Depois logo se vê

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 31/12/2020)

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O nosso mundo dividiu-se de um dia para o outro. Uma metade preta e uma metade branca. Os pessimistas e os otimistas. Comecemos pela metade branca, a do copo meio cheio. Um mundo administrado pelos otimistas seria um mundo em tons pastel e à velocidade da carroça, onde ninguém faz perguntas, e não é um mundo onde me apeteça viver porque estou na profissão de fazer perguntas. Os otimistas comoveram-se com o “ballet russo” das vacinas e certificam a esperança com o primeiro dia da vacinação ter “corrido bem”. Os camiões não viraram, os aviões não caíram, as pessoas estavam nos postos e prontas a receberem a imunização. Nada falhou. Por esta razão, alguns acreditaram que na primavera teremos imunidade de grupo e no verão toda a gente vacinada e pronta a ir de férias para o outro lado do sol posto, cavalgando aviões e ocupando hotéis. No outono, álacres e sorridentes, estaremos de volta ao mundo de ontem, contando a lenda da nossa virtude e falando do ano de 2020 no passado como quem narra uma façanha histórica. Passa a ser o aziago ano “o ano da pandemia”. E depois, a Humanidade venceu o vírus. The End.

Do meu lado pessimista, vejo um copo meio vazio. E 2021 como um ano com riscos maiores do que 2020. Poderá ser o ano do triunfo da impiedade e do egoísmo universal.

Comecemos pelas vacinas. Um feito da ciência, sem dúvida, e um feito da Big Pharma que parece ter-se redimido de todos os vícios e pecados, mas um feito ao qual não foram feitas perguntas. A necessidade da vacinação é tão grande que se pôs de lado o cuidado de perguntar sobre a vacina e sobre a manufatura da vacina. A brutal e bem-sucedida campanha de marketing realçou a absoluta fiabilidade e segurança da injeção, quod erat demonstrandum, sem responder a perguntas às quais não saberia responder. Os CEO e investidores ganharam milhões de dólares com os anúncios das vacinas, num claro fenómeno de inside trading, e ninguém questionou o comportamento predatório.

As pessoas vacinadas podem ou não ser portadoras do vírus e transmiti-lo a outras pessoas? Não sei, não percebi. Uns dizem que sim, outros que não, outros que talvez. Caso a resposta seja afirmativa, podem transmitir, isso significa que a vacina protege apenas o próprio dos efeitos da doença, não impede a infeção e transmissão. Significa que as restrições que conhecemos continuam a ser necessárias, pelo menos até quase toda a população estar vacinada. A primeira e principal característica das vacinas é a escassez. E a escassez, mesmo num mercado controlado pelo Estado, tem leis universais, tão rigorosas como as da física. As vacinas não podem ser manufaturadas a tempo e horas para que na primeira metade do ano de 2021 a população possa estar protegida. E, sobretudo, a população ativa. A escassez de vacinas, e a luta desenfreada pelas vacinas disponíveis, irá condicionar todo o ano que vem.

Tudo o que sabemos, sabemos sobre as duas primeiras fases da vacinação, as mais fáceis, as que só podem correr bem. A primeira fase foi a do ballet russo, poucas vacinas para poucas pessoas, por comparação com o resto da população, e sobretudo para pessoas identificadas e imóveis. Não só porque as pessoas a vacinar são facilmente detetadas, também porque as pessoas a vacinar são as mais bem preparadas para a vacina, estiveram na linha de combate durante meses, num sofrimento e cansaço que nenhum de nós, os que não somos trabalhadores da saúde, pode imaginar. Ver esta gente ter finalmente a dose de esperança e proteção foi, é, uma alegria coletiva. Deveriam ser sempre os primeiros. E merecem a nossa gratidão e louvor.

Infelizmente, não são os únicos. Resta a população de Portugal. E da Europa. E do mundo. Mesmo que a segunda fase, onde estão os mais vulneráveis e os doentes com patologias graves, corresse muito bem e se concluísse em três meses, abril, maio e junho, o resto da população portuguesa só começaria a ser vacinada em julho. Ora o verão é problemático. Muita gente vai querer ir de férias vacinada, e muitos dos postos e vacinadores vão querer ir de férias mesmo que haja um imperativo nacional de continuar a vacinar. Em Portugal, as férias, como os feriados, são sagrados. A interrupção ou cancelamento gera revoltas e protestos.

Estamos a falar da percentagem maior a vacinar, e ainda não sabemos com que vacinas, incluindo as vacinas não aprovadas sobre as quais ninguém fez ou fará perguntas, e quantas vacinas irão estar disponíveis no mercado. Ou como vai a Europa distribuí-las. Esta fase, certamente a mais dura, morosa, complexa e de difícil resolução logística, foi arrumada pelas autoridades num grupo a que chamo Depois Logo Se Vê.

No grupo Depois Logo Se Vê estamos quase todos. Como, quando, com quê? Estamos a falar de milhões de pessoas, muitas não detetáveis. Estamos a falar de portugueses que não têm médico de família, porque usam os seguros, visto que o nosso sistema de Saúde é misto, embora, estranhamente, os trabalhadores dos hospitais privados não tenham sido contemplados como trabalhadores da Saúde. As vantagens do sistema misto são, desde logo, evitar a sobrecarga do SNS. Como é possível que os hospitais privados estejam no grupo Depois Logo se Vê? Estes doentes e os que os tratam são excedentários? Deixamos infetar um hospital privado porque não vacinámos os que nele trabalham? Não se percebe, é demasiado confuso. E como foi possível deixar os professores de fora dos grupos prioritários? A escassez é a resposta.

A segunda metade do ano de 2021 vai ser governada pela escassez e pela procura. Num mundo governado por estas leis, raramente as pessoas se portam bem. Os privilegiados vão querer sonegar e desviar vacinas para o grupo. As falsificações e crimes vão abundar. O mercado negro espreita o momento. E isto, acreditando que a Europa vai continuar a distribuir equitativamente as vacinas por todos os países, o que não se verificará se a escassez afetar o eleitorado dos países mais ricos. Li que a Bulgária só teria a população vacinada em 2024. E resta o problema da Hungria e da Polónia, que insistirão em furar as regras de coexistência e acabarão a comprar vacinas à Rússia ou à China, na competição geoestratégica, oriente contra ocidente, ditadura contra democracia, comunismo contra capitalismo, que a vacina instituiu. As leis de mercado vão colidir com os monopólios públicos da vacinação. Tem tudo para correr mal. O Reino Unido vai desregular tudo o que puder desregular e navegar sozinho, sem cuidar dos parceiros que não tem. A vacina deles será, primeiro, para eles. E toda a gente se recorda do episódio dos camiões com máscaras que seguiam para a Suíça, que as tinha comprado, que a Alemanha desviou e açambarcou.

Resta o problema maior. A economia. A manutenção destas restrições durante, pelo menos, mais nove ou dez meses vai destruir definitivamente pequenas e médias empresas, vai destruir mais empregos, vai destruir o que ainda não foi destruído. Mesmo com o dinheiro da Europa, e poucas perguntas foram feitas sobre o preço futuro deste dinheiro, a salvação não chegará a todos. Do mesmo modo, para a saúde mental e física dos portugueses que fazem andar a economia, a salvação não chegará a horas. Esperar parece ser a única, e fraca, consolação. “Isto” ainda não começou.


7 pensamentos sobre “Depois logo se vê

  1. É pá, não se sabe, usa-se o bom senso. Quem tem a vacina pode transmitir o vírus porque este pode esconder-se temporariamente nas mãos, na roupa, no nariz, mesmo na boca; não há milagres, os anticorpos não formam um escudo à volta do corpo.
    “Como é possível que os hospitais privados estejam no grupo Depois Logo se Vê?” Não estão.
    “Os privilegiados vão querer sonegar e desviar vacinas para o grupo.” Felizmente, são poucos, mesmo que aconteça.

    Salve-se o bom senso de questionar o milagre europeu, por uma vez. Poucochinho, mas vá.

  2. Mas que mimimi.

    A única coisa de surpreendente é a vacina estar pronta tão cedo tudo o resto era expectável..

    E não vai haver guerra nenhuma por no inicio haver poucas vacinas simplesmente porque muita gente não se quer chegar á frente e ser dos primeiros a experimentar ate agradecendo que outros o façam primeiro.

    Deixem lá os dramatismos para vender jornais que a vida já é complicada por si mesma.

  3. Clara Ferreira Alves fala de desigualdade entre ricos e pobres, mas é o sistema que ela defende que gera e acentua essas desigualdades. Ela que tanto apoia uma “aliança estratégica” do Centrão, entre PS e PSD, e tanto atacou a construção da Geringonça. Ela que tanto mal diz da Social-Democracia do BE, e tantos elogios faz ao NeoLiberalismo de Macron.

    Clara Ferreira Alves fala também da luta entre “oriente contra ocidente, ditadura contra democracia, comunismo contra capitalismo”, mas esquece que capitalismo e democracia não se confundem um com o outro (é só ver os crimes contra a humanidade nos capitalistas Chile, A.Saudita, Israel, Hungria, Polónia, EUA, etc).

    E a própria Clara não defende a democracia! O que ela defende, e ainda esta semana o disse no Eixo do Mal, é um regime não-democrático de 2 partidos sem oposição real nem pluralismo, à semelhança da aberração dos EUA, e usando o “exemplo” dos círculo uninominais do Reino Unido para lá chegar. Defendeu ela e defendeu o Pedro Marques Lopes, ou não fossem eles defensores da ditadura do Extremo-Centro, a mesma que levou PS e PSD a unirem-se, como fazem quase todos os dias, para aprovarem lei eleitoral que lhes dá maiorias absolutas de deputados, mesmo que não tenham maioria absoluta dos votos. Uma vergonha que só será corrigida na próxima revolução…

    Do Extremo-Centro e do Euro-fanatismo, pois neste mesmo programa atreveu-se a dizer que o €uro nos ajudou… contra todos os factos, aos fanáticos só interessa a propaganda e defender a ideologia primeiro, e as pessoas e o que as pessoas sofrem com a aplicação dessa ideologia, que se lixem.

    Também nas vacinas é a mesma coisa. Portugal votou ao lado do “ocidente” e da “democracia” e do capitalismo, CONTRA a possibilidade das vacinas poderem ser produzidas localmente por outros laboratórios que não os detentores da patente. A favor disto votou “só” a maior parte do Mundo, exceto, claro está, o mundo do “ocidente”, da “democracia”, e do capitalismo.

    Se daqui para a frente a lei da oferta e da procura se aplica e gera conflitos entre países ricos e pobres, isso é da responsabilidade de EUA, Canadá, maior parte da Europa, Japão, Austrália, e Nova Zelândia. Nós, os “democratas”, “ocidentais”, e capitalistas, fazemos parte do problema.
    E quando Hungria e Polónia começarem a comprar as vacinas das “ditaduras orientais e comunistas” da Rússia e da China, isso será parte da solução, mas como vemos, os Euro-fanáticos, ou melhor, os NATO-extremistas, já começaram a ensaiar o discurso contrário…

    E o povo que se lixe. Desde que as elites e seus escribas (Clara e Pedro e companhia) continuem a ganhar bem com a sua parte não-partilhada do bolo, com sua fronteira aberta para passarem férias numa capital Europeia qualquer, usando o cartão de crédito com dinheiro de um off-shore qualquer, tudo bem. O “problema” era se todos vivêssemos bem, com menos desigualdades, com os países pobres a partilharem as nossas vacinas, com a Crimeia em paz, sem lucro para o complexo militar industrial, sem off-shores nem elisão fiscal, com contratos de trabalho decentes e estáveis, e sem subida a pique das ações das Pfizers e Modernas e AstrasZenecas e o caralh* que os f*da a todos!

    #EUROexit – ontem já era tarde. Estamos há 20 anos a ser ultrapassados pelos países com moeda própria (R.Checa, Polónia, etc), e a divergir dos mais ricos que nunca aderiram ao €uro (Suécia, Dinamarca), já para não falar dos que nunca aderiram à UE e graças a isso mesmo fizeram frente à banca privada (Islândia) em vez de obedeceram a ordens ruinosas do anti-democrático BCE. Até quando aguentamos esta estupidez?
    “até quando for possível” – respondem os €uro-fanáticos do extremo-Centro, com ar de moderados,
    “sofra quem sofrer, dos 99%” – pensam eles sem abrirem a boca,
    “ai coitadinhos dos pobres, ai as desigualdades” – abrem eles a boca sem admitir a culpa,
    “a democracia democrática dos democratas democraticamente” – repetem sem se rir enquanto nos mandam cumprir regras em que nunca votámos, de uma moeda à qual não aderimos democraticamente, e pressionam para repetir referendos do Brexit até dar o resultado que queriam.

    Como disse um grande actor e cineasta: f*dei-vos uns aos outros, que a mim não me f*deis mais!
    Se forem como eu, sabem que têm de votar com a própria cabeça, e que nenhum partido ou candidato é dono do vosso voto. Se não, vão lá a correr votar nos Marcelos, PS e PSD/I.Liberal e CDS/Chega (ou abstenham-se, que vai dar ao mesmo), e vão ver onde isto vai parar…

  4. Nem Clara nem Jorge Alves. Com eles vou ali deitar-me de um penedo abaixo. A propósito o comentário do Jorge Alves é grande sim no sentido que é comprido de resto não acredito que a Estátua de Sal se queira identificar seja com que comentário fôr.

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