros.
Por falar nisso, sabem aquela treta da Joacine ser a primeira deputada negra? É Fake.
A primeira deputada negra foi eleita pela União nacional, no estado novo, ainda nos anos 60.
Vai levar nas nalgas, ó fascista!
Nota. Cuidadosos e previdentes, como todos deveremos ser, deixem-me esclarecer novamente que 99,9% do que este fascista propagandeia por aqui são redondas mentiras. E, sendo inteiramente sincero, digo que o tipo é um daqueles mentirosos que pertencem à laia dos mais reles: desconfio, aliás, que é, a maior parte das vezes, devido a uma entranhada burrice… Para não ir mais longe, pois o parlamentarismo português foi-se adaptando à realidade geográfica do império colonial, nomeadamente…, durante a Primeira Republica Portugueza um filho da terra, sublinhado, foi empossado como deputado pelo círculo de S. Tomé e Príncipe. Chamava-se João de Castro e, sinal dos tempos mesmo se estamos a falar em apenas duas décadas, a entrada que lhe é dedicada no Dicionário Biográfico Parlamentar, dirigido pelo malogrado vá. H. de Oliveira Marques para este período, nada mais diz do que o seu nome. Felizmente, as novas gerações de activistas africanos em Portugal, estão a reparar este silêncio (nem sempre o fazem rigorosamente da melhor maneira, acho, mas esses são outros quinhentos).
Estive à procura das primeiras deputadas portuguesas.
https://fotos.web.sapo.io/i/od0041a1d/19218069_zbV6z.jpeg
As primeiras deputadas eleitas em Portugal, estado novo, década de 30.
https://club-k.net/images/sincleticack.jpg
Dra, Sinclética Soares dos Santos, primera deputada negra, estado novo, década de 60.
http://photos.geni.com/p9/3612/4379/53444837beb8d3e9/DSCN0542_original.jpg
O sistema não deixou passar a imagem da nossa primeira deputada negra, o capanga da estátua, o RFC deve estar a sabotar o sistema 🙂
Lá a ver se desta consigo passar a censura.
Por mais que queiram apagar a história, a memória destas mulheres deve ser preservada – porque foram de facto as primeiras deputadas de Portugal.
Inclusive a primeira deputada negra.
Desculpem lá camaradas esquerdistas, mas nem o estado novo era tão racista como vocês querem convencer que os portugueses serão hoje.
Claro que não, um pretinho ficava sempre bem em qualquer casa, assim tipo em cima do aparador, bons tempos Pedrinho.
Eu não acho o salazarismo que fossem bons tempos, não defendo ditaduras como vocês, esquerdistas.
Mas é um facto que verdadeiros racistas, como Hitler, os skins ou o KKK nunca achariam que ficasse bem um pretinho no aparador.
Muito menos no corpo de oficiais ou na assembleia nacional como existiam no salazarismo.
Aliás, até Agostinho Neto dizia que no império português não havia racismo que se pudesse comparar ao da África do Sul ou dos estados unidos nos anos 60.
O texto de 1976, tanto se pode estar a referir a um ambiente norte-americano, francês, itgaliano, cubano ou soviético. O objectivo, é pegando em situações minoritárias e que foram desaparecendo com o tempo, excepto em regimes socialistas, insinuar que era o ambiente dominante durante o ENovo. Como conheci bem esse tempo, sei que é falso, assim como sei que a esquerda gosta de manipular usando excepções e generalizando conforme as conveniências. Bem dizia o camarada Lenine: mintam, mintam sempre, pois da mentira muita coisa há-de ficar.