Não há vacina contra a fúria nem contra os chicos-espertos

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 01/02/2021)

Daniel Oliveira

Há um mês, dois terços dos portugueses preferiam esperar para serem vacinados. Agora, esgatanham-se pela vacina. Tão previsível como o aparecimento de chicos-espertos. É inacreditável que Francisco Ramos misture a vacinação com debate eleitoral, mas não dar segunda toma a quem prevaricou seria, com o atual protocolo, atirar a primeira para o lixo. Puna-se com a lei quem não cumpre e não se transforme a exceção em regra. Até porque, quando o resto nos corre tão mal, não estamos com más taxas de vacinação.


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Há pouco mais de um mês, dois terços dos portugueses diziam preferir esperar algum tempo até serem vacinados. Eram devaneios de uma falsa sensação de segurança e medo do desconhecido. Agora, que a pandemia se sente de forma aguda e tudo o que andaram a ler nas redes sociais sobre os efeitos da vacina não se confirmou, já todos se esgatanham por ela e instalou-se a caça a quem fura os critérios. Tudo isto era previsível. A mudança de estado de espírito e as polémicas sobre os critérios. Assim como era previsível que, num processo de vacinação que envolverá praticamente todos os portugueses, aparecessem chicos-espertos.

Mesmo assim, acho que devemos ser rigorosos na apreciação de cada caso. Apesar de ambos os casos serem condenáveis, devemos distinguir o que aconteceu na direção da Segurança Social de Setúbal do que aconteceu no INEM. Em Setúbal, estamos perante uma apropriação premeditada e indevida de vacinas por quem, fosse qual fosse o critério, não tinha direito a elas. Espero que estas pessoas respondam na justiça. No INEM, a ser verdade o que dizem os seus dirigentes no Norte, estamos perante o resultado de um protocolo mal preparado, onde não fica claro o que fazer com o excesso incerto das cinco doses que permite, muitas vezes, dar uma sexta vacina. É absurdo atirar esse excesso para o lixo, mas a solução de dar aos vizinhos da pastelaria é impensável, como é óbvio. Como é comum, foi necessária a asneira para que o governo exigisse uma lista de suplentes prioritários. Porque, é importante recordá-lo, apesar de continuarmos a trabalhar para a imunidade de grupo, ainda não temos a certeza que a vacina evite a transmissão. Sabemos que evita a doença e, por isso, é fundamental que seja ministrada a quem faz parte dos grupos de risco.

Como resultado desta polémica, e se o Estado não for rápido a clarificar o que fazer com as sobras, temo que os responsáveis as vão desperdiçar, para não serem alvo de críticas ou ações disciplinares. E nada é mais criminoso do que o desperdício de vacinas. Como continuamos a procurar a imunidade de grupo, é pior do que as dar indevidamente. Basta recordar como, em Seattle, uma arca estragada levou os hospitais a oferecerem, sem qualquer critério, 1600 vacinas, para que fossem usadas antes de se estragarem.

A exigência de não garantir a segunda toma a quem recebeu indevidamente a primeira é estúpida. Estas pessoas não vão perder direito à vacinação porque, até nova estratégia, continuamos a querer vacinar o máximo de pessoas. De fora só devem ficar as que não querem e as que não podem. Como o prazo para a segunda toma é de menos de um mês, se não lhes for dada agora, terão de receber de novo a primeira, quando chegar a sua vez. Limitamo-nos a gastar mais vacinas e a punir inocentes com isso.

Na realidade, isto levanta outro debate sem consenso à vista, em que não vou entrar por não me sentir preparado para tanto, sobre vantagens e desvantagens de ir vacinando logo duas tomas em vez de duplicar os vacinados com a primeira, dilatando este intervalo e dando alguma proteção a mais gente. Mas sendo o que está protocolado (pode mudar), quem toma a primeira toma a segunda. Há instrumentos na lei para castigar quem prevaricou. Não é o plano de vacinação.

Ouvi na SIC Notícias, com estupefação, a resposta de Francisco Ramos, responsável pela vacinação, a esta dúvida. É verdade que não atribuiu aos eleitores de André Ventura a indignação moral com o comportamento dos prevaricadores, como um jornal inicialmente pôs em título (depois corrigiu). Essa indignação sentimo-la todos. Mas atribuiu a defesa da interdição da segunda toma a estes eleitores. Fez o pior que podia fazer: misturar considerações eleitorais com um debate técnico. É inacreditável. E, no entanto, não era difícil esclarecer porque não podemos usar a segunda toma como castigo. Se não tivesse as responsabilidades que tem, até poderia dar algum desconto a Francisco Ramos pelo absurdo do debate. A gritaria instalada dá para o disparate generalizado. E não falta público ansioso por este espetáculo.

Tudo isto era expectável num processo destas dimensões. E não se julgue que não há muitos problemas noutras paragens. Por isso, puna-se quem não cumpre e não se transforme a exceção na perceção de que se trata da regra. Até porque, no péssimo contexto europeu e quando tudo o resto nos está a correr tão mal, até não temos más taxas de vacinação (aqui e aqui).


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